João
Bosco Botelho
Desde
tempos ágrafos, homens e mulheres aliaram-se aos panteões lutando para entender,
sem aceitar, passivamente, a brevidade da vida frente à natureza circundante.
Reagiram se organizando para viver mais e melhor, desafiando a tirânica competência
dos deuses e das deusas para controlar a vida, curar as doenças e os
infortúnios.
Os
ritos de curas como hierofanias (manifestação do sagrado) são muito anteriores
se comparados às práticas médicas. Alguns sítios pré-históricos mostram claras comprovações,
com mais de 10.000 anos, que membros da espécie homo utilizando artefatos cortantes executaram intervenções
deliberadas e repetidas sobre os corpos, como as trepanações de crânios e
amputações dos membros.
O
aparecimento da palavra “médico” nas
linguagens-culturas mesopotâmicas esteve associado ao forte marco identificador
dos poderes pessoais desses especialistas sociais — curadores de todos os
matizes — para intervir na doença, como pressuposta garantia para aumentar os
limites da vida e sarar a dor fora de controle.
Curadores
e médicos entendidos sob essa perspectiva — agentes sociais oriundos de muitas
linguagens-culturas capazes de aumentar os limites da vida e sarar a dor fora
de controle —, de lá para cá, como história de longa duração, mantiveram esse
entendimento nos cinco continentes.
De
lá para cá, quase quatro mil anos, os ritos religiosos de cura inseridos nas
ideias e crenças religiosas nunca foram abandonados, mais ou menos valorizado
em dependência das linguagens-culturas e dos bons ou maus resultados obtidos nos
tratamentos mágicos. Em certos textos mesopotâmicos é difícil distinguir onde
começava a prática médica e onde terminavam os ritos de curas.
Por
outro lado, fora das análises acadêmicas, a maior parte das pessoas continua
valorizando a ausência da dor, do mal, da doença como fruto da obediência às divindades.
É possível que a arqueologia desse intricado nó entre as práticas de curas e as
religiões esteja assentada nas antigas compreensões do pecado como sinônimo de
doença. Entre os claros registros nas tábuas de escrita cuneiforme, achada na
biblioteca de Hammurabi, um é particularmente interessante para demonstrar as
práticas médicas atadas aos ritos de curas religiosos: assírios e babilônios
entendiam o pecador como doente, débil, angustiado, possesso do demônio (utukku). Os termos sortilégio,
malefício, pecado, doença, sofrimento aparecem como sinônimos. A libertação
desse pecado, a doença, só seria obtida no rito religioso da confissão e da penitência.
Essa
compreensão do pecado ligado à doença como sinônimo do mal está mais claramente
presente nas religiões que admitem o pressuposto da violação voluntária do livre arbítrio, contra a ordem divina, gerando
culpa ao pecador, punido com a doença. Para apagar o pecado, o mal, a culpa, deve
cumprir ritos de expiação: os da consciência, confissão e penitência; e os da
obediência ao divino: rezas e sacrifícios.