Amigos do Fingidor

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

A tarde tão bonita que fazia não dava a mínima para o meu sofrimento

Inácio Oliveira



Hoje pela manhã descobri que tenho câncer. Minha mulher morreu da mesma doença três semanas atrás. Não tivemos filhos. Meus pais morreram quando eu era jovem, eles eram filhos únicos, eu sou filho único. Nunca tive amigos, portanto sou um homem sozinho. Agora estou aqui sentado no sofá da sala fingindo que espero alguém ou alguma coisa acontecer, mas eu sei que nada vai acontecer e que ninguém virá. Lá fora já anoiteceu, no entanto, eu não quero ficar aqui me lamentando, ainda tenho muitas coisas para resolver. Há pessoas que criam problemas, eu resolvo problemas. Foi isso que fiz a minha vida inteira, resolvi problemas. Preciso matar uma pessoa, mas eu nunca matei ninguém, não sei como fazer isso. Fico imaginando.

Eu toco a campainha. Ele abre a porta sem dizer nada. Eu digo, oi Aníbal, eu vim aqui acabar com essa sua porcaria de vida. Saco o revólver. Dou um tiro na cara dele. O sangue espirra nos móveis. Ele cai lentamente para trás, com a cara desfigurada. Eu limpo a arma com um lenço que trago no bolso. Dou meia volta e saio batendo a porta como um assassino cruel de sangue frio.

Ridículo, não é assim que se mata um homem. Nem mesmo um cretino como o Aníbal. Eu devia ser mesmo um marido desprezível para a minha mulher sair dando para um imbecil desses. O meu ódio por ele talvez não seja por ele ter transado com ela, talvez seja porque ele é jovem, bonito e saudável, insuportavelmente saudável com os seus dentes brancos demais; e eu um quase velho, calvo e cansado, com um câncer me corroendo por dentro. É a vida.

A primeira vez que eu o vi foi no cemitério, no dia do enterro dela. Ele estava lá com uma cara compungida e sofredora que me deu raiva. Ele não tinha o direito, ninguém tinha o direito de sofrer por ela a não ser eu, a pessoa com quem ela casou. Eu que sempre lhe dei tudo quanto um homem poderia lhe dar, eu que me domestiquei a seu lado e por um momento, embora houvéssemos esquecido, havíamos nos amado. Mas eu não sofria, queria sofrer, mas não conseguia derramar uma única lágrima sequer. Eu estava cansado demais para sofrer. No entanto ele estava lá, sofrendo. Dava para ver em seus olhos que ele estava sofrendo, parecia mais digno do que eu. Afinal, porque a morte da minha mulher o abalara tanto? Eu ainda não sabia que eles haviam tido um caso.

Descobri pouco tempo depois, quando tive que lidar com os rastros dela e ordenar seus vestígios. Eu era um corno póstumo. A morte sempre encobre muitas coisas, mas no meu caso Ela foi reveladora. Não revelou apenas minha solidão, mas revelou também a sujeira, o ódio, o desprezo, as ruínas do meu próprio mundo. Descobri entre os e-mails que eles trocavam: os encontros furtivos, confidências que ela nunca me fizera, as suas ausências inesperadas que agora eu compreendia, o amor clandestino que a deliciava. Descobri, sobretudo, que ela me odiava, assim como se odeia alguém que não se consegue amar. Descobri em meio a tudo aquilo uma mulher que não era a minha, não era a mulher com quem me casei e essa mulher eu desejei que estivesse viva para que eu pudesse matá-la com as minhas próprias mãos. Imagino.

Eu quebrando o seu pescoço com minhas mãos, assim como se quebra o pescoço de uma galinha. Um grito rouco se apagando dentro da sua garganta, os olhos arregalados, minhas mãos trêmulas de ódio e de prazer.

Inútil, ela está morta, irremediavelmente morta. E isso é o pior de tudo, eu nem tive a chance de me vingar. O que me resta é matar o Aníbal, uma vingança menor, mas ainda assim uma vingança, uma forma de me sentir honrado. Engraçado que, às vezes, a gente precise matar uma pessoa (ou várias) para se sentir honrado. Mas eu sei que isso não tem nada a ver com honra; é só vingança e ódio e não há honra na vingança nem no ódio. Tudo isso é só uma ilusão, mas o que é o homem sem suas ilusões?

Imagino outras possíveis mortes para o Aníbal. (eu não consigo parar de pensar nisso). É uma estrada interminável que corta uma imensa floresta, impecavelmente asfaltada, reta, deserta e silenciosa. Está anoitecendo. Eu estou no meu carro, vou devagar, olhando as árvores. Ele está fazendo cooper (sei que ele faz cooper, ele tem cara de quem faz cooper, é o tipo de sujeito que nas tardes de domingo coloca um tênis branco, veste um shortinho e uma camiseta para melhor destacar o seu corpo, e sai correndo pelas praças, ruas e parques para que todos vejam como ele é saudável, como ele é bonito; um exemplo a ser seguido). Agora ele está correndo nesta estrada imaginária que fiz para ele. Ele passa por mim, não me reconhece. Eu sei que é ele. Sigo, dou meia-volta e paro. Minha Ranger 3.0 vai de 0 a 100 em 12,5 segundos. É um baque seco, surdo, quase um silêncio. Tudo desaparece: a estrada, as árvores, Aníbal e a noite. Minha Ranger 3.0 voa sozinha no espaço.

