O regionalismo modernista
A revolução representada pelo advento do Modernismo, em 1922, virou a literatura brasileira, literalmente, pelo avesso. Foi um rompimento com a velha estética e uma abertura para as novidades que vinham da Europa. E não eram poucas. Se enumerarmos os “ismos” que proliferaram nas duas primeiras décadas do século XX, entenderemos porque o nosso Modernismo mostrou-se tão fragmentado, com várias tendências tentando abrigar-se sob a mesma denominação: Futurismo, Cubismo, Expressionismo, Dadaísmo e Surrealismo são apenas algumas dessas tendências.
No Brasil, com o tempo, essas tendências foram se acomodando sob um nacionalismo um tanto esquizofrênico: de um lado, o grupo de Mário de Andrade e Oswald de Andrade, que pregava a antropofagia, isto é, a deglutição da nossa cultura popular e da nossa história, mas sob uma nova perspectiva, criando, a partir da absorção das novidades europeias, uma nova linguagem. De outro lado, o grupo liderado por Plínio Salgado, que pregava um nacionalismo puro, sem influências estrangeiras. No final das contas, percebemos que, muito além das divergências estéticas, havia mesmo divergências ideológicas inconciliáveis.
Em 1928, enquanto Mário de Andrade, pelos antropófagos, publicava Macunaíma, e Cassiano Ricardo, pelo outro grupo, publicava Martin Cererê, José Américo de Almeida, que até então ainda não havia entrado na história, publicava o livro-marco de um novo movimento: A bagaceira. Dois anos depois, para consolidar de vez essa nova tendência, surge O quinze, de Rachel de Queiroz. Estava fundado o “regionalismo modernista”, e era preciso caracterizá-lo com o adjetivo, para que ele não fosse confundido com o regionalismo romântico ou com o regionalismo realista-naturalista, já ultrapassados.
O novo regionalismo não vê mais o homem como mero produto do meio em que vive, um animal acuado pela miséria física e espiritual, como no Naturalismo. Não. O novo regionalismo vê o homem como produto das condições históricas e sociais e, o mais importante, o vê como o agente modificador dessas condições. Os ecos da revolução bolchevique, que fundara a União Soviética e o sonho do socialismo real, em 1917, são evidentes e são sentidos também nos Estados Unidos, na Itália e em Portugal, só para ficarmos nos casos mais notáveis.
O novo regionalismo é o velho Naturalismo, devidamente reciclado. Neonaturalismo. José Lins do Rego, Érico Veríssimo e Jorge Amado, além dos já citados, são os autores das obras fundamentais desse novo período, onde se identificam algumas características agrupáveis:
a) romances da seca;
b) romances do ciclo da cana-de-açúcar;
c) romances do cangaço;
d) romances baianos;
e) romances do ciclo do cacau;
f) romances do Sul;
g) romances urbanos;
Você deve ter notado, leitor, a exclusão do nome de Graciliano Ramos. O notável autor de Vidas secas, o mais extraordinário dos romances sobre a seca, não merece ser classificado como mais um neonaturalista. Mas Jorge Amado é o principal responsável pelos romances baianos (Jubiabá, Capitães da areia, Mar morto) e pelo ciclo do cacau (Terras do Sem Fim, São Jorge dos Ilhéus), mas não ignora a seca e o cangaço (Seara Vermelha) e, principalmente, os romances urbanos, as crônicas de costumes, onde concentra boa parte de sua obra.
Um Criador de Mundos
Costuma-se dividir, preguiçosamente, a obra de Jorge Amado em duas fases: antes e depois de Gabriela, cravo e canela. É uma divisão preguiçosa, sim, porque se diz que antes de Gabriela... Jorge Amado fora um autor panfletário, populista, partidário. Não que isso não seja verdade, mas é uma meia verdade.
País do Carnaval, Cacau e Suor poderiam ser classificados como romances de denúncia, embora a classificação preferida seja “romances proletários”, mostrando o engajamento do autor nas lutas do nascente proletariado urbano brasileiro. Mas são apenas rascunhos do grande escritor que ele viria a ser. Ora, leitor, faça as contas. Em 1934, ano da publicação de Suor, nosso herói tinha apenas 22 anos... Jubiabá, de 1935 (23 anos...), já mostra um salto de qualidade enorme em relação aos outros, mostrando um personagem, Baldo, que vai evoluindo aos poucos, crescendo com a trama, passando de marginal a agitador político. Quando escreve o objeto de nosso estudo, Mar morto, o autor está com 24 anos de idade. É talvez essa imaturidade que o faz resvalar muitas vezes por um sentimentalismo falsamente poético, falsamente lírico, expediente ainda utilizado à farta em Capitães da areia, o livro seguinte, publicado em 1937.
O que vem em seguida, se esquecermos o fraquíssimo ABC de Castro Alves e o absolutamente ruim O Cavaleiro da Esperança, de 1941/42, respectivamente, é um novo autor: Terras do sem fim e São Jorge dos Ilhéus, de 1943/44, e Seara Vermelha, de 1946, nos mostram um escritor senhor de seu ofício, um criador de mundos, senhor das palavras e de uma linguagem própria, épica e dramática, de acordo com a necessidade, encantadora.
Uma nova recaída no “proletarismo” de juventude com Os subterrâneos da liberdade, em 1954, e o autor ressurge, quatro anos depois, com sua obra-prima: Gabriela, cravo e canela. Aqui, o realismo tipicamente observador dá lugar à invenção, à criação – não de estereótipos, mas de personagens que poderiam sair das páginas dos livros e andar anonimamente pelas ruas. E para mostrar que a nova fase agora era para valer, em 1961, Jorge Amado publica o livro de novelas Os Velhos Marinheiros, contendo duas narrativas: O Capitão-de-Longo-Curso e A Morte e a Morte de Quincas Berro Dágua. Esta é, por não poucos críticos, considerada a mais alta realização do autor, onde sua linguagem atinge o máximo da expressão.
Os romances que se seguiram, Os pastores da noite, Dona Flor e seus dois maridos, Tieta do Agreste, entre tantos, só vieram confirmar o que já se sabia do velho baiano: um mestre em criar tipos, em construir diálogos e em manter o interesse do leitor, tensionando a narrativa. Mais ainda. A partir de Gabriela..., Jorge Amado desenvolve um tipo de narrativa picaresca, onde, sem deixar de lado sua velha simpatia pelos marginais, especialmente os da Bahia, cultiva um humor refinado, distante anos-luz daquele panfletarismo obstinado, que marcara sua juventude e maculara boa parte de sua obra.
Ilustrações: edição brasileira de 1960; edição alemã de 1950.