Amigos do Fingidor

terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Uma história




Tainá Vieira

 

O meu primeiro livro eu o encontrei na casa de meu avô, Sandoval Gomes. Como eu sei que um dia iriam pesquisar sobre minha vida, família, meus gostos etc, etc, já vou logo adiantando um pouco. Esse meu avô era um cara muito incomum, sim, incomum dos outros avôs daquela cidadezinha do Oeste do Pará. Ele era conhecido pela sua bravura, era muito respeitado e temido por muita gente, e seus filhos e netos também eram respeitados. Fazer parte da família e carregar o seu sobrenome era uma honra. Seu Sandoval Gomes dos Santos foi um pracinha, expedicionário do exército brasileiro, foi à guerra, mas adoeceu e retornou da Itália. Não sei bem a história, só sei que quando o me entendi por gente ele era conhecido como Tenente, era mais respeitado do que o delegado, tinha muitas terras, muitas cabeças de gado e dinheiro também. Ele tinha uma casa imensa na qual morava sozinho, sozinho entre aspas, pois todos os dias o casarão ficava cheio de trabalhadores que iam cuidar de suas terras e plantações. 

Todo trabalhador queria trabalhar para o meu avô, pois ele pagava bem e a comida era muito boa, ele matava boi e porco, para alimentar seus serviçais.  Lembro-me também que havia cozinheiras e lavadeiras no casarão, essas que depois do jantar iam aquecer a cama de meu avô, pois ele era separado da vovó. Lembro-me também que meu avô tinha um motorista. Ele tinha dinheiro, podia desfrutar de tal lazer. Meu avô dava festas em datas comemorativas, como o dia do soldado, natal etc. As festas eram grandes e comentadas por toda a redondeza. Em relação à família, filhos e netos, ele foi inigualável, todos o adoravam. Quando chegávamos ao casarão tínhamos toda a regalia do mundo, mesa farta, criados para nos servir, podíamos fazer tudo lá, brincávamos naquele casarão e o deixávamos de cabeça para baixo. Mas também, tínhamos que ser obedientes e bem comportados, porque, afinal, tínhamos um nome. Hoje em dia quando leio romances brasileiros, aqueles que abordam os coronéis, senhores de engenhos e grandes fazendeiros, lembro-me de meu avô. Um dia, já fui princesa ou sinhazinha e já vivi em um reino. 

Eu disse que o meu primeiro livro eu o encontrei na casa de meu avô. Foi no tempo em que eu contava 10 anos, o último ano da existência dele na terra. Eu estava sozinha na casa e comecei a bisbilhotar, entrei num quarto onde meu avô passava a maior parte do tempo, tinha uma mesa, uma cadeira e uma estante com jornais velhos, e alguns livros, e também muitas caixas. Olhei para as caixas e elas estavam cheias de papel, ou melhor, livros e cadernos, me sentei ali e comecei a mexer naqueles livros, eles me atraíam muito, não tive como me conter, por isso continuei mexendo. Eram muitos livros, fiquei encantada, nunca tinha visto tantos livros na vida. Hoje, quando me lembro daquele dia, ainda fico impressionada, pois não era algo comum ou normal, não para um avô no interior, ou para um lugar como aquele. Acho que vem de meu avô a minha paixão com os livros. No casarão, sei que tinha muitos e sei também que meu avô os lia, pois eu lembro que gostava de ouvi-lo falar, ele falava bonito, tinha uma voz firme, uma pose e elegância quando dizia palavras.  

O livro pelo qual me apaixonei, era de capa dura e de cor vermelha com o título em letras douradas e parecia bastante antigo, era uma edição de Quincas Borba, de Machado de Assis. Havia outros livros do Machado, que mais tarde, já adulta, eu iria ler, mas eu gostei mesmo foi desse, Quincas Borba. Nunca havia contado a ninguém sobre essa história do meu primeiro livro. Como lembro sempre do meu falecido avô, resolvi contar. Foi minha primeira vez... Eu peguei o livro e o levei dali, meu avô não deu falta dele; no outro dia, à tardinha, eu o devolvi. Gostei demais. Depois, já mais velha, o reli, o reencontrei, e na faculdade, li-o pela terceira vez, foi quando fiz uma "análise" sobre ele.  "Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas". Se fosse a autora dele, daria mais vida ao Quincas, gostei dele, era um homem inteligente, merecia viver mais. Acho-o até um pouco parecido com Dom Quixote, não sei, são coisas minhas, eu sou assim, lembro de muita coisa ao mesmo tempo, mas não esqueço uma coisa: o Quincas. Então, a história começa com o seu Sandoval Gomes, que era meu avô, que tinha um casarão cheio de livros, eu era neta dele e peguei um livro seu e o li, me apaixonei por Machado e muito mais por Quincas Borba e por outros loucos iguais a ele, como Dom Quixote, e assim me tornei uma lunática também e com um propósito: lembrar dos loucos.
 

