Anne Lucy
Querida Isabel,
Desde que você foi para a belíssima Paris, cursar seu tão sonhado intercâmbio, tanta coisa aconteceu. Tenho tanto pra te contar... Mas vou ater-me ao que está mais presente em meus pensamentos. Como ainda sou à moda antiga, resolvi te escrever esta carta. E-mails são abstratos e frios demais para mim. Tu sabes que escrevo pra acalentar meus demônios, não para espantá-los. Eles são meu termômetro. Quando as coisas estão frias demais, eles vêm me atormentar e me trazem um pouco de calor. Também mostram, que estou viva, e consequentemente as emoções, sejam elas boas ou ruins, sempre farão parte de mim... Eu preciso delas, e a escrita é vital para minha saúde mental e emocional. Como sou um pouco retraída, através das palavras posso me libertar um pouco, e é maravilhoso poder compartilhar isso com você!
Ando triste, pensativa, preocupada, apreensiva e seus demais sinônimos... Minha vida tem girado em torno de cuidar de quem sempre cuidou de mim. Isso não é a parte ruim. O que mais me dói é ver como somos frágeis e passageiros. É ver como a rosa mais bela do meu jardim, que era tão viva e forte, está murchando aos poucos bem diante dos meus olhos, sem que eu possa fazer muita coisa pra reverter isso, afinal, é o sentido natural da vida. Somos mortais.
A velhice pode ser cruel. Não só para o idoso, mas também para quem está diariamente ao seu lado. Os males que vão aparecendo por causa da idade são quase todos impossíveis de ser revertidos e olha que não poupamos esforços para melhorá-los, querida Bel... Foram tempos difíceis. Juro que perdi a conta de a quantos médicos, tanto convencionais como espirituais, levei minha Avó, aquela Dona Carmem, que você ainda chegou a ver cheia de vitalidade. Quase todos foram por indicação de alguém que dizia: Esse médico curou fulana, tenho certeza que ela vai ficar boa com ele. E até agora nada...
Eu tento entender o quão difícil é para os parentes que vêm, uma vez ou outra, visitá-la, aceitarem sua condição. Como é difícil verem, o estado debilitado em que ela se encontra. E minha batalha mais dura tem sido justamente com eles. De procurar entendê-los, querida amiga. Porque é tão mais fácil que eles me julguem e apontem o dedo na minha cara, enquanto uma mão amiga, uma ajuda poderia resolver muita coisa? É... Vai ver eu ainda seja aquela garotinha ingênua de quando nos conhecemos, para aceitar como as relações humanas, muitas vezes, são cruéis.
Mas o que eu gostaria de poder falar para cada um deles, é que ninguém sente dor maior do que eu, por ver aquela mulher forte, guerreira e independente, estar tão frágil como uma criança e eu agora estar parecendo sua mãe. Até posso dizer que meu amor de neta, que também é amor de filha, agora tem um ‘Q’ de amor materno. Eu só gostaria que eles também me entendessem e que ao invés de me criticarem, por também querer viver, que se colocassem em meu lugar. Quando se é jovem, queremos tudo para ontem, e eles já passaram por isso, mas parece que não querem lembrar. Nenhum deles abriu mão de seus projetos, planos e tarefas para se dedicar exclusivamente a alguém. Eles não sabem o que é isso.
Querida Isabel, você não sabe como tem sido difícil fazê-los entender que eu também preciso construir minha vida, afinal não posso, não tenho e principalmente não quero ter que depender de alguém para sempre. Quero ter minhas coisas e fazer, eu mesma, meu próprio caminho. É muito fácil, que eles me digam, o que tenho e devo fazer, mas em algum momento eles pararam pra ouvir o que eu quero? Em algum momento ofereceram ajuda concreta, para que juntos pudéssemos melhorar a vida dela? Não, não e não! Eles só pensam em si e em seus interesses.
Adorada Bel, quero que fique bem claro que minha Avó, não é, e nunca será um fardo na minha vida. Se fosse preciso ficar mais tempo vivendo como estou, só para cuidar dela, eu ficaria. Mesmo que isso custasse meu futuro e minha alegria. Acontece que não dá pra aceitar ouvir tantos absurdos de quem a vê pouquíssimas vezes. Só quem convive sabe como é difícil lidar com todas as situações específicas que ela exige. E por favor, Isabel, entenda e me ajude a fazê-los entender: que eu não sou de ferro! Ao contrário, me considero frágil demais...
Fora a escrita, minhas lágrimas estão sendo minha válvula de escape. Dor só sabe quem sente. Ânsia por liberdade só tem, quem se sente preso. E amor, só é amor quando você se doa. Não era pra ser assim, mas é só esse amor que todos conhecem.
Eu, como sempre, tagarelando somente sobre minhas coisas. Fale-me de você! Já leu os originais em francês de Sartre, Simone de Beauvoir, Albert Camus? Nossa, você deve estar tendo experiências incríveis. Vou aguardar sua carta resposta. Nada de e-mails, ouviu?!
Amiga de todas as crises e alegrias, desculpa o desabafo tão acalorado. Minha intenção não é te dar preocupação, mas eu precisava disso. Talvez por sentir que você me lendo daí, pudesse me transmitir essa sua ótima energia e diminuir minha dor. Seja como for, vou internalizar isso pra me sentir mais forte e aguentar as várias e várias provações que a vida ainda me reserva. E como você costuma dizer: C'est La Vie!
Com um enorme carinho e uma gigantesca saudade, sua sempre amiga, Bárbara.