Pedro Lucas Lindoso
O sol
mal abre as pálpebras, e já aparece o som da manhã no porto. Caminhão com todo tipo de cargas e
fretes. O ar, mesmo com um suave vento,
avisa que o calor vai chegar e não pede licença. É ali, no beiradão do rio,
entre sacas de cimento outras de trigo, pacotes, caixotes e encomendas que
começa a história dos porãozeiros.
Não é
de romance que se faz o oficio, mas de repetição firme: levantar, amarrar,
alinhar, empurrar, erguer. Cada caixa tem uma história que não cabe na
etiqueta: o cimento que veio de lá, a estiva que veio de cá. O porãozeiro sabe
decifrar o peso das coisas pelo silêncio que elas carregam. Um saco de cimento não
é apenas cimento; é a perspectiva que vai construir uma casa ou um muro, ou uma
calçada, num beiradão qualquer.
Diferente
do estivador que tem carteira assinada, horário fixo e jornada de trabalho, o
porãozeiro embarca junto com as mercadorias. Os porãozeiros carregam e
descarregam as mercadorias para o convés de carga da embarcação bem como de e
para os porões do navio. Daí o nome de porãozeiro.
Em
outros tempos e infelizmente em alguns barcos menos humanizados, os porãozeiros
dormem no meio das cargas, como se mercadoria fossem.
O porãozeiro
não reclama; ele regula o próprio fôlego como quem regula uma máquina antiga,
mantendo o pulso igual ao batimento do motor do navio.
O
balanço do navio denuncia a chuva que pode chegar, o movimento das cordas diz
quem está cansado hoje. E no meio dessa coreografia de força e prudência, surge
a paciência: a paciência de quem sabe que tudo o que entra e sai no navio
precisa de alguém para dizer “vai lá” e “já é hora de parar”.
Há porãozeiros
que chegam com histórias pesadas nos ombros: a dívida que não cala, o filho que
precisa de terapia, a casa que precisa de tinta. O porto de algum vilarejo amazônico,
porém, é um espaço de onde se volta para casa com o corpo mais pesado e o
coração mais leve ao mesmo tempo. Porque, no fim, o que o porãozeiro carrega
não é apenas peso físico. São as contas do mês, as contas da vida, a sensação
real de pertencimento a uma corrente maior que a própria força muscular.
Os dias
se espremem na paisagem hegemónica dos rios caudalosos e da floresta. E o sol
que às vezes parece fugir para o horizonte. Chega o meio-dia com a promessa de
almoço partilhado entre colegas. Um sorriso, um olhar triste ou mesmo o
silêncio que se faz cúmplice quando a conversa cai no afastamento das famílias
ou na saudade da cidade que ficou para trás. Porque o porãozeiro trabalha entre
dois mundos: o das cargas que entram e saem e o da gente que fica.
À
noite, quando o navio desliza pelos rios da Amazônia, os porãozeiros descansam
nas redes armadas junto a passageiros que pagam também para serem
transportados, mas respiram outras verdades. Embora, durante as horas de folga,
entre jogos de dominó e baralho, os porãozeiros compartilhem suas verdades e
histórias com os passageiros.
Quando
chega o dia de voltar para seu tapiri, para a rede de casa, com as mãos
ásperas, o peito carregado não só do que foi empurrado para dentro do porão,
mas também o que ficou desejado nas pequenas cidades amazônicas. Lugares e
pessoas guardados no fundo do peito. A
brisa de quem ficou para trás, a risada que não se apaga. Tudo marcado. Como o
destino que costura as suas vidas e sonhos a partir de pequenos gestos de força
diária. O porãozeiro organiza o mundo amazônico por meio do peso e do cuidado,
ele dá forma à matéria que move o comércio dos rios. Ele transforma trabalho em território de
convivência. E, no fim das contas, ele é a ponte entre o que foi feito e o que
ainda será entregue ao caboclo ribeirinho, sempre com a dignidade de quem sabe
que cada caixa é uma história pronta para ganhar o próximo capítulo.