Amigos do Fingidor

domingo, 14 de novembro de 2010

A nudez iluminada de William Blake

Jorge Bandeira

No século da Revolução Francesa, no ápice do movimento Iluminista, no Século da Razão, um bardo inglês, poeta, escritor, gravurista, inovador das artes plásticas, praticamente um “iluminado”, forjou com sua mente além daquele tempo um olhar paradigmático sobre a FORÇA DA NUDEZ, com sua obra de intenso vigor, que transbordava verdades por todas as direções.

Blake optou por retratar o corpo nu, de homens, mulheres, jovens e crianças de forma natural, mas com um movimento de musculatura em estado de contração, mesmo na imobilidade destes corpos. Uma visão vanguardista que foi repensada mais tarde por outro gênio da gravura, Gustave Doré, o homem que ilustrou A Divina Comédia, de Dante Alighieri. Aqui nosso foco é a forma poderosa desses nus de Blake, as cores vibrantes e a opulência de um traço e de uma profundidade de desenho que transbordava de um barroco, de um excesso, mas que via a nudez dentro de uma normalidade verdadeiramente humana.

Os corpos nus de Blake são colocados em primeiríssimos planos na composição, e os detalhes desta maneira singular de retratar a nudez passamos a analisar, à luz da historiografia das artes plásticas e da História. A força que encontramos nas obras de Blake são retratos de um artista que via na nudez uma maneira capaz de alcançar o absoluto, tal qual diz em um de seus mais famosos poemas: “Se as portas da percepção fossem abertas, o homem veria o que é e o que sempre foi: infinito!” Este infinito do que trato aqui é a nudez, e de como estamos irmanados por esta premissa alquímica de William Blake.

A gravura ao lado, "Glad Day or The Dance of Albion", é uma das milhares feitas por Blake para a série que deu origem à seu álbum sobre O Paraíso Perdido, de John Milton, e as cores usadas molduram a nudez deste ser mortal em toda sua esplendorosa nudez, seu corpo nu é retratado de forma estendida, livre, desimpedida, sem amarras, e o seu semblante nos transmite a tranquilidade de quem tem em sua nudez uma companhia segura, singela, vital. Raios em forma de auras espectrais emanam de seu corpo transbordante de energia, e a posição um tanto quanto inclinada de suas pernas, em um ângulo obtuso, fazem valer o plano elevado em que está nosso personagem ao natural. Uma perfeita geometria de um corpo que se revigora em sua nudez cintilante.

Blake, ao que consta em seus biógrafos, pouco usava de modelos-vivos, e quando fazia uso deste meio para seus trabalhos, os modelos passavam por uma jornada em completa nudez, que durava dias, até se acostumarem ao estado despido de seus corpos, quando então o grande bardo os considerava livres das amarras condicionantes de suas roupas. As marcas das roupas deveriam sumir de seus corpos. Era uma exigência deste gênio das letras e da pintura.


Acima, temos uma de suas obras-primas: "Isaac Newton", em todo o seu contorno corporal e com uma das mais clássicas figuras que já foi pensada, enquanto pose de um modelo, rivalizando com “O Pensador”, de Rodin. Esta obra merece uma atenção redobrada, porque alguns modelos de iconografia são necessários para esta análise. Ficamos, então, para não alongar o estudo, com o jogo de luz e sombras, e o excelente superobjetivo geométrico triangular que este corpo NU nos demonstra.

Vejam que a figura do compasso é replicada na posição da mão esquerda, da direita, do ângulo das pernas torneadas deste Newton, e atentemos também ao triângulo formado pela posição dos pés, o que coloca o espectador em um jogo infinito de possibilidades geométricas a partir das figuras. Os talhes musculares do corpo é outra ideia genial, pois as carcaças musculares se sobrepõem, levando a um estado de NUDEZ totalizante. O triunfal triângulo também está nos contornos do desenho, feito de forma pioneira, com elementos de chumbo em sua composição, dando um ar de esfumaçado e sépia às cores do artista. Blake experimentava como um alquimista as composições e jogos cromáticos. Vejam, com atenção, que o desenho se bifurca em dois triângulos, um de matiz azul escuro e outro, inferior, de cor cobre. É uma delícia aos olhos vislumbrar esta nudez!

Ao lado, temos mais um magnífico exemplar da perícia e técnicas inovadoras de William Blake, com cores vibrantes os corpos nus, agora de uma espécie de família angelical, remetem à tradição greco-romana, onde a nudez foi tida como uma aliada nas transformações mais essenciais daquelas antigas civilizações.
A nudez é um eterno movimento, é uma constante busca pelo infinito do corpo, a nudez transcende ao próprio corpo, parece nos dizer esta gravura portentosa. Blake continua seu traçado, e a nudez adentra no núcleo familiar, dos infantes aos adultos, a partir da célula mater da sociedade, a mãe, esplendorosa em sua nudez, inclusive como a protetora destes corpos nus, jovens que necessitam de eterna proteção.

A nudez é um forte componente da mensagem artística de Blake, ela garante a irmandade, a fraternidade, eis a mensagem messiânica que insere esta nudez numa tradição da pureza corporal pelo despojamento das vestes. Blake, visto como um místico e visionário, aqui tem na nudez sua companheira segura, seu porto atraente e de um dinamismo onde um corpo nu é visto em todo o seu clamor de liberdade e espontaneidade.

A nudez, em William Blake, é sua companheira de todas as horas, de todos os matizes, em todas as suas qualidades de desmascaramentos de preconceitos e de avanço civilizatório, da convivência entre os corpos, sem as imposições mantidas pelos séculos têxteis que tradicional e conservadoramente amarram as conquistas da humanidade. Se a nudez não é uma solução, sem dúvida ela é uma alternativa. Blake, o poeta naturista, enxergava além.

Canções da Inocência e Experiência, livro totalmente ilustrado por Blake, e mais uma vez ele coloca no mais alto degrau estético a NUDEZ, a nudez que ele semeou em nossos corações e nos de seus contemporâneos, num Iluminismo revigorado pelas imagens onde o ser humano é resgatado em sua essência, a nudez, capaz de tornar este homem um dinâmo em eterno movimento, e seu corpo nu, torná-lo-ia em arauto de uma aurora em estado de fogo, fogo que incinera as vestes e libertaria o homem de suas amarras.


William Blake (1757-1827), por Thomas Phillips (1770-1845).