Zemaria Pinto
III – O que não se sabe sobre Maranhão Sobrinho
José Américo Augusto Olímpio Cavalcanti dos Albuquerques Maranhão Sobrinho, nascido em Barra do Corda, Maranhão, no natal de 1879, escondia por trás do pomposo nome uma personalidade retraída, tímida. Pouco ou quase nada se sabe dele. Membro fundador da Oficina dos Novos e da Academia Maranhense de Letras, as poucas anotações sobre ele mostram-no como um boêmio inveterado. Alcoólatra, provavelmente. Veio para Manaus, como vinham muitos aventureiros, em busca da fortuna fácil prometida pela borracha. Mas, quando aqui chegou, em 1909, 1910, talvez, já se iniciara o declínio econômico. Sem família, conta-se que morava sozinho num barraco paupérrimo no subúrbio de Cachoeirinha. Imagino o poeta, bêbado, pela madrugada, atravessando a monumental Ponte de Ferro, na 7 de Setembro, ao encontro da solidão. Augusto dos Anjos não teria deixado essa vivência passar em branco. Faleceu, de causa desconhecida, no dia exato em que completaria 36 anos de idade. Os fundadores da Academia Amazonense de Letras, dois anos depois, homenagearam-no postumamente como patrono da cadeira número 7.
A partir da leitura destes Papéis Velhos, nenhuma informação é acrescentada, especialmente porque, transitando entre o Simbolismo e o Parnasianismo, mantinha-se distante de fornecer dados concretos sobre sua vida pessoal. Chama a atenção um poema, “Anjo morto”, a despeito do extremo mau gosto dos últimos versos, em que o poeta refere-se a uma filha morta. No livro Victorias-régias, esse tema retorna, porém como simples descrição de um acontecimento: “O enterro”. Mas alguns poemas parecem falar pelo próprio poeta, como “A um bêbedo”: Alguma cousa terrível, vingadora, / no mundo estulto, te persegue, bebe! A melancolia que domina seus poemas, fingida ou não, parece vir ao encontro dos versos de “Judeu errante”: Onde quer que se grave o meu passo maldito / sinto a terra gemer debaixo dos meus pés...
IV – Entre a veneração à Virgem e o culto a Satã
No ensaio Metafísica e Exílio, Ivan Teixeira inicia uma análise acerca da obra de Cruz e Sousa afirmando que se deve entendê-lo como um “poeta pós-romântico, e não necessariamente um simbolista, etiqueta que não o caracteriza com amplitude nem com precisão”. Esta é, na verdade, a chave para a compreensão de toda a poesia brasileira produzida no período entre os estertores do Romantismo e o advento do Modernismo. Parnasianos e simbolistas, na França, inclusive, trilham caminhos que se bifurcam num ponto e se entrecruzam num outro.
Reis Carvalho, citado por Assis Brasil na antologia A Poesia Maranhense no Século XX, diz que “em Maranhão Sobrinho a ideia é simbólica, o sentimento é romântico e a forma, parnasiana”. Numa época em que um bom soneto poderia fazer a fama de um poeta, Maranhão Sobrinho parece passar ao largo das preocupações com rótulos. É um perfeccionista, como todo bom parnasiano, resvalando aqui e ali pelo sentimental, mas sem perder oportunidade de questionar seu estar-no-mundo, a partir de uma individualidade que procura ver mais além, embora limitado pelo dogma. E aqui temos a primeira das duas grandes linhas mestras que parecem conduzir a poesia de Maranhão Sobrinho neste Papéis velhos: o misticismo, apoiado na fé cristã, mais precisamente, católica.
De um total de 87 poemas, pelo menos 14, todos na forma soneto, podem ser identificados dentro dessa vertente. “Soror Teresa” é o mais reproduzido entre eles, e embora não seja, a rigor, simbolista, trata de um tema caro à escola e a toda uma tradição herdada do barroco: o amor humano submisso ao amor divino, envolto num tênue véu de sensualidade, cujos principais expoentes são Santa Teresa D’Ávila, ela mesma, São Juan de la Cruz e Soror Juana Inés de la Cruz, esta mexicana, aqueles espanhóis. Latinos. Mas o poema é meramente descritivo. O poeta limita-se a descrever o que “observa”. Já no poema “Santa”, é o poeta que se dirige à personagem do título, a mesma Teresa, com uma ponta de luxúria: Santa! O teu nome é meu tormento! “Mãe” é outro poema na mesma linha, mudando o enfoque da sensualidade para a criação: brilha o teu vulto aéreo e sacrossanto / em cada verso que arquiteto e rimo!
Esta Mãe idealizada é apenas um reflexo da Mulher dos ideais de Maranhão Sobrinho. Ela é a “D. Mística”, o “Doce bem”, a “Musa impoluta”, a “Estrela matutina”, a “Cheia de graça”, a “Turris ebúrnea”. Todos esses títulos são usados para designar a Virgem Maria, o supremo arquétipo da mulher no cristianismo (perdão, no catolicismo: é que àquela época não havia muita diferença). Em “Salomé”, do hebraico “Shalem”, a perfeita, ele descreve a visão distante que tem da amada: Os teus seios em flor, que o meu beijo respeita, / são dois poços rosais em rosa florescência... E conclui:
Só tu enches de sol minhas crenças remissas
e lembra o teu candor, que me traz sob algemas,
hóstias, círios, altar, turíbulos e missas!
Aos não iniciados, as palavras do último verso enumeram acessórios rituais do catolicismo. Em “O Salmo da minha Bíblia”, essa ideia é reforçada: Ó Mística Visão dos meus Pesares / (...) mil vezes santa e duplamente pura! Mas é no ótimo “Turris ebúrnea”, torre de marfim, que Maranhão Sobrinho alcança o máximo da expressão místico-sensual:
Quero, deixando os pélagos e abismos
do mundo, ver-te, lá nos céus, sagrada
na grande Páscoa azul dos Misticismos!
Dos beijos teus tenho saudade e fome...
Minhalma vive, em dor, crucificada
nas cinco luas cheias do teu nome!
Ele faz planos para o além-vida, percebendo que a morte se aproxima. Seus sofrimentos físicos e morais cá na terra fazem dele um mártir, a quem a Virgem certamente acolherá. Essa é a única chance de unir-se à amada, de cujos beijos tem saudade e fome. Há uma tensão bem arquitetada entre o depressivo desejo de morte, “deixando os pélagos e abismos do mundo”, e a felicidade do encontro com a amada eterna, na grande Páscoa celebradora da permanente primavera mística, para, voltando os sentidos ao presente, entregar-se ao êxtase da dor, usando a imagem máxima representativa do cristianismo, a crucificação, na adoração das cinco letras do nome amado: MARIA.
Ilustração: capa da segunda edição de Papéis velhos... roídos pela traça do símbolo,
de Maranhão Sobrinho (Manaus: Editora Valer, 1999), onde este ensaio foi publicado.