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Lábios que beijei 9


Zemaria Pinto

Negra



Esqueci o seu nome. Nem sei mesmo se alguma vez o soube. Só o seu rosto redondo encimando o corpo negro me vem nítido à memória. Mas algo me incomoda nessas lembranças: a resistência pétrea de sua carne. Tudo nela era rijo como pedra. Não de uma dureza maleável, como se esperaria de um corpo quase adulto. Pedra fria. Quando penetrei seu corpo, naquela tarde de sábado, na praia de Ponta Negra, estava úmida e dura. Nenhuma diferença entre os dentes e os seios. Uma tarde chuvosa, dezenas de enchentes depois, contei a história da minha primeira vez ao amigo poeta Alcides que, nervos à flor da pele, em plena mesa de bar, escreveu num guardanapo o sublime Na praia da Ponta Negra: “...Mas quando te sonho nua / na praia da Ponta Negra, / com gestos de pré-amar...”. Como era sua voz, como eram seus cheiros, a maciez de seus toques, a volúpia de seus beijos? A cena me vem silenciosa e muda, um melancólico filme antigo, nenhuma palavra, nenhum gemido, ao menos, um ai de dor ou de prazer. Apenas a rigidez da pedra fria: menina mulher, talhada em ônix.

domingo, 29 de dezembro de 2013

sábado, 28 de dezembro de 2013

Fantasy Art - Galeria


Jiansong Chen.


quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Deuses, heróis, bufões – uma dramaturgia amazônica 9/10


Zemaria Pinto


1.  Peças cariocas

As peças tratadas neste bloco, além do cenário motivador do título, escancaram o tema político dos anos 1960/70, sem subterfúgios: depois de tanta censura, a promessa do general Geisel, de uma distensão lenta e gradual, permitia ousar uma crítica menos velada ao “sistema”. Essa objetividade redunda em textos cuja leitura se completa sob a perspectiva histórica da época. Para os amazonenses, há um outro estranhamento: o referencial geográfico carioca, distante daquele teatro amazônico, trágico-iconoclasta, pleno de poesia.
Desentranhada do romance Operação Silêncio, de 1979, O elogio da preguiça, encenada pela primeira vez em 1980, põe em cena uma embaixatriz e um general ociosos e saudosos de tempos ainda mais duros, em oposição aos representantes da “classe operária”, Maria, a “afilhada” da embaixatriz, e João, que entra na história que nem o J. Pinto Fernandes, do poema “Quadrilha”, de Drummond. Recheada de expressões e situações chulas, bem ao gosto das platéias cosmopolitas, O elogio da preguiça cumpre sua função de farsa clássica, no emaranhado de quiproquós e na pouco sutil, mas muito engraçada, sessão espírita, onde o infeliz ectoplasma do camarada Stalin resolve dar o ar de sua graça
Ação entre amigos retoma o pano de fundo político, numa paisagem de fim de semana. Sem data de encenação ou escritura, trata-se de um thriller, com um crescendo que vai de uma tenebrosa tempestade a múltiplos assassinatos, com intermezzos de pesadelos, que ajudam a delinear melhor as principais personagens. Nesse tipo de trama, é melhor não adiantar nada para não frustrar o clímax, mas garanto que o culpado não é o mordomo, até porque nãoum nesse drama motivado pela vingança de uma vítima do regime militar

As peças cariocas parecem hoje deslocadas no conjunto da obra dramática de Márcio Souza, mas, do ponto de vista de sua evolução como escritor – dramaturgo, romancista, ensaísta –, elas são como elementos que se encaixam num grande painel de época. Se as metáforas das peças míticas, das tragédias e das chanchadas perduram é porque mantêm a “atualidade de sensações e preocupações”, enquanto as peças cariocas tratam de temas historicamente – talvez seja mais sensato dizerpresentemente” –  superados, como a ameaça ao estado democrático, ainda que subtemas, como a corrupção política e o ócio de uma classe decadente e improdutiva, nunca tenham sido tão atuais. De qualquer forma, a denúncia do grotesco representado pela tutela imposta pelo estado policial-militar é parte indissociável do legado do autor.    