Volto ao sofá da sala, onde devo estar sentado já há muito tempo, embora eu sinta como se o tempo não passasse, potencializando assim a minha angústia. Lá fora a cidade parece estranhamente calma, estranhamente silenciosa. E eu não posso ficar aqui me lamentando, sei que ainda tenho muitas coisas para resolver, mas sinto um mal-estar terrível por todo o corpo, uma impossibilidade de qualquer gesto. Tenho tantas coisas para resolver, mas talvez eu não faça nada.

Na noite passada sonhei com minha mulher e Aníbal. Sonho que eles estão transando aqui neste sofá onde estou sentado agora. Eu e minha mulher compramos este sofá juntos. Ela gostava muito dele. Com o tempo praticamente toda a mobília da casa foi trocada, exceto o sofá, que permaneceu aqui, cúmplice de nossas misérias. Fizemos muitas coisas neste sofá: assistimos televisão, recebemos vista, conversamos, discutimos, brigamos; no natal ela derramou uma taça de vinho nele. Fizemos tudo, mas nunca transamos neste sofá. No meu sonho, as imagens dos dois nus no sofá vêm em flash de sucessivos quadros diferentes, em closes e perspectivas diversas, rápidas e confusas como um caleidoscópio; numa dessas imagens ela está de quatro no sofá, noutra eles estão em pé: ela com um das pernas no chão e outra em cima do sofá, (uma elasticidade nunca antes pressentida), noutra ela está de cabeça pra baixo e ele em cima e vice-versa. As imagens se alternam rapidamente. Eles se amam com fúria e violência. Closes do rosto dele, do rosto dela: uma expressão de dor e prazer, os olhos apertados, a boca entreaberta, a língua para fora, uma coisa obscena. (Amanhã se eu ainda amanhecer vivo a primeira coisa que farei será trocar este sofá.)

Acordei sobressaltado, sentindo o meu peito esmagado por uma grande força, o ar que entrava com dificuldade por meus pulmões doía. Isso me fez lembrar os exames que eu havia feito duas semanas antes, quando escarrei sangue na pia da cozinha. Mas depois que descobri aqueles e-mails eu havia esquecido o assunto. O médico leu os exames, me examinou outra vez, me olhou com aquela cara como se fosse meu amigo de infância e disse que a situação era delicada, poucas coisas podiam serem feitas, mas que eu precisava iniciar o tratamento imediatamente. Eu disse simplesmente que estava bem e fui embora. Eu não ia me trancar num hospital para ser sacrificado como um carneiro. Além disso minha vida já estava acabada mesmo.
No entanto, quando saí daquele consultório, comecei a pensar desesperadamente em Shirley. Há muito tempo que eu não pensava nela, na verdade eu já havia até a esquecido, pois eu sempre sinto uma espécie de remorso toda vez que penso nas pessoas que gostaram de mim, e Shirley talvez tenha sido a única mulher que realmente me amou. E quem sabe, por isso mesmo, eu começava a pensar nela daquela forma perturbadora, infantil e idiota. Como se ela fosse minha mãe e eu uma criança que estivesse perdida e com medo, num lugar muito distante e sombrio, e só ela pudesse me salvar, me levar para sua casa, para o seu abrigo, para a sua segurança. Pensei tanto que sentei transtornado num dos bancos da praça, com os olhos fechados; pensava tanto nela que tinha a certeza de que se abrisse os olhos eu a veria ali na minha frente. Abri os olhos, ela não estava.

Então eu comecei a sentir um arrependimento tão grande, um arrependimento de tudo, como um cristão ruim que morreu e foi para o inferno, um arrependimento dos meus erros, de minhas escolhas, de toda a minha vida. Desejei inutilmente uma viagem impossível no tempo. Tudo o que eu queria agora era vê-la, somente olhar para ela. Eu não ia dizer nada, eu não tinha nada para dizer. Eu ia dizer o quê?

Eu ainda lembrava vagamente onde ela morava. Fazia muito tempo, a cidade mudara tanto, tudo pareceu ficar mais longe. Errei o dia todo pelos bairros da zona sul procurando encontrar a casa antiga onde ela morava, eu sabia que ela ainda morava lá. Nos vimos algumas vezes antes do meu casamento, mas mesmo naquela época já fazia tempo que eu não ia na sua casa. Tudo mudou, o lugar parecia ser outro, mas a casa continuava lá, estava diferente mas era a mesma casa, os muros um pouco mais altos. Eu ia tocar a campainha, parei por um momento que deve ter sido breve, mas que para mim foi uma eternidade.

Fiquei pensando. Pra que invadir sua vida assim, sem mais nem menos? Destruir sua paz e seu sossego? Ela não merecia isso. Desisti. Sai caminhando rua abaixo, dava para ver o rio lá de cima, alguns meninos jogavam bola num campo improvisado. Eu começava a sentir um dor funda que vinha dos pulmões e atravessava-me as costas. A tarde tão bonita que fazia não dava a mínima para o meu sofrimento.