Pedro Lindoso*
Luis Augusto é um coroa inteligente, bonachão, daqueles que contam a piada na hora certa, sem nunca ser inconveniente ou desagradável. É um sujeito pai-d’égua, como se diz aqui em Manaus. Aliás, Luis Augusto é amazonense. Morou muitos anos em Brasília. Voltou para Manaus porque só aqui tem pimenta murupi e farinha de uarini. Ambas, ótimas coisas para se comer com peixes da Amazônia. Luis Augusto é formado em Letras pela Universidade de Brasília–UnB. Foi servidor público e está aposentado, curtindo os netos e a vida.
Um dia, convidou-me para um concerto de jazz no Teatro Amazonas. Era grátis e quem tocava era o Hermeto Paschoal. Manaus tem dessas coisas e o resto do Brasil nem desconfia. Depois fomos tomar uma cervejinha no Bar do Armando, ícone da boemia manauara que fica no Largo São Sebastião, bem perto do Teatro Amazonas.
O bar estava cheio de jovens. Ele olhou bem e me disse: “Esses rapazes e moças são agressivamente jovens”. E continuou: “Na idade deles eu sempre procurava a companhia dos mais velhos. Hoje gosto de estar entre eles e as crianças. Mas um velhinho bem vivido e conversador é o máximo”. Eu que o diga, pensei. Apesar de Luis não ser ainda um velhinho.
Foi aí que Luis Augusto me contou sobre o dia em que, no final dos anos setenta, morando em Brasília, pegou seu fusquinha branco e foi bater em Goiás Velho, só para conhecer a Cora Coralina.
Chegou lá num sábado pela manhã. Visitou a cadeia pública, a igreja e por fim foi até a casa velha da ponte, onde morava Cora Coralina. Hoje a casa é um museu. A porta estava sempre aberta. Cora recebia todos, sem cerimônia: turistas, estudantes, gente da cidade. Luis entrou devagarzinho no santuário de Cora Coralina e viu que havia pessoas lá. Uma equipe da revista Manchete entrevistava Cora, que começava a ficar conhecida como uma pitoresca doceira octogenária, que escrevia poesia e morava em Goiás Velho. Mas ela já não era novidade para a rapaziada antenada da UnB.
“Eu fiquei sentado ouvindo a entrevista”. Disse-me Luis com os olhos brilhando, como se me contasse um segredo. “Tiraram umas fotos e eu saí na Manchete junto com a Cora Coralina“.
Perguntei ao Luis se ele se lembrava de algo importante que Cora Coralina havia revelado à jornalista que a entrevistara. Ele me disse que ouviu de Cora uma lição inesquecível. A jornalista argumentou que muitas pessoas a visitavam ultimamente: políticos, gente da imprensa, estudantes como o Luis que ali estava. E finalmente quem era seu melhor amigo? Teria Cora Coralina um melhor amigo àquela altura da vida?
Cora sorriu e pegou um dicionário Aurélio de cima da mesa de centro e disse; “Este é o meu melhor amigo – o dicionário. Eu trabalho com palavras. Sou doceira também, mas o meu melhor amigo é o dicionário.”
Eu disse ao Luis Augusto que o Brasil e o mundo deveriam saber disso. E ele sem qualquer modéstia perguntou: “que eu saí na Manchete com Cora Coralina?”
E eu lhe disse: você é um Zé Ninguém, cara. O que todo mundo precisava saber é que o melhor amigo de Cora Coralina era o dicionário!
(*) Pedro Lindoso é autor de O boto cor-de-rosa e o jacaré do rabo cotó,
melhor livro infantil, em 2008, no Prêmio Literário Cidade de Manaus.