Zemaria Pinto
III
Para classificar de
maneira clara e objetiva o trabalho de Sergio Cardoso, utilizei, parágrafos
atrás, a expressão “arte multifacetada”, que, acredito, substitui com vantagens
o surrado clichê do multi-instrumentista, mesmo porque Sergio Cardoso não se
vale de múltiplos instrumentos, mas apenas de dois conjuntos deles: os seus
olhos e as suas mãos. Os sentidos se amalgamam e se amoldam, deixando que os
olhos toquem e as mãos vejam e a criação seja algo para além dos sentidos
convencionados pela obviedade cotidiana.
Pintura, fotografia,
cinema, teatro – a arte de Sergio Cardoso traduz-se no embate dialético entre
imagem e movimento, que tem como resultante sinérgico uma obra de arte de alta
expressão.
Amazonense de Manaus, Sergio
Cardoso, a par da formação artística, não descuidou de sólida formação
profissional. Advogado, é procurador efetivo da Procuradoria Geral do Estado.
Administrador cultural, tem várias especializações na área, em programas de
formação nacionais e internacionais, consolidadas pela experiência prática em
vários cargos públicos, entre os quais o de Superintendente da Televisão
Educativa do Amazonas, o de titular da Superintendência Cultural do Estado,
diretor do Centro Cultural Cláudio Santoro, de saudosa memória, e do Centro
Cultural Palácio Rio Negro. Atualmente, é diretor do Departamento de Difusão
Cultural da Secretaria de Estado da Cultura.
Como artista de múltiplas
faces, sua maior característica é a inquietude, exatamente aquela inquietude
que Péricles Moraes via em Violeta Branca: a inquietação da busca, da procura
constante e, sobretudo, do questionamento permanente. Não satisfeito com a
pintura, Sérgio enveredou pela fotoplastia, um conceito ainda não encontrável
nos manuais de arte acadêmica. Seus experimentos já foram mostrados em várias
exposições e até há poucos dias estavam à vista em Harborligths. Espere a próxima quem perdeu. Harborlights trazia uma série de fotografias, com interferências
plásticas e textuais, do lado podre do porto de Manaus, o trecho da antiga
Manaus Moderna, tomada por mendigos, bêbados e drogados de todos os matizes. Um
delírio magrittiano:
cidade
podre paisagem truculenta transcendente pobreza instalada
onde um dia a miséria da cidade flutuante foi transposta aos limites suburbanos
da cidade mutante onde um dia a mata foi violada e seu vestido verde incinerado
e os meninos curupiras transgrediram a dimensão do sonho e cavalgando alados
cavalos da memória foram habitar o palácio esculpido no rochedo onde um dia um magritte flutuou
balões de gente as luas no museu de tudo figurado em melancia a cona
escancarada em riso de deboche ó noite ó grafites a fenda no muro o rio aberto
em mar os barcos ancorados no horizonte as coxas da cidade ávidas expostas ao
membro dissoluto fotografias da cidade desfeita em urina e fezes não não haverá
dia não haverá o delírio das cores aquecidas pelo degelo dos andes pelo desejo
das ondas onde dantes havia apenas a água transparente do rio negro onde um dia
profetas alienados esculpiram versículos definitivos e definidores destinados a
eternizar a guerra sob a falsa paz que transcende a cidade anabolizada a
pobreza da paisagem podre da cidade[1]
A fotografia e o cinema fizeram
o século XX acreditar, durante muito tempo, que a pintura e a escultura e todos
os seus derivados haviam se esgotado – a arte morreu! Mas a arte não morre, ela
se retempera, se renova e se reinventa. Como em Oh City – Stages, a penúltima exposição de Sérgio Cardoso, onde
fotografia, cinema e pintura conviveram pacificamente, desnudando a violência
da cidade:
Oh City – Stages foi uma exposição em
movimento, cinética, ou como escreveria Glauber, kynetyka, fazendo longas ilações sobre a rede nazistalinista que se
infiltra na palavra e na vida de todos nós, sem identidade e sem vontade,
reduzidos a meros pontos no universo abstrato sergiocardosiano.
Uma exposição
do deslocamento: nos videocines, o movimento de autos, o movimento de gente.
Nas fotos, o desfoco era o foco. Em Therminalcódigos e Ethereoplanoviario, as
máquinas de triturar almas, os corpos sem almas, os rostos amorfos, meros
pontos nos quadros.