Mecanicismo: construções do diagnóstico, tratamento e prognóstico



João Bosco Botelho


            A principal diferença entre a medicina-oficial (reconhecida pelo Estado), cujo represente é o médico, e as praticadas pelos curadores de todos os matizes, sejam as inseridas nas estratégias de catequeses das ideias e crenças religiosas (medicina-divina), cujos representantes, entre muitos outros espalhados nos cinco continentes, atados às respectivas culturas, são padres, pastores, médiuns, benzedores, pais e mães de santo, e as dos conhecedores do saber historicamente acumulado (medicina-empírica), com o pajé sendo o agente mais importante, reside no fato de a medicina-oficial estar assentada em torno de processos teóricos que constroem o diagnóstico, o tratamento e o prognóstico.
            Um desses processos teóricos – o mecanicismo – teve profunda influência nas práticas médicas oficiais a partir do século 16. Um pilar dessa mudança pode ser sentida nas palavras de Galileu Galilei (1564-1642): "Aquilo que acontece no concreto, acontece do mesmo modo no abstrato, os cálculos e raciocínios feitos com números abstratos devem corresponder aos cálculos feitos com moedas de ouro e prata. Os erros não estão no concreto ou no abstrato, na geometria ou na física, mas no calculador, que não sabe calcular".
Essa afirmação de Galileu retrata muito bem o pensamento dominante no Renascimento europeu: o progresso da ciência estava nas mãos dos homens. O conceito de máquina substituiu o de fábrica nos tempos de Galeno, na Roma do século 2. Desse modo, entre os séculos 16 e 17, os homens e mulheres da ciência começaram a medir a "máquina humana" em níveis nunca antes imagináveis.
Os antigos conceitos dos fenômenos fisiológicos e anatômicos de Hipócrates e Galeno foram criticados e substituídos com base na nova concepção científica. O corpo foi desvendado, dividido em partes e estas comparadas com o fole (pulmão), dentes (tesoura), filtro (rim) e outros. Apesar dos exageros, estava aberto outro caminho na compreensão do diagnóstico, tratamento e prognóstico.
O médico Santório (1561-1636) foi um dos primeiros a aplicar na medicina-oficial as novas concepções de medidas. Esse homem extraordinário mediu o ritmo por minuto da respiração e do coração, as quantidades diárias de saliva, urina e fezes. Comparando com o peso do alimento ingerido, concluiu que o corpo deveria eliminar por outras vias, parte do que era ingerido. No século seguinte, esses estudos serviriam de base para a primeira ideia daquilo que seria conhecida por metabolismo basal (conjunto de reações químicas endógenas para a produção de energia indispensável à vida).
A produção de Santório, publicada, em 1614, no livro Distatica Medicina, descreveu com incrível clareza a construção teórica comparando o corpo humano como uma fábrica, com os acontecimentos biológicos, longe de serem mágicos, seriam reproduções dos fenômenos físicos.
Nesse conjunto efervescente de saberes e dúvidas, se destacou Marcelo Malpighi, o precursor do pensamento micrológico, com a magistral descrição do invisível aos olhos, usando a lente de aumento: "Contemplei inúmeros animais pequenos com admiração infinita: entre eles, a pulga é horrível; o mosquito e a traça, os mais  belos, e com grande contentamento vi  como  fazem  a  mosca  e  outros pequenos animais para caminhar".
Os mecanicistas não estabeleceram relação coerente entre as partes, isto é, entre outros exemplos, como o coração se relaciona com o rim e o pulmão. Essas dúvidas seriam parcialmente aclaradas no século seguinte com os estudos experimentais de Claude Bernard.


quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Fantasy Art - Galeria


Artista desconhecido.

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Café de dezembro



Tainá Vieira

 

Então naquela manhã de dezembro, eu acordei muito magoada, coração ferido, era o segundo dia sem dizer palavra um para o outro, ele saiu sem se despedir. Fiquei pensando, dez anos de amor e tem que acabar assim?  Custei a internalizar aquela ideia de fim de casamento. Foi a primeira vez que não chorei, nas brigas anteriores só chorava, chorava tanto que meus olhos sumiam de tão inchados que ficavam. Mas naquele dia não queria chorar, prometi a mim mesma não chorar, não valia mais a pena. Meu peito ardia, meu corpo todo se contorcia de dor, de tristeza, de culpa, de remorso e de ódio. E um nó imenso na minha garganta que parecia que ia explodir a qualquer momento, e por um instante senti um pingo d’água quente sobre minha face, e desesperada gritei um “não”. Não podia ser lágrima, logo me acalmei e percebi que era suor, pois aquela manhã de dezembro estava demasiadamente quente, e quando notei, estava na cozinha preparando o meu café, a água já estava borbulhando na chaleira, por isso suei.

 Toda manhã, eu preparo o meu café, só eu o sei fazer, gosto-o não muito fraco e nem muito forte, nem muito doce e nem muito amargo, a empregada jamais acertou prepará-lo, aliás, empregadas nunca aprendem o que a gente ensina, elas sempre fazem tudo à sua maneira, elas fazem questão de não aprender, logo, eu tenho que preparar o meu café toda manhã. Quando olhei aquela água ali, borbulhando, muito quente, pensei na minha vida, estava daquele jeito, em reboliço, toda bagunçada, coloquei o açúcar na água quente e mexi, depois joguei a água sobre o pó de café que já estava no coador, senti um arrepio forte quando vi a água quente tocar o pó seco, era como se aquela água estivesse caindo sobre meu corpo, segurei firme a chaleira para não cair e continuei derramando a água. Quando caiu a ultima gota, agora já de café, passei horas de olhos fixos no pó assassinado, pois foi assim que o vi, morto, sem aroma, sem alegria, e novamente estava a pensar na minha vida, encontrava-me praticamente como o pó de café, a diferença é que eu ainda vivia, só não sabia até por quanto tempo.

