Amigos do Fingidor

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

A miragem elaborada – 18

Zemaria Pinto

O homem noturno, a busca da luz


V


O “Soneto IX” – coroamento desses cânticos libertários – é a síntese definitiva da noite que se instaura no país a 31 de março de 1964. O regime de terror encontra em Alcides Werk mais que um simples opositor a protestar. Suas palavras são imagens retiradas a sangue frio de retinas ainda cálidas. Palavras que a boca não dirá jamais. Imagens, apenas.

                    Fez-se uma curta pausa. E a noite baça
                    estendeu seus lençóis sobre as cidades.
                    Ventos frios de morte andavam soltos,
                    e formas embuçadas destruíam

                    restos vagos de luz. Alguns senhores
                    guardaram pressurosos seus haveres
                    para a estranha vigília dos sonâmbulos.
                    Nas sombrias e extensas avenidas

                    as multidões dos homens deserdados
                    prosseguiram seus ritos no silêncio
                    de uma noite sem tempo. E os anciãos

                    das várias tribos foram convocados
                    para o mister pacífico das aras
                    e a glorificação das horas mortas.

O “Soneto XII” – o último poema de Trilha dágua – representa a profissão de fé do autor no futuro, futuro que se constrói com o tempo e com o trabalho, indispensável, da poesia:

                    Impossível voltar, e continuo.
                    Elaboro miragens e as persigo
                    com a determinação dos suicidas.

Futuro que virá – o poeta o sabe – não com a manhã. A aurora é a transição entre a noite de terror e a luz do novo dia. O dia toma forma aos poucos. Como a vida. Como os frutos. O poema “Noturno”, presente já em Da noite do rio, ensina como se processa essa mudança:

                    Um dia, nesta praia deserta,
                    de onde contemplo os meus ocasos
                    e somo por somar o tempo inútil,
                    ela surgirá diante dos meus olhos
                    (a mesma de sempre),
                    pousará suas mãos em minhas mãos,
                    fitará longamente o meu rosto,
                    para conhecer as marcas da angústia,
                    e dirá:
                    – Eis-me aqui novamente.

                    Ela virá no começo da tarde,
                    e o sol presidirá sua chegada.

O começo da tarde, o meio-dia, passada a festa da manhã, a embriaguez da luz rompendo a escuridão. Mais que a paixão, o amadurecimento para o amor, para o exercício pleno da liberdade.