Amigos do Fingidor

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Maranhão Sobrinho, o místico de Satã – 4/4

Zemaria Pinto


Por mera coincidência, são também 14 as composições onde a figura demoníaca ou sua sombra vem à tona, ainda que apenas na atmosfera do poema. A começar por uma descida ao inferno de Dante, onde, no “O Oitavo Círculo”, penam os maus conselheiros. Lá, Virgílio, a Voz do Bem, “mostrou-me Reis e púrpuras de Papas...”. Em “Poetas Malditos”, ele continua a desfiar suas preferências de leitura, numa alusão direta à coletânea do mesmo nome, organizada por Verlaine, publicada em 1884, que destacava os nomes de Arthur Rimbaud, Tristan Corbière e Stéphane Mallarmé. Maranhão Sobrinho ajunta-lhes uns outros malditos eternos, como Petrônio e Voltaire, para concluir com um verso inusitado, cuja fórmula de repetição seria usada ainda outras vezes: Satã! Satã! Satã! Satã! Satã! Satã!. “Na espiral do inferno” revela o “método” do poeta para alcançar mais força ao estro – a introspecção:

                    Quando em minhalma os plátanos do Horto
                    dos Sonhos gemem, como um kirie, ao vento, (...)


                    desço aos infernos do meu desconforto
                    nas asas triunfais do pensamento...

Mas é nos versos de “Satã”, dispostos na edição original logo após “Turris ebúrnea”, numa clara provocação, que o poeta perde a melhor oportunidade de dar “asas triunfais ao pensamento”, descrevendo, e apenas isso, com a melhor técnica parnasiana, um inferno ricamente ornado em pedrarias. Lendo os dois poemas na sequência, o leitor defronta-se com duas visões antagônicas, mostrando o próprio desconforto do poeta em mantê-las vivas dentro de si: 1) o místico por temperamento e simbolista por ideal, de um lado; 2) o satanista por opção e parnasiano por escolha própria, de outro. Maranhão Sobrinho carrega esse impasse e pinta-o com cores fortes no poema “Rubro”, vibrando nas sinestesias:

                    Cor de gritos! Clarim das cores! Serra
                    do emocional que o espírito retalha! (...)


                    Cor do Sol-Posto! Cor do Inferno! Cor
                    dos punhais e das lanças, difundida
                    por toda a terra, como a Luz e o Amor... (...)

                    Suprema cor da Morte e cor da Vida (...)

“Entre o céu e a terra”, “Visões” e “Em holocausto” podem ser lidos como relacionados entre si. No primeiro, “qual haste ao vento”, uma visada da humanidade: vejo esqueletos, em visões dançando, / cobertos de oiro, de paixões e vermes... No segundo, habitantes infernais vêm perturbar-lhe os sonhos: Brancas visões de Haydeas desgrenhadas. No terceiro, ele se entrega num ritual satânico: Serpe! podes morder meus sonhos que alanceias, / e enroscar-te no cedro augusto da minhalma!. Os três poemas são costurados pela linha tênue do sonho. Um recurso, aliás, que não precisaria ser explicitado.

“Rainha do mal” e “Bacante” também têm traços comuns, além de serem primas distantes daquela Fabíola de que se falou antes. Aqui, a mulher é idealizada de forma negativa, longe daquela acepção maternal, sendo mantida sempre a distância. Simbolizam a própria morte, mas não sem um certo charme, como se observa neste terceto da “Bacante”:

                    Há no teu seio, ó pérola bacante!
                    da brancura das brancas nebulosas,
                    toda a aromal luxúria do Levante.

“Memphis”, a mítica cidade egípcia, é outro poema prenhe daqueles símbolos sombrios: Pairam sobre os destroços sonolentos / de Memphis sombras, de pavor pejadas. “No horto de Getsêmani”, o caráter sombrio do poema, de novo descritivo, parece tornar-se mais leve quando constatamos, no verso final, em meio à tristeza pelo desaparecimento de Jesus, que era apenas o “vulto satânico de Judas”, errante, arrependido, talvez. Igualmente leve, apenas sugerida, é a sombra a pairar sobre o já citado “A um bêbedo”, quase didática: bebes no vinho, diluída, a morte...

Mas o poema que se destaca entre todos, nestes Papéis velhos, é o soneto “Interlunar”, uma delicada descrição do anoitecer – da vida. O clássico retrato do poeta cosmopolita lembra ao lúcido poeta provinciano a tarde que se vai:

                    Veloz como um corcel, voando num mito hircânio,
                    tremente, esvai-se a luz no leve oxigênio
                    da tarde, que me evoca os olhos de Stefânio
                    Mallarmé, sob a unção da tristeza e do gênio!

Naquele retrato, feito por Manet, guardado nalgum fundo de gaveta, ele reconhecia a si mesmo, por certo, especialmente pela unção de tristeza e incompreensão, os olhos baixos, perscrutando interiores. No poema “Crepusculares”, ele havia anotado, melancólico: Sei que mais uma tarde de saudade / leva-me o resto da manhã da vida...


V – A torre da concórdia


Há muito o que dizer do universo destes Papéis velhos, posto que nos ocupamos de não mais que um terço dos poemas nele contidos. Há, por exemplo, um caráter alegremente romântico contrapondo-se a uma morbidez recorrente que precisariam ser melhor explorados. Além disso, passamos ao largo de uma análise dos extratos fônico e semântico. Não posso deixar de observar, contudo, uma vez que representa um ponto de tensão dentro da poética de Maranhão Sobrinho, o já referido desconforto diante da forma. Maranhão Sobrinho é o típico poeta-legionário. Ele não tem pretensões a líder, não quer fundar religiões e despreza a história oficial. Mas nem por isso desiste de criar seu universo pessoal, caracterizando-se, ainda que timidamente, como um poeta-demiurgo. E nestes Papéis velhos, é fácil identificar a gênese desse universo: o desejo pessoal antagonizando com o desejo poético; o aplauso e o reconhecimento, dentro de suas limitações, versus a visão do futuro da arte poética. O poema “Torre de Sonho” parece evidenciar a chave desse conflito:

                    É a Torre do Triunfo, é a Torre da Conquista
                    pelos titãs da Forma à Emoção levantada
                    sobre alicerces de ouro, é a torre argamassada
                    com sangue a que só ascende a asa imortal do Artista!

A torre encantada é o ideal parnasiano frequentado pelo poeta dos símbolos, que, mais adiante, afirma que “muitos têm sucumbido da vertigem” por vê-la de perto. Ele, porém, vê chegar o seu momento de ascendê-la, “com um par de asas mais por cima de teus braços”. Sem esperança de alcançar a “suprema glória” (ver também esse poema) ainda em vida, o poeta, “alma em dor”, vê-se alçado, conduzido até a torre sonhada, após o seu desaparecimento.

Era um recado inútil, a província não lhe daria ouvidos. Aos poucos, ele foi sucumbindo ao peso da própria sombra. E seriam precisos 90 anos para que seu livro fosse reeditado e o poeta se reencontrasse com seu sonho.


Bibliografia

BRASIL, Assis. A poesia maranhense no século XX. Rio de Janeiro: Imago; São Luiz: SIOGE, 1994.

CAMPOS, Augusto de. Antipoesia no Simbolismo. In: Verso reverso controverso. 2ª edição. São Paulo: Perspectiva, 1988.

__________. O anticrítico. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

MURICY, Andrade. Panorama do movimento simbolista brasileiro. 3 volumes. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1952.

TEIXEIRA, Ivan. Metafísica e exílio. In: Revista Cult, nº 8. São Paulo: Lemos Editorial, março de 1998.

WILSON, Edmund. O castelo de Axel. Tradução de José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1993.

Ilustrações: Retrato de Mallarmé, por Édouard Manet (1832-1883);
2a. via da Certidão de Óbito de Maranhão Sobrinho;