Coloquei o café na garrafa e preparei a mesa, toda e qualquer refeição, eu gosto de fazer a mesa, mesmo sozinha, pois as refeições são como símbolos para mim, representam algo que é mais que sagrado, ainda que eu esteja magoada ou com raiva, sempre faço questão da mesa posta. Iniciei o ritual da primeira refeição, comia, bebia e pensava na minha vida, pensava nele, não, ainda não acreditava que aquele era o fim, eram dez anos, uma vida, não podia acabar assim, não, não ia terminar desse jeito, sem conversa, sem uma tentativa de recomeço... Foi aí que me lembrei de que já havia tido muitos “recomeços” e que todos os “recomeços” duravam apenas uma semana, e logo vinha o fim e foi assim que se passaram dez anos de fins e recomeços e todas às vezes eu encontrava-me ali, preparando o meu café, eu engolia um pouco de café e um pouco de mágoa, demorava a passar o café pela garganta que continuava com o nó. E meus olhos já estavam a ficar vermelhos, e repetia mentalmente, não vou chorar, não vou chorar...

De repente algo aconteceu, naquele dia, o café estava com um gosto diferente, não podia ser, falava sozinha, eu sempre acertei o ponto, o que fiz para agora estar tão amargo?! Enrubesci, não podia acreditar, café é para mim como uísque era para Vinicius, não podia acreditar que tinha errado o ponto, corri para a pia e fui olhar o coador na tentativa de ver se tinha posto pó a mais, não deu para perceber, fui ao açucareiro, será que coloquei açúcar a menos?! Também não deu para perceber, retornei a xícara e tomei um pouco mais de café, nossa, estava horrível, voltei ao coador, e aquele pó parecia chorar para mim, aí pensei, não podia ser, eu o vi morrer quando joguei a água quente sobre ele. E agora esse pó parece estar sorrindo para mim! Lembrei-me de meu marido naquele momento, não sei por que, só sei que com certeza haveria outro recomeço. Terminei meu delicioso café da manhã, corri à biblioteca e comecei a escrever esta crônica.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Antônio




Letícia Cardoso

 

 Aquele que ri
Apenas não recebeu ainda
A terrível notícia[1]

 

Já era tarde e eu não conseguia dormir. O trabalho na firma me deixava fatigado, o número de processos aumentou nos últimos dias por conta da suposta contaminação da água. A “Águas puras” teria que pagar indenização às quatro mil pessoas que moram ao redor de sua adutora. Isso sem falar dos outros cidadãos que consumiam a água dali e obviamente foram afetados por ela. Para a minha sorte, eu não sou advogado da empresa, faço parte da acusação.

O problema é que os martírios dos outros quando ouvidos com muita frequência, como é o meu caso, acaba nos afetando. Hoje, por exemplo, ao tomar o café da manhã não pude deixar de me recordar da história de seu Geraldo. Um velho agricultor que mora há 30 anos na região de Plácidos e além de trabalhar na fazenda próximo à empresa de água também era consumidor dos seus serviços.

Naquela semana voltava para casa entre as onze horas e meia noite. Não comia nada nesse horário, ia direto para o banho e depois dormia. Mas naquela madrugada de sexta as coisas pareciam diferentes.

Saí do meu quarto, fui atrás de algo para beber na cozinha. Encontrei apenas água. Ao bebê-la notei um bilhete pregado na cafeteira. Dizia que Antônio, nosso empregado, não estaria em seu horário de costume, pois sua mãe tinha passado mal no fim da tarde. Em outras palavras, teria que tomar meu café no botequim da esquina.

A madrugada quente e a insônia repentina fizeram da minha vida um inferno pelas quatro horas que se seguiram depois que voltei da cozinha. A cama molhada pelo suor das minhas costas rangia e tornara-se pequena para o meu corpo carente por descanso. Eis que às 4h20 ouvi a porta da frente de casa se abrir. Pensei em descer e ver quem chegava àquela hora, decerto deveria ser meu irmão vindo da esbórnia.

Como não ouvi barulho de nada sendo quebrado, realmente fiquei preocupado. Pois isso confirmava que não era o beberrão do meu irmão quem entrara em casa. Já próximo à porta do meu quarto entendi que o indivíduo encaminhara-se para a cozinha.

Pronto para descer, percebi que os passos eram leves e os ruídos denotavam o andar de Antônio e não de um bêbado. Do alto da escada ainda pude ver um pequeno vulto gordo entrar no dormitório do empregado. Descoberta a minha charada, voltei para a cama. Feliz por não ter que ir ao botequim de manhã, consegui, por fim, dormi um pouco.

Quando vi que o café não estava pronto resolvi bater na porta de Antônio. Não era possível que ele tivesse esquecido dos horários! Bati, chamei, mas não tive resposta. O vadio do meu irmão olhou-me de seu quarto reclamando do barulho.

– Ora! O santinho precisa de descanso?! – respondi-lhe atravessado.

Irritado comigo ele disse que fosse ao botequim tomar meu café, pois Antônio ainda não havia retornado. Antes mesmo que pudesse contestá-lo, o imprestável fechou a porta de seu quarto e minhas palavras acabaram por morrer nela.

