Zemaria Pinto
IV
Conheci Alcides Werk no início dos anos 1980. Autodidata, Alcides
ensinou-me muita coisa que os livros não ensinam. Teve a paciência – que eu não
tenho com os jovens que me procuram – de corrigir meus textos imaturos,
justificando cada crítica. E hoje eu digo, com paradoxal orgulho, que tive a
humildade – que os jovens que me procuram quase nunca têm – de aceitar suas
críticas.
Quando, ao final daquela década, fiz uma especialização em Literatura
Brasileira, sob a orientação do mestre Marcos Frederico Krüger, o tema da minha
dissertação não poderia ser outro senão o livro que eu aprendera a amar como
sendo a própria identidade amazônica em poesia: Trilha dágua. Mais amadurecido, eu discutia com Alcides cada ponto
do meu trabalho, antes de mostrá-lo ao meu orientador. Muitas vezes discordamos
e algumas vezes eu mantive meu ponto de vista, mas ele não perdia o bom humor:
“discute isso com o Marcos; se ele concordar contigo, tudo bem: 2 a 1 pra
vocês.”
Alcides Werk Gomes de Matos nasceu em Aquidauana – hoje, no Mato Grosso do
Sul – em 20 de dezembro de 1934. Filho de pai pernambucano e mãe gaúcha, neto
de imigrantes alemães, Alcides dizia não se lembrar de passar um ano numa mesma
localidade. Tendo perdido a mãe aos 10 anos, em Caracaraí, aos 14, separou-se
do pai em Conceição do Araguaia, onde fez um curso de telegrafia, indo
trabalhar em um posto de atração de índios Gaviões, no Tocantins, próximo de onde
hoje está Tucuruí. Aos 17 anos, sentou praça em Belém. Aos 20, veio para Manaus,
mas aqui não ficou muito tempo, embrenhando-se pelo interior, desde o Alto
Solimões até o Baixo Amazonas. E como ele mesmo escreveu,
aventurando-me pelos
altos rios, pelos paranás, pelos lagos distantes, abeberando-me do que ainda
resta da cultura aborígine, do nosso ameríndio, do caboclo, aprendendo a viver
com simplicidade.[1]
Em 1964, funcionário de carreira do Departamento de Correios e Telégrafos,
foi para Recife, mas de lá retornou um ano depois, internando-se no Médio
Amazonas – Maués, Nhamundá e áreas circunvizinhas –, onde viveu por 8 anos, longe
dos desmandos da ditadura.
Aos 40 anos, o poeta nômade já estabelecido em Manaus como funcionário do
DENTEL – Departamento Nacional de Telecomunicações, lançou seu primeiro livro: Da noite do rio, embrião daquele que
viria a ser seu livro mais representativo, Trilha
dágua, lançado em 1980. Quatro
edições, sempre revistas e ampliadas, muitas antologias, e dois livros
independentes depois – In natura, poemas para a juventude (1999) e Cantos ribeirinhos (2002), ambos com
poemas de Trilha dágua e inéditos –, Alcides
começou a organizar o seu livro definitivo, sua poesia completa, intitulado A Amazônia de Alcides Werk, que ele não chegou
a revisar. O poeta faleceu pouco mais de um mês antes de completar 69 anos, em 13
de novembro de 2003.
Trilha dágua[2] e, por
extensão, a poesia de Alcides Werk, é um livro onde a vida pulsa a cada poema,
porque a “obra de arte é uma coisa viva”, já nos ensinou o poeta. Da sua
vivência no interior do Amazonas, Alcides foi buscar a matéria prima para a sua
poesia. Assim é que o livro, dividido em quatro partes mais um glossário, abre
com o poema “Opção”, uma espécie de poética de Alcides, onde a relação “o homem
e a terra”, título dessa primeira parte, é explorada num processo de sobreposição
de imagens, que se vão toldando, até o arremate:
– Eu canto para
o homem.
(p. 27-28)
Ao conceito de terra cansada, contrapõe-se a imagem do homem cansado,
marginalizado. Ali estava feita a opção, que se desdobra em muitos outros
poemas, como “Do homem”, onde o poeta define a abrangência, a intensidade e a
profundidade de seu canto, revelando:
E toda
lembrança
que trago
comigo
é o Homem
nascendo
é o Homem
cantando
é o Homem
caindo
é o Homem se
erguendo
é o Homem
domando
é o Homem
tecendo
o imenso
milagre
da aurora que
vem.
(p. 30)
O ritmo amazônico vem embalado em versos curtos, de 5 sílabas, mesmo quando
dissimulado em versos livres:
O barco
passando e a onda molhando
o menino
molhado, na porta da frente.
O homem doente
deitado na rede
com os olhos
cansados de espanto e de mágoa
de ver tanta
água
de ver tanta
água
(p. 38)
São registros de vida que se sucedem, como se captados por uma câmera:
As águas do
lago
no início da
noite
são como um
espelho
que o casco
estilhaça
com a força do
remo.
(p. 50)