Amigos do Fingidor

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

2º Troféu Padaria Espiritual

Jorge Tufic


Sérgio Pinheiro terá imaginado que o espaço de sua casa poderia violentar as leis da física, estando ao mesmo tempo em Mommartre, Lisboa ou na Praia de Iracema. E assim tem sido, desde que as vivências de cada um que a visita tragam consigo um pouco de todos os lugares do mundo, com a garantia, entretanto, de que se reserve à Fortaleza o grande privilégio de Lugar dos Lugares. No tempo, inclusive, a Galeria desse artista também liga a sua máquina de trazer para o presente o que jamais deve nem pode ficar apenas no passado, e cria, ou modela o troféu “Padaria Espiritual”, produto artístico de Zeno, esse outro mágico da transformação e da transfiguração do agora no sempre.

Aqui estivemos, quando o primeiro troféu fora conferido a Maria Luiza Fontenele. E aqui estamos novamente para vê-lo passar às mãos de Estrigas e Nice, cujo trabalho e merecimento desse Padaria Espiritual já cobrem de telas e desenhos o período compreendido entre 1952 e os dias que ainda sopram para as bandas do Mondubim, ali onde esse casal prossegue no empenho maior de dar forma, cor, beleza e palavra aos sentimentos de cada hora, aos chamados de cada manhã.

Não tive acesso a todo o universo crítico e biográfico de Nice, mas tive em mãos os catálogos “Nice & Estrigas” e “Estrigas: 23 textos/desenhos.” Nem foi preciso ir mais longe para entender que a musa do poeta se lhe torna propícia tanto numa como noutra atividade, ou seja, o artista plástico e o poeta surpreendem, por igual, quer através do traço, quer através do texto.

Quanto à Nice, ela começa pintando paisagens, se isola no Mondubim, descobre gente e desenha as pessoas. Até que, ao impacto da urbe cega e fervilhante, convive com crianças e estas passam a invadir sua vida, tomam conta de sua pintura, quem sabe definitivamente. Seus pássaros nos olham com a pureza das estrelas, suas dunas convidam para uma viagem silenciosa, por testemunhas a pedra e o vento. São artes e vidas que se completam, dueto orquestrado pela necessidade de criar, a partir de qualquer gênese, palimpsesto ou de repentinas imagens que tanto navegam pelo ar como latejam nos armários. É assim que os vejo, Estrigas & Nice.

Muito mais pode ser dito sobre a prosa e o texto de Estrigas. Lembra-me ele o natalense Dorian Gray Caldas, que também se completa e se divide entre a paleta e o verso. Eu li seus poemas, relendo alguns, e enquanto lia pensava na expressão fisionômica de sua fotografia mais recente, onde as marcas do tempo confirmam a dicção do poeta, ora quando fala da velhice, ora quando se vê sozinho, ora, ainda, quando acha que precisa de uma saudade ou pereniza o instante de uma flor, “no encontro/da tarde/ com a noite.”

Por muitas razões, sobretudo pelo conjunto de sua obra, Nice & Estrigas merecem o troféu. Um valioso troféu que sintetiza o ideário da Padaria Espiritual e o gênio do escultor cearense Zeno. Essa Padaria que Sânzio de Azevedo estuda e sobre a qual tanto já nos falara. A Galeria de Sérgio Pinheiro vive, portanto, um dia de festa. Revive, por assim dizer, a sua estréia nesse tipo de reconhecimento, homenagem e valorização daqueles artistas que, embora realizados, nunca voltam suas costas para o social. Aí estão as crianças de Nice e o que desta nos conta o Gilmar de Carvalho: “Por trás de uma aparente sedução, das cores fortes, da explosão da alegria, está uma tristeza incontida. As crianças da Nice não são felizes.”