Pedi uma média do Adalberto e quando me sentei em uma das mesas do botequim, Clóvis, o motoboy da empresa, abordou-me para contar sobre a morte de seu Geraldo. O pobre homem morrera desidratado. Davam-lhe água, soro caseiro, mas nada adiantava porque a sede de seu Geraldo só aumentava.

Clóvis, assustado, ainda disse-me que seu Geraldo morreu com os olhos petrificados no copo d’água que lhe serviram e a língua seca para fora da boca. Quando colocado em seu caixão, sua pele apesar de escura tinha uma transparência em que podia ser visto o sangue coagulado.

Eis que mais três dias se passaram e Antônio não voltara para casa, embora todas as madrugadas, ainda vítima da insônia que me acometera nos últimos tempos, ouvia os passos que iam para o quarto do empregado. Meu irmão disse que a imagem que vira da última vez deveria tratar-se da gata grávida que adorava dormir ali perto da cozinha. Não concordei, mas também não disse que discordava. Nunca se pode dar valor demais ao que os vadios falam, pois senão você acredita neles e aos poucos cede aos seus vícios e eu pretendo crescer na firma.

Eram três da manhã e eu não havia dormido ainda. Desci à cozinha e tomei um pouco do leite destinado à gata. Percebi que o sujeito de todas as madrugadas já adentrara o quarto do empregado. Espreitei no corredor e segui para o dormitório de Antônio. Ao chegar lá, o vi se contorcendo, tive que segurá-lo para que não se machucasse, sua boca estava seca e a pele escura, como a de seu Geraldo, também era fria e tinha cheiro similar a algo pútrido. Dei-lhe água duas, três, quatro vezes, até que ele se restabeleceu e dormiu. Ao acordar, percebi que ele não estava mais ali.

Faltei ao trabalho naquele dia. Fui atrás de meu empregado. Procurei-o na casa de sua mãe, mas ela me disse que não o via há uma semana. Encontrei com Paula, sua noiva, e esta contou-me que seu noivo não aparecera desde o fim de semana em que foram ao balneário da “Águas Puras”. Se antes apenas desconfiava, agora tinha certeza: Antônio tinha sido afetado pela água. Porém, estranhando a saúde de Paula, interroguei-a sobre o tal passeio. Ela me contou que não entrou na piscina. Odiava o tal lugar porque era abarrotado de gente e sempre acabava em confusão. Por isso, Paula preferiu ficar sentada no quiosque, observando seu noivo nadar.

– Ah, os caprichos das mulheres! Superficiais para nós, homens, mas, não raro, cobertos de razão – pensei. Na madrugada seguinte, a agonia de Antônio se repetiu. Eu o ajudei como da outra vez. Já fraco dormiu por dois dias, às vezes se debatia durante o sono e eu ou meu irmão o segurávamos. Chamamos um médico, mas ele disse que para o estado de Antônio não havia cura. Uma semana passou e meu empregado estava mais magro e estranhamente novo. Os momentos de grande crise eram no período noturno. Senti que o fim dele estava próximo. Por isso, mandei buscar sua mãe e sua noiva para que se despedissem dele. Paula não conseguiu entrar no quarto, desmaiou por causa do mau cheiro e pelo nervosismo diante daquela situação. A mãe, no entanto, manteve-se firme e entrou no dormitório. Dona Conceição segurou a mão de seu filho, acariciando-a. Uma lágrima caiu de seus olhos e eu a ouvi sussurrar:

– Durma em paz, filhinho...

Pedi uma licença de interesse particular na firma e acompanhei os últimos dias e noites de Antônio. Sua aparência escurecida e a força com que sua mão gélida me agarrou contrastavam com seu corpo pequeno de criança. Por um instante nossos olhares se cruzaram e eu pude ver um rastro de lucidez em seus olhos. Opacidade. E de repente, já estava morto.



[1] Brecht. “Aos que vão nascer”. In: Poemas 1913-1956: Bertolt Brecht. Seleção e tradução de Paulo César de Souza – São Paulo: Ed. 34, 2000. 

domingo, 22 de dezembro de 2013

sábado, 21 de dezembro de 2013

Fantasy Art - Galeria

 
Luis Royo.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Deuses, heróis, bufões – uma dramaturgia amazônica 8/10



Zemaria Pinto

 

 
1.  Chanchadas amazônicas


Antes, uma palavra sobre chanchada, vaudeville e revista. As três têm a música popular como suporte e uma origem marginal, ligada ao mau gosto e ao riso fácil. Com o tempo, entretanto, mudaram de status e viraram temas de laudatórias pesquisas acadêmicas, que reconhecem nos gêneros manifestações culturais da época, seja na Europa, nos Estados Unidos ou no Brasil. Ligada especificamente ao cinema, a chanchada caracterizou-se por apresentar comédias de baixo custo de produção e alto apelo popular. Ao relacionar as peças tratadas neste capítulo como chanchadas, estou apenas referindo as ligações de Márcio Souza com o cinema, sem nenhuma pretensão de mudar os gêneros nos quais ele classificou suas criações – vaudeville e revista. Afinal, como afirma o próprio autor: “Brecht nos havia ensinado a entender Marivaux” (1984, p. 46).  

