Amigos do Fingidor

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Antonin Artaud, do êxtase à vertigem

Zemaria Pinto



Monument to Antonin Artaud, por Yuri Zupancic.



A modernidade oscila entre o Mal e a Loucura. No meio destes, a solidão é o reflexo da liberdade que o artista logra conquistar para ser fiel à sua criação. A tentação do abismo pode ser uma viagem sem volta. Ao artista, dividido entre o homem-social e o homem-criador, resta a fuga pelos caminhos obscuros do misticismo ou das drogas. Ou de ambos.

Das experiências de Baudelaire, escrevendo sob o efeito do haxixe e do ópio, até a iniciação de Huxley com a mescalina, descrita em As portas da percepção, o Surrealismo abriu às artes, e em particular à literatura, a possibilidade de rejeitar o racionalismo e a lógica, enveredando pelo desconexo, pelo absurdo. O delírio paranóico, síntese lúdica do real desprezado, era o ideal dos que buscavam a alienação como forma de atuar criticamente na sociedade do entreguerras. Experimentar a loucura sem perder o equilíbrio passou a ser o fim de uma arte que buscava a interpretação sensorial do mundo. O artista não pode sentir da mesma forma que o homem comum, logo, ao homem duplo, dividido, deve compensar a transcendência da percepção.

Quando Antonin Artaud, poeta e dramaturgo francês, escreveu a versão definitiva de A Dança do Peiote, relatando sua passagem e iniciação entre os índios Tarahumaras, no México, já estava num estágio avançado dessa caminhada: a vertigem dos loucos que não têm mais poder sobre si. O que Artaud buscara sempre, o domínio da linguagem para fazê-la explodir para além das convenções sociais e das limitações da arte ocidental, acaba por levá-lo à solidão libertária da loucura. Como Holderlin e Nietzsche, Artaud permanece indecifrado: “eu não separo o meu pensamento da minha vida”. O paradoxo que se instala, o artista à frente de seu tempo, só pode ser aceito a partir da compreensão de certa metafísica da dor: “tudo o que não for um tétano da alma, ou não provier de um tétano da alma, não é verdadeiro e não pode ser aceito como poesia”. A crueldade, sobre a qual ele arquitetava a derrocada da linguagem, era, sobretudo, consigo mesmo – o “outro”, aos poucos, tomava o lugar do “eu” solitário, rompido, fragmentado, buscando a libertação.

A homenagem que Jorge Bandeira presta a Antonin Artaud neste Bela crueldade procura resgatar o ethos artaudiano, num ritual dionisíaco, trazendo-o do deserto mexicano para uma Manaus delirante, atualizando-o em seu protesto contra a bomba atômica, mas mantendo-o próximo de seus demônios mais íntimos. Jorge Bandeira não pretende a cura. Antes, decifra um “tétano na alma” para “mostrar apenas a verdade/ do possível grito humano”, ao perguntar “o que fez alguém amar/ com tanto fervor o Teatro/ a ponto de perder-se dentro/ de si?”. É com surpresa e alegria que descubro no excelente ator, já conhecido, um poeta ciente de seu ofício, capaz de levar às últimas consequências a máscara do Artaud com quem ele sonhou, fugindo do lirismo babaca que empesteia a provinciana poesia baré.

Apresentação de Bela crueldade, de Jorge Bandeira, de 1996. 2a. edição, em e-book, 2011.