Jorge Bandeira
Em cena, o ator Renato Borghi, um mestre na arte da ilusão, nome que está amalgamado com a própria história de nosso Teatro, um ator que não basta em si mesmo, reinventando-se a cada projeto – acho até que ele pode ser o nosso Benjamin Button, novíssimo a cada ano que passa. Deve ser um alquimista perdido em nossa ribalta, descobridor de uma pedra filosofal do teatro, e que, gentilmente, passa a fórmula desse rejuvenescimento para a gente. Ouso dizer, também, Borghi não precisa apelar para nada, tudo é feito de uma forma tão natural e bonita, arte mesmo, nada que lembre o teatro romano em sua fase de degeneração.
A peça, escrita pelo Fernando Bonassi(de outro petardo teatral, o monólogo Entre ferragens) e pelo Victor Navas, recebeu premiação na terra onde “deus é fidel”. Com todo o merecimento, não tenho dúvidas. Do que assisti em Manaus, vou ter sempre em minhas reminiscências o alto poder de sedução de Renato Borghi, de sua precisão como ator, da força que imprime em seu trabalho, de uma voz que ele trata como uma partner, que a carrega para onde quer, e que nos leva ao ponto precioso da reflexão num texto que é um libelo sobre a determinação do homem num mundo que teima pelo absurdo e burocratização de situações extremas, condutoras aos níveis de sufocamento dos seres humanos. Absurdo? Não creio. Por mais que o texto de Bonassi e Navas remeta a algumas situações da dramaturgia de um Ionesco (lembro de um sobre a mecânica absurda de se preparar um ovo), ele tem um charme, um propósito claro em sua dinâmica. É um texto que me impressiona pela simplicidade e clareza dentro do caos em que a personagem, talvez com um transtorno obsessivo compulsivo, se encontra ao perder, de forma inexplicável, sua mão, e toda situação que advém desse fato deveras caótico, e que só torna a situação existencial dele inusitada, mas plausível de acontecer com qualquer um de nós.
Por isso estamos tão próximos dele, de suas loucuras, de seus surtos, de suas alegrias e decepções com este mundo, com as pessoas que o cercam, com as autoridades médicas do corpo multidisciplinar, com os transeuntes. Eis um homem que leva agora sua “mão de Eurídice” artificial, um marionete da circunstância da vida. Essa mão que o faz refletir sobre sua vida, seus amores, e que nós, espectadores destes 45 minutos de humor e sarcasmo, nesta tragicomédia, nos alentamos e acalentamos, sentimos compaixão por este homem maneta, por este ser subtraído de sua completude corporal.
Renato Borghi nos brinda com um retrato desse personagem em 3D, sim, pois consegue nos transmitir a integridade de sua personagem, sua verbalização, o que se passa em sua mente, seu relato inverossímil que se torna verossímil, a expressão de sua emoção, sua reflexão e suas decisões, oscilantes ou não. Tudo que o espectador precisa para pulsar junto com ele, carregar também esse fardo pesado, viver com ele e por ele. Tudo isso com rigor e meticulosidade teatral, mas não um Teatro da assepsia da técnica, mas com um equilíbrio, como o definido por Denis Diderot em seu conhecido artigo “O Paradoxo do Comediante”. Uma balança fiel entre a razão e a emoção.
Renato Borghi é um mestre, usa com propriedade o monólogo interior, ele, um dos mentores do Teatro Oficina, atravessa sem pressa o mar de Stanislavski, não tem receio das ondas perigosas da interpretação. Como é fascinante assistir a um trabalho com um ator que sabe das nuances necessárias para fazer com que embarquemos no jogo lúdico chamado Teatro. Borghi canaliza sua emoção com apuro, o texto é falado e nada se perde, mesmo nos sussurros eventuais do personagem.
A iluminação do espetáculo cristaliza as passagens de forma eficaz, e é feita para induzir ao espectador que algo na persona, no ânimo e na emoção do personagem alterou-se, trabalho que a direção imprimiu como marca indelével e que funciona do início ao fim da peça, incluindo aí as marcas pontuais e geométricas da movimentação do infeliz personagem que perdeu a mão. E de absurdo em absurdo o personagem também lembra um clown urbanoide, um ser engolido pela cidade em sua loucura citadina.
A sonoplastia de extremo bom gosto é outro aperitivo para se acompanhar com essa lasanha teatral, colocar “Morphine”, do saudoso Mark Sandman, é assegurar coisas agradáveis em níveis de audição. O som da cafeteira nos faz tomar o café junto com o maneta carismático, de conversar no restaurante e dizer: quando você volta pra Manaus, meu chapa, vai demorar muito? Você precisa dar uma maõzinha pra gente aqui nesta cidade encravada no meio da Floresta Amazônica. Obrigado Borghi, promíscuos e embaixada do Teatro brasileiro, terminei o ano assistindo a um grande Teatro.
Manaus, 30 de dezembro de 2010
Três cigarros e a última lasanha
Dramaturgia de Fernando Bonassi e Victor Navas.
Direção de Debora Dubois.
Com Renato Borghi.
Cenário e Figurino: Cyro Del Nero e Debora Dubois.
Sonoplastia: Cacá Machado.
Iluminação de Alessandra Domingues e Marcos Franja.
Duração: 45 minutos.
Apresentada em Manaus, no Teatro do SESC, nos dias 18 e 19 de dezembro de 2010.
Ilustração: Renato Borghi em cena de Três cigarros... Foto de Jorge Bandeira.
Obs: o título foi tomado emprestado de um poema de Drummond.