Encenada pela primeira vez em 1976, As folias do látex (1997b, p. 65-121) é uma delirante viagem por quase duzentos anos de história do Amazonas, misturando informações projetadas e um vaivém de personagens, ora alegóricos, como o Coronel de Barranco, a Amazônia, o Lusitano, o Britânico e o Americano; ora saídos provisoriamente dos livros de história, como La Condamine, o casal Agassiz, Eduardo Ribeiro, Plácido de Castro, Euclides da Cunha e Stradelli. Tudo isso para louvar “os ignorantes mais refinados da Linha do Equador”: nós. Concebido com um vaudeville, As folias do látex é composto de vários quadros, conduzidos por um mestre de cerimônias e uma pianista nascida no mesmo ano de inauguração do Teatro Amazonas, o mais glorioso símbolo do ciclo da borracha. O resultado não deixa de ser funcionalmente engraçado, mas o riso é amargo, pois o objetivo do autor não é apenas a caricatura, mas sim a reflexão.

A sequência da trilogia farsesco-reflexiva é A resistível ascensão do Boto Tucuxi (1997c, p. 9-52), estreada em 1982, tendo os anos 1950 como cenário. Após um leve alento durante a segunda guerra mundial, a economia do Amazonas voltou ao fundo do poço. Manaus, que fora a Paris dos trópicos, era uma cidade em ruínas. É nesse cenário que as personagens desse drama brechtiano, encenado como um patético vaudeville, rastejam, entre bruxas macbethianas e tipos tirados de enredos de horror, numa síntese histórico-jocosa da política amazonense daquela época. Infelizmente, passados quase sessenta anos, mudaram os atores, mas o texto é o mesmo: 

– O Boto Tucuxi, herói da leseira baré, tão amazonense quanto leibniziano nesta terra onde a classe dominante é uma panglossiana confraria, não é mais que a Desrazão Insuficiente da nossa vontade extrativista. Com ele descobrimos a nossa pantomima, arcano da degenerada teodiceia do ciclo das águas, na neutralidade sublime da província iletrada. 

Na última cena, o Cabaré La Chunga, onde se passa toda a ação da peça, transforma-se na linha de montagem de uma fábrica de relógios da Zona Franca de Manaus, como a anunciar a terceira peça do grupo, Tem piranha no pirarucu (1997b, p. 137-174), originalmente intitulada (e censurada como) Zona Franca, meu amor. Encenada em 1978, trata-se de uma alegórica revista carnavalesca, que zomba do modelo econômico legado pela ditadura instaurada em 1964, para concluir, melancolicamente: “Porto de Lenha, tu nunca serás Liverpool...”. Condessa de Nivico, Coronel Bubu, Mister Pyle e Maria Piranha, mais o representante da “classe artística”, El Biscateiro, são alguns dos personagens cujos nomes identificam o tipo. A conclusão não poderia ser mais simbólica: uma índiamagra, o corpo dilacerado de torturas, arrastando-se penosamente o seguinte telex (ou fax ou e-mail): 

– Saigon (urgente): as primeiras sementes de Zona Franca roubadas pelos americanos de Manaus acabam de germinar no Jardim Botânico de Westmoreland. Os cientistas acreditam produzir racionalmente Zonas Francas dentro de dez anos. O monopólio amazonense de Zonas Francas estará assim quebrado.   

Essa veia satírica do teatro de Márcio Souza é a que mais se aproxima do romancista de Galvez, o imperador do Acre, O brasileiro voador ou O fim do terceiro mundo, tributários do humor corrosivo e anárquico de Oswald de Andrade, em cuja obra dramática pode ser vislumbrada a ascendência das chanchadas amazônicas de Márcio Souza. Em As folias do látex, o Mestre de Cerimônias justifica a forma: 

Nada como o vaudeville para se entender aquele tempo. Não, não é piada. Pode achar graça, se quiser, é uma constatação: o vaudeville como expressão da monocultura enlouquecida. A única arte que se aproxima do delírio.  

Mas se Oswald mira na decadência burguesa e na ascensão do socialismo, Márcio não nutre ilusões, restando-lhe rir, apenas, aquele riso amargo, como se deduz destas falas do Coronel Bubu e de Mister Pyle: 

– Manaus, o sorriso da vitória-régia. É um subúrbio meio distante do Rio de Janeiro.

Minha multinacional estar interessada em investir aqui. Penso em montar fábrica de coçadores de costas automáticos. Dizem que, com a quantidade de mosquitos que tem por aqui, deverá ser o mercado ideal.   

