Zemaria Pinto
II
A história da Fazenda da
Esperança[1]
começou há 31 anos, de maneira casual e quase mesmo inverossímil: Nelson
Giovaneli, incomodado com a presença de jovens que consumiam e vendiam drogas
próximo a sua casa, na esquina das ruas Tupinambás e Guaicurus, em Guaratinguetá,
São Paulo, aproximou-se deles, conquistou sua amizade e começou um trabalho
que, a partir daquela esquina, ganharia o mundo.
Nelson tinha o apoio de
frei Hans Stapel, franciscano alemão, pároco da igreja de Nossa Senhora da
Glória, no bairro de Pedregulho, que pregava aos jovens como ele viver radicalmente
a Palavra de Deus, de modo similar ao Movimento dos Folcolares, que frei Hans
conhecera de perto. Aquele ato inicial tinha por inspiração a 1ª Epístola aos Coríntios,
9, 22: “Com os fracos tornei-me fraco, para ganhar os fracos; fiz-me tudo para
todos, para por todos os meios salvar alguns.”[2]
Antônio Eleutério foi o
primeiro do grupo a ser contagiado pelas promessas de libertação de Nelson
Giovaneli. Libertação da dependência química, libertação da humilhação
cotidiana, libertação da relação de promiscuidade com a morte, libertação do
inferno em vida.
A transformação do amigo
infundiu confiança no resto do grupo. Sempre com o apoio de frei Hans Stapel, a
proposta de viver radicalmente a Palavra tomou forma concreta: em junho de
1983, eles alugaram uma casa onde passaram a viver juntos, pagando as despesas
com o resultado de seu próprio trabalho; e tudo o que ganhavam era colocado em um
fundo, que tinha como único objetivo garantir-lhes a subsistência com
dignidade, mantendo distância do vício avassalador. À noite, reuniam-se na
igreja de N. Sra. da Glória, para discutir seus problemas comuns e levar uma
palavra de conforto a outros jovens que, por iniciativa própria, começavam a
buscá-la.
Estava fundada a primeira
comunidade da Esperança. Estava plantada a semente do que logo passou a se
chamar, pelas suas características próprias, Fazenda da Esperança. Aquela
esquina primordial hoje abriga um pequeno museu, apropriadamente chamado de
Esquina da Esperança.
Algumas datas marcantes:
em 1987, em Coroatá, no Maranhão, foi fundada a primeira comunidade fora de São
Paulo, liderada por um irmão de frei Hans, padre Paulo; em 1988, Iraci Leite e
Lucilene Rosendo, tia de Nelson Giovaneli, fundaram a primeira comunidade
feminina, em Guaratinguetá; em 1998, na terra natal de frei Hans, foi fundada a
primeira comunidade fora do Brasil; em 2007, o papa Bento XVI visitou a Fazenda
da Esperança de Pedrinhas, no interior de São Paulo, originada daquela primeira
comunidade fundada por Nelson e Antônio Eleutério. Em seu discurso histórico, o
papa exortou os presentes a serem todos “Embaixadores da Esperança”.
Hoje, a Obra Social Nossa
Senhora da Glória – Fazenda da Esperança, o nome oficial da organização, está
presente em quase todos os estados brasileiros, espalhando-se pela América,
África, Europa e Ásia. E não para de crescer, pois, infelizmente, a dependência
química é um câncer social.
Em Manaus[3], a
Fazenda da Esperança foi fundada em 2001, com o nome de “Dom Gino Malvestio”,
para atendimento do público masculino, com 15 vagas. Na verdade, aquele sonho
começara quatro anos antes, quando Dom Gino Malvestio, bispo de Parintins, e
Dom Mario Pasqualotto, pároco em Maués, receberam a visita de Frei Hans Stapel,
visando a fundação de uma unidade em Parintins. Infelizmente, Dom Gino viria a
falecer pouco tempo depois. Com a morte do mentor da ideia o projeto não
avançou, mas ficou guardado no coração de D. Mario.
Em 2000, visando a
Campanha da Fraternidade do ano seguinte – “Vida sim, drogas não!” –, já
investido da condição de bispo auxiliar de Manaus, e contando com o apoio incondicional
do arcebispo, o nosso querido confrade Dom Luiz Soares Vieira, Dom Mario Pasqualotto
propôs a criação de uma Fazenda da Esperança em Manaus como uma ação concreta
da arquidiocese à campanha “Vida sim, drogas não!”
E assim, no dia 29 de
julho de 2001, com o indispensável apoio do governo do Estado, que doou o
terreno de uma antiga Escola Fazenda e colaborou na recuperação dos velhos prédios,
foi fundada a primeira unidade da Fazenda da Esperança no Amazonas,
homenageando com o seu nome aquele que sonhara com ela anos antes: Dom Gino
Malvestio.
Em 2005, foi inaugurada a
unidade feminina “Irmã Cleuza Rody Coelho”, com 30 vagas. Ambas estão
localizadas no Ramal Cláudio Mesquita, quilômetro 14 da BR-174. Hoje, a unidade
masculina de Manaus está com a sua capacidade de atendimento ampliada para 100
jovens. Em São Gabriel da Cachoeira, foi inaugurada há dois anos a primeira
unidade do interior do Amazonas, com 30 vagas destinadas ao público masculino.
Com uma metodologia alicerçada
em três eixos – espiritualidade, trabalho e convivência, social e familiar – a
Fazenda da Esperança tem logrado alcançar 80% de sucesso entre aqueles que, espontaneamente,
se dispõem à recuperação. O tratamento dura 12 meses, mas continua com os
grupos Esperança Viva, formados por aqueles que se submeteram com sucesso ao
tratamento, e se tornam multiplicadores desse trabalho essencialmente voluntário.
Embora cada unidade seja
também uma pequena indústria, com produções diversas, a Fazenda está longe de
alcançar a autossustentabilidade, para o quê se torna indispensável o apoio da
sociedade organizada e suas instituições, bem como o apoio do poder público, em
todos os níveis.
A muitos parecerá
estranho que o reconhecimento pelo mecenato seja dado a uma instituição que não
trabalha exatamente com a arte – o objeto do apoio de Mecenas, espécie de
ministro sem pasta e fiel conselheiro do imperador Otávio Augusto, à época em
que Jesus Cristo andou por este mundo. A intenção da Academia Amazonense de
Letras, nos seus 96 anos de fundação, ao prestar esta singela homenagem à obra
social Fazenda da Esperança, é reconhecer nessa instituição a incentivadora da
maior de todas as artes: a arte de viver. O trabalho da Fazenda da Esperança
floresce, aqui em Manaus, em São Gabriel da Cachoeira e nos mais longínquos
rincões do mundo todo, como um canto à vida, que se renova cotidianamente, ou
como uma sinfonia contra a barbárie, onde uma orquestra de milhares, conduzidas
por um maestro invisível, eleva a sua ARTE contra a corrupção da juventude, contra
o sequestro dos valores sociais e familiares, contra o vício das substâncias e
das ideias, contra, enfim, a degradação do ser humano.
Nesta noite de
extraordinária alegria, ouçamos o apelo do Sumo Pontífice: sejamos todos
Embaixadores da Esperança!