Duas câmeras fixas registraram a sandice do trânsito de
automóveis na Barbarapólis. Em outro plano, uma câmera fixa registrava o vai e
vem na orla do mercadogrande. Num, o tempo do quando, instantâneo
esquizofrênico instante. Noutro, o tempo do sempre, da repetição lerda,
lesmática, neurótica. Um: aves rapaces rapinam, sangrando os fígados das
máquinas. Outro: vermes bípedes, em movimentos centrípetos, indo do nada para o
nada e ao nada retornando, mas sempre adiante, reafirmando a autofagia do
eterno retorno: não precisamos de luz.[2]
Ao marasmo da arte
decorativa, o artista inquieto se doa por inteiro e transfunde seu sangue para
injetar vida em sua arte porque “uma obra de arte é uma coisa viva; qualquer
obra de arte será viva ou não será arte”[3]. Esta
frase magistral do poeta Ferreira Gullar justifica porque não nos limitamos a
fazer aqui um inventário das exposições de Sergio Cardoso. São tantas dezenas
delas, seria cansativo. Prefiro instigá-los a olhar com olhos de pensar, e
dizer que, na próxima oportunidade, não se furtem a descobrir a vida que pulsa
na arte em movimento de Sérgio Cardoso.
Movimento que se observa
sobretudo no teatro, para o qual Sérgio tem sido, ao lado de Márcio Souza, o
mais fértil autor amazonense, chegando mesmo a criar um universo próprio – uma
cidade, Lazone, à margem do rio das Sombras, com um teatro imponente, galerias
subterrâneas, uma cidade flutuante e personagens que transitam de uma peça a
outra, num grande painel suprarreal.
Lazone está para Sérgio
Cardoso como o condado de Yoknapatawpha está para o norte-americano William
Faulkner. Poucos de vocês sabem disso, porque o autor não se deu ao trabalho de
divulgá-lo, mas, no ano passado, Sergio Cardoso reuniu dez de suas peças em um
livro com mais de 350 páginas, intitulado O
livro do teatro urbano das mulheres de Lazone, onde ele
trabalha sobre
um fio de navalha: humor e tragédia se misturam, em cenas antinaturalistas, com
uma agilidade cinematográfica. Não à toa, o cinema é uma referência constante,
seja no nome das personagens seja nas inúmeras citações de títulos clássicos.
Tudo potencializado, as situações criadas, de um humor amargo, aproximam-se do
dramalhão hollywoodiano das primeiras décadas do cinema falado, com pitadas de noir; mas algumas figuras monstruosas
remetem ao expressionismo alemão.
As mulheres de
Lazone reinventam a história da cidade de Manaus, desde a crise da borracha até
a primeira década deste início de século, contemplando exatos cem anos de
imaginação a serviço da fantasia, onde convivem em deliciosa desarmonia
cobras-grandes, vampiros, tartarugas radioativas, mendigos, loucos, socialites, prostitutas, malandros,
políticos corruptos, fantasmas diversos e toda uma fauna de criaturas
aprisionadas no dia a dia da cidade. E a despeito da grande quantidade de
personagens a transitar no palco, a solidão das protagonistas – muito mais que
a geografia e a história comuns – é o fio que costura as peças, dando-lhes
unidade, estabelecendo vasos comunicantes entre elas, como num corpo vivo,
montando esse extraordinário painel da arte cênica amazonense.
Mundica, Gilda, Carmem, Dorothy, Mercedita e todas as
outras são mais que meras criações da mente inquieta de Sergio Cardoso: são
arquétipos de mulheres que pintaram, com tintas épicas, a história cotidiana,
banal, medíocre, desta cidade abrasadora, à margem esquerda do rio Negro.[4]
Imagem e movimento, opostos sintetizados na imagem em movimento do cinema ou do teatro, são conceitos realizados plenamente na arte plural de Sergio Cardoso, arte que valoriza, eleva e dignifica o fazer artístico no Amazonas.
[1]
Zemaria Pinto. Texto incluído no folder da exposição Harborlights, que ficou de 27 de março a 23 de abril, no Espaço de
Thiago de Mello, da Livraria Saraiva, em Manaus.
[2]
Zemaria Pinto. Adaptado de O caos em
construção – um olhar crítico-poético sobre Oh City – Stages. In: Revista Valer Cultural. Ano 1, nº 8, dez/jan
2014. Páginas 72-75.
[3]
GULLAR, Ferreira. Argumentação contra a
morte da arte. 8ª ed., 1ª reimpressão. Rio de Janeiro: Revan, 2005. p. 132.
[4]
Zemaria Pinto. Adaptado da apresentação de O
livro do teatro urbano das mulheres de Lazone, de Sergio Cardoso. Manaus:
Valer, 2013. Páginas 19-20.