Para coroar o desfile dos bufões amazônicos de Márcio Souza, nada como relembrar o Hierofante, na última fala de A Morta: 

Respeitável público! Não vos pedimos palmas, pedimos bombeiros! Se quiserdes salvar as vossas tradições e a vossa moral, ide chamar os bombeiros ou se preferirdes a polícia! Somos como vós mesmos, um imenso cadáver gangrenado! Salvai vossas podridões e talvez vos salvareis da fogueira acesa do mundo! (ANDRADE, 2005, p. 73) 

O espírito trágico paira sobre a obra dramática de Márcio Souza, mesmo quando ela se propõe cômica, ecoando o “princípio de atualidade” de Artaud – “atualidade de sensações e de preocupações, mais do que de fatos” (apud ROUBINE, p. 189) – e levando ao extremo o pessimismo de Camus, para quem o niilismo tem valor quando transcendido (2008, p. 346-351). Lembra-me um velho poema de Drummond, “Congresso Internacional do Medo”, onde a esperança aparece de forma enviesada no último verso, quando não havia mais porque ter esperança: “e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas” (1974, p. 49).
 
O pessimismo é um traço da modernidade, desde Cervantes. O escritor moderno usa da ironia para transcendê-lo. É nesse ponto delicado que se dá a comunicação entre o autor e o leitor: se este subverte o código, virando pelo avesso a mensagem, a obra está salva. Se a leitura for direta e objetiva, entretanto, não terá havido comunicação.
 

Renascimento como resistência à morte

 

João Bosco Botelho

 

 

A necessidade incontrolável de dar sentido à vida, diferente da dos outros animais, e de minimizar a morte, expressa com transparência na História, contribuiu para materializar, como opostos, saúde e doença, prazer e dor. Saúde e prazer, sinônimos de vida, ficaram ligados ao bem, bom, belo; doença e dor, compreendidas como mal, ruim, feio, antecipavam o falecer temido, a morte.

            A pulsão inata para desvendar a forma visível, em especial o corpo, dotado com propriedades sensíveis de comunicar-se e locomover-se, para fugir da dor e da morte, pode ser considerada como a primeira verdade material. É verdadeira em si mesma, porque dá forma ao viver, num movimento caleidoscópico, composto na carnalidade da pele quente, realidade dos sentidos, da respiração e do ritmo cardíaco. Atinge e entrelaça o ser no mundo! .

            Quando a morte advém, como antítese da vida, emudece a memória, descolora a pele, resfriando-a e tornando-a insensível à dor, o pior dos tormentos. O movimento respiratório e o coração param. O corpo desfigurado pelo rigor cadavérico enche de sentido a vida dos que choram. É quando o vivo se apercebe da própria existência e rejeita a morte refletida na do outro.

O ser-tempo (homens e mulheres visíveis e mensuráveis), para reafirmar a vida e rejeitar a morte temida, serve-se da ficção para compor a possibilidade de o corpo morto do outro poder renascer entres os seres-não-tempo (almas e espíritos não visíveis, não mensuráveis). Essa incrível construção da inteligência humana prolonga a vida depois da morte, fortalece a crença de um renascimento, premiado ou castigado, nos moldes da vida vivida.

É a dialética fundamental entre a vida e a morte, atando com uma ligadura indissolúvel o ser-tempo e o ser-não-tempo.

Talvez nunca seja possível saber como a linguagem edificou esse pilar estrutural das relações sociais: a crença no renascimento que aprimora e prolonga os sentidos, marcando a separação do ser-tempo (homem vivo) do ser-não-tempo (homem morto) dos outros animais.

O imaginável renascimento dos homens e mulheres, empurrando os limites da vida, tem acompanhado as culturas, possivelmente, muito antes dos registros da linguagem escrita, entre ricos e pobres, numa dimensão e repetição que não podem ser atribuídas somente ao ordenamento social.

            É possível estabelecer relação teórica da vida após a morte com a ideia arcaica de renascer a partir dos ossos descarnados (Gn 2, 21-24 ). Datando da pré-história, com registros confiáveis, a prática da exumação ritual seguida da pintura dos ossos com ocra de cor vermelha, em associação ao sangue, como o maior símbolo da vida, sem o qual o renascimento seria impossível, e a rearrumação em sepulturas rituais. O professor Leroi-Gourhan, já falecido, da Sorbonne, no seu livro "As religiões da pré-história", editado em 1964, afirmou: "Já muito se disse sobre o papel dos corantes e sobretudo do ocre, no paleolítico superior: matéria-prima das pinturas parietais, considera-se também que serviu para colorir as sepulturas e os corpos dos vivos, simbolizando de um modo geral o sangue e, consequentemente, a vida, particularmente a do morto"

Fica difícil atribuir a crença no renascimento após a morte somente às culturas. Desse modo, é valido também teorizar sobre a possibilidade de existir uma memória-sócio-genética, que modula geneticamente certos aspectos da vida social, de modo semelhante a qualquer outro aspecto do corpo, como o da cor dos cabelos e dos olhos.

 

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Fantasy Art - Galeria



Pirotess on a pale horse.
Alan Gutierrez.

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Escrever para quê, se ninguém me lê?



Tainá Vieira

 

Há muito ando a procura de algo que não sei o que é. Por mais que eu tenha tudo que uma mulher pode ter, sempre sinto que falta algo. E não estou falando de coisas materiais ou sentimentais, não, o que falta é uma coisa que devia estar em mim, na minha alma, não sei. Os evangélicos diriam que eu deveria aceitar Jesus, me converter etc. Pois, segundo os evangélicos, esse vazio que algumas pessoas sentem é a falta de Deus. Se não tiver pai, filho e espírito santo, você será como o vento que voa sem direção.

