Marco Adolfs
...Beber entre os rufiões do bar do Armando pelo menos fazia nascer uma grande e certa solidariedade e enlaço entre todos. E após, dormir bêbado, o retirava da possibilidade de sonhar. Gabriel Sombra parou então de relembrar essas coisas e retomou a escrita de onde havia parado. Estava claro então o caráter da solidão entre os homens: um andar sobre uma vale de sombras, com algumas luzes esparsas aqui e acolá. Uma solidão ainda mais cruel para aqueles que, como ele, vivia sem Deus no coração. Sim, porque para os crentes de todas as espécies, a solidão ou o estar sozinho, era uma oportunidade única de dizer: “quem está com Deus nunca está só!”. Não era isso que todos esses exclamavam como uma verdade que de tão absoluta fazia até aparecer uma pontinha de inveja em quem não acreditava nisso? Ou mesmo dúvida? Pois a Bíblia, esse livro para solidários ao culto dessa idéia não estava repleta de frases bastante incisivas e seguras afirmando essa presença constante de Deus? Gabriel resolveu então enumerar algumas tiradas desse livro: “Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam... Eu sou pobre e necessitado; mas o Senhor cuida de mim: tu és o meu auxílio e o meu libertador; não te detenhas, ó meu Deus...Não temas, porque eu sou contigo; não te assombres, porque eu sou o teu Deus; eu te esforço, e te ajudo, e te sustento com a destra da minha justiça...” Eram tantas as frases, que Gabriel Sombra resolveu parar por aqui. Mas uma coisa ele percebera bem, no que dizia respeito a esse aspecto rocambolesco de sua vida de “estar só”. Foi em determinado dia em que fora convidado para uma mesa de bar, e um de seus conhecidos, um professor do curso de letras da Universidade Federal do Amazonas, lhe caracterizou como o Carlitos, o personagem de Charles Chaplim; outro grande solitário. “Você me lembra o Carlitos, com sua elegante solidão de andarilho”. Na hora ele pensou que fosse uma ironia da parte do professor, mas depois percebeu o quanto da ficção histriônica do personagem chapliniano era parecida com a sua. Pelo menos no que dizia respeito ao aspecto da “pobre elegância”. Realmente, ele era pobre de bens materiais; vivendo em um cubículo repleto de livros e poeira; tendo com única riqueza a sua cultura pessoal. Mas ela, essa tal de cultura, pensou Sombra, o velho poeta solitário, nunca podia ajudar os seus momentos de solidão. Pelo contrário, complicava ainda mais. Mas o que poderia fazer contra? A solidão atinge, em algum momento, a todos e indiscriminadamente. É um sentimento que não escolhe as vítimas. Jovens burros e idosos cultos. Ricos e pobres, santos e pecadores são seus alvos. A criança que não é amada; o adolescente que não é compreendido; o deficiente físico; o feio; o retardado mental; o poeta; o louco excêntrico; o artista rodeado de adoradores; o empresário poderoso; o filho de pais separados e os casados que passam a se distanciar um do outro; os extremamente cultos como ele...