Amigos do Fingidor

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Linguagens-culturas construindo e desconstruindo ritos de curas e práticas médicas – 9/11

João Bosco Botelho


Microscópios e micróbios


Contudo, como não poderia deixar de ser, a genialidade de Marcelo Malpighi estava em sintonia com algumas variáveis importantes, presentes no século 17. Além do estímulo coletivo de busca da materialidade da doença, que contagiou a Europa, os novos estudos da óptica foram fundamentais para que pudessem ser montados os microscópios mais potentes.

O depoimento de Malpighi ao utilizar as lentes de aumento trouxe à materialidade e ao visível outro mundo inimaginável: “O aparelho é fixado num círculo, móvel na base; para ver tudo é preciso girá-lo, num só golpe de olhos, pode-se ver apenas uma pequena parte do conjunto... Para observar objetos muito grandes é preciso poder distanciar e aproximar as lentes e isso é possível graças à mobilidade do aparelho.. Deve ser usado com um ar sereno e límpido, sendo melhor utilizável ao sol, para que o objeto seja bem iluminado. Contemplei inúmeros animais pequenos com admiração infinita: entre eles a pulga é horrível, o mosquito e a traça os mais belos e foi com grande contentamento como fazem a mosca e outros pequenos animais para caminhar”.

O conjunto das novas observações consequentes da utilização do microscópio foi tão grande e em espaço de tempo tão pequeno, que se formaram inúmeras associações científicas, onde eram comunicadas e discutidas as descobertas da microestrutura do corpo humano. Uma das aplicações imediatas das novas observações foi a identificação do ácaro como agente causador da sarna. Esta doença da pele já era conhecida desde os tempos bíblicos e foi incluída entre as oito doenças aceitas como contagiosas. A identificação do ácaro foi a primeira prova de que o microorganismo podia ser a causa de uma doença.

Foi a partir dessa nova concepção da realidade que a teoria atomista de Demócrito foi resgatada. Ela fora abandonada pela força da Teoria dos Quatro Humores gerada na Escola Médica de Cós. O conceito atomista da realidade foi retomado para explicar os fenômenos fisiológicos. Por outro lado, o modo como os médicos do século 17 se relacionavam com os doentes passou a ser questionado. A frieza com que a concepção mecanicista de vida impunha, determinava a simplificação das funções vitais a simples acontecimentos mecânicos. Os médicos passaram a se contentar com a descrição dos sintomas a distância. A partir dos dados obtidos de maneira indireta, estabeleciam o diagnóstico e o tratamento.

A crítica mais contundente da Medicina mecanicista foi fortalecida com as publicações de Thomas Sydenham (1624-1689). Esse genial autor trabalhou os últimos anos da vida tentando demonstrar que o ponto fundamental da Medicina era a presença do médico na cabeceira do doente, utilizando os recursos que pudessem auxiliar na cura.

O convencimento da utilidade do pensamento micrológico na busca da materialidade da doença alcançou o século 19. Nessa esteira, se tornou magistral o esforço de muitos médicos, especialmente de quatro entre eles, que se imortalizaram por terem evitado a morte e a dor de incontáveis doentes:

– Louis Pasteur (1822-1895)

O monumental trabalho de Pasteur tomou maior dimensão, em 1877, em torno dos estudos sobre a fermentação; em seguida, divulgou o método que ficaria conhecido como “pasteurizacão”, para conservar o vinho e o leite. De modo definitivo, acabou com a teoria da geração espontânea, defendida durante a Idade Média, que preconizava ser possível a vida surgir do ar, ao demonstrar que a cólera das galinhas era contagiosa e provocada por bactéria. Mesmo com a clareza dos argumentos, enfrentou ferozes inimigos que insistiam em negar a relação entre as bactérias com as doenças infecciosas. Entre os relevantes trabalhos de Pasteur, é possível destacar: identificação do estafilococo no furúnculo e na osteomielite (infecção no osso); identificação do estreptococo na febre puerperal (infecção pós-parto que matou milhões de mulheres); introduziu o termo vacinação; realizou a primeira vacinação antirrábica, em 6 de julho de 1885, numa criança de 9 anos de idade que tinha sido mordida por cão raivoso; introduziu a assepsia e antissepsia com famosa frase: “Se eu tivesse a honra de ser cirurgião, sempre lavaria as mãos com muito rigor e as exporia, rapidamente, ao calor, e só usaria instrumentos limpos previamente submetidos à temperatura entre 130 e 150 graus, e água tratada até 110 graus”.

– Robert Koch (1843-1910)

Esse notável médico alemão introduziu os meios de cultura capazes de fazer crescer, no laboratório, a maior parte das bactérias causadoras de doenças. Entre a enorme contribuição à humanidade, destacaram-se: definitiva comprovação de que cada doença infecciosa é causada por bactéria específica; isolamento, em 1882, do bacilo da tuberculose; identificação, em 1884, do vibrião da cólera.

– Alexandre Yersin (1863-1943)

Durante a epidemia, em Hong Kong, em 1894, esse médico suíço identificou o bacilo da peste e o papel do rato na transmissão da doença, contudo não associou a pulga como o elemento contagiante.

– Gehard Hansen (1841-1912)

Identificou o bacilo da lepra (Mycobacterium leprae), em 1873, a partir de preparações frescas e não coradas.

Além desses pilares da infectologia, apoiada busca da materialidade da doença, outros também se imortalizaram na identificação das causas de muitas doenças que causaram morte e dor durante milhares de anos:

– Febre tifóide:

a. Carol Eberth (1835-1926), em 1880, identificou o bacilo que recebeu o seu nome;

b. Émile Achar e Raoul Bensaude, em 1896, descrevem o paratifo.

– Tétano: identificado, em 1884, por Arthur Nicolaïer (1862-1921);

– Colibacilo: em 1885, por Theodor Escherich (1857-1911);

– Meningococo: em 1887, por Anton Weichselbaum (1845-1920);

– Cancro, em 1889, por Auguto Ducrey (1860-1940).

Ao lado desse incalculável avanço no diagnóstico micrológico, traduzindo a importância social do segundo corte epistemológico da Medicina, a cirurgia também obteve grande melhoria. Mesmo com os cuidados da assepsia e antissepsia preconizadas por Pasteur, incontáveis doentes morreram em consequência das complicações decorrentes das infecções no pós-operatório. O cirurgião deveria ser muito rápido e evitar as cavidades abdominais e torácicas pela possibilidade de as infecções pós-operatórias tornarem-se mortais.

Ainda com a resistência de muitos que ainda não acreditavam nos cuidados da assepsia e antissepsia, a maior parte dos cirurgiões, em pouco tempo, passaram a usar: máscaras cirúrgicas, luvas de borracha esterilizadas após cada cirurgia, proposta por Halsted, em 1889; esterilização sistemática e rigorosa dos instrumentos cirúrgicos; isolamento das salas de cirurgia e proibição de circulação de pessoal não autorizado; uso do ácido fênico para esterilizar o instrumental cirúrgico, introduzido por Joseph Lister (1827-1912), em 1867; lavagem permanente das áreas expostas pela cirurgia, durante o ato operatório, com compressas embebidas com ácido fênico, por Stéphane

Tarnier (1828-1897) e Just Lucas Championnière (1843-1913); lavagem obrigatória das mãos do pessoal médico e auxiliar com solução de cloreto de cálcio antes de qualquer manuseio genital no após parto. Somente com escovagem das mãos, o médico Ignace Semmelweis (1818-1865), numa maternidade em Viena, conseguiu reduzir a mortalidade de 27% para 0, 23%.

O deslumbramento das práticas médicas com a microestrutura como único caminho para a completa materialização das etiologias das doenças durou na justa medida da chegada do pensamento molecular.