Há muito que não escrevo, parei um pouco, pois percebo que não sou boa para isso, escrever é coisa séria, e eu só escrevo alguma coisa quando estou triste e isso eu não acho justo, um bom escritor tem que escrever sobre todas as coisas e não contemplar somente a tristeza, do contrário esse escritor será como o falso crente que só se lembra de Deus quando está em desespero. Bem, eu acho que não sou crente, pois quando entro em desespero recorro aos livros. Dom Quixote é bom para espantar a tristeza, os romances machadianos são bons para sonhar com o amor real e não como aqueles dos contos de fadas da Disney, Os Lusíadas e A Divina Comédia são ótimos para refletir sobre a vida, criar opinião etc.

Há algum tempo atrás quis ser poeta, no entanto vi que não nasci para isso, depois quis ser ficcionista e logo descobri que também não tinha talento... E foi nesse instante que me lembrei de que quando criança eu desenhava muito bem, sempre era eu a escolhida para fazer os desenhos na escola e todo mundo achava maravilhoso, aí pensei será que devo voltar a desenhar?! Rapidamente, peguei papel e um lápis e comecei... a pensar, porque pintar que é bom... nada. E lá se vai mais um sonho frustrado. E então foi que decidi dedicar-me somente à outra área que domino: a culinária. Ah, quando cozinho, realizo-me, gosto dos temperos, dos peixes, dos vinhos, das sementes, adoro preparar a mesa, deixá-la bem bonita para os convidados... Porém, cozinhar todo dia me cansa, me enjoa, gosto de cozinhar sim, mas uma vez ou outra. Nada mais. É, penso que o meu problema é sério mesmo. Nem poesia, nem prosa, nem desenho, nem cozinha...

Em nenhum me encontrei, ou talvez sim e estou a fugir deles. Não sei, não sei, “não sei se fico ou passo”. Todos os meus sonhos foram frustrados, devia ter vivido no tempo de Sócrates... Não, não seria uma boa ideia, pois do jeito que gosto de dizer a verdade sobre as pessoas, com certeza eu iria tomar cicuta também. Talvez eu vá para Nárnia, quem sabe lá eu me torne princesa e viva rodeada de súditos e assim exerço o que mais gosto de fazer: mandar. Não, penso que seria infeliz em Nárnia. Gostaria muito de encontrar-me com o “José” e seguir para “Pasárgada”, talvez lá eu preencha o vazio que sinto na alma.

 

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Lábios que beijei 8



Zemaria Pinto
Rita


A pele branca, as sardas combinando com os cabelos ruivos, o corpo magro, mas sem ossos, Rita levou meu sorriso, meus planos, os meus 13 anos, como na canção, que eu aprenderia muito tempo depois. Eu não sabia o que fazer com aquela menina que falava e agia como uma mulher. Mais velho, eu era apenas um joguete em suas mãos. Sua língua diminuta quase não entrava em minha boca, mas tinha um gosto tão doce, que poderia ficar horas sorvendo aquele mel que milagrosamente manava da flor anacarada. Mas Rita não me permitia mais que alguns segundos. Ainda hoje, acordo de sonhos inquietos sentindo o gosto da língua de Rita, abruptamente tomada de mim.

domingo, 15 de dezembro de 2013

sábado, 14 de dezembro de 2013

Fantasy Art - Galeria

 
Night Elf.
Todd F. Jerde.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Deuses, heróis, bufões – uma dramaturgia amazônica 7/10




Zemaria Pinto

 

Sem registro de encenação ou data de escritura, Contatos amazônicos de terceiro grau (1997a, p. 197-207) retoma a temática indígena, porém nos dias atuais, mostrando, em um ato rápido, o jovem casal Catuauá e Nudá, pertencentes a um povo rio-negrino ainda não contatado. A referência direta ao filme de Spielberg, que é de 1977, é uma ironia: os contatos do título referem-se ao encontro de Nudá com um brancofazedor de trovão”, que lhe entrega um gravador de fita cassete. Catuauá repreende a mulher por trazer para casa “essas coisas porcas que não compreendemos”. Os dois brigam e um movimento casual faz funcionar a engenhoca, “uma flauta que toca sozinha”, no entendimento de Nudá, “uma música bonita”. Catuauá considera que sua flautatoca música mais bonita” e que aquela flauta “é perigosa porque nela não passa o sopro de um homem vivo”. Nudá está enfeitiçada pelo que ouve: “– O que importa o sopro se a música cativa o nosso ouvido? Dize-me, homem, aquele que faz uma música bonita com esta, será capaz de matar, de nos matar?”

A iminente invasão é anunciada pelo trovão dos tratores, cada vez mais próximos. A música que toca no pequeno aparelho é o Requiem, de Mozart. Nada mais apropriado. 

Contatos amazônicos é o coroamento de dois ciclos, tanto em relação ao universo índio quanto à tragédia coletiva amazônica. A referência ao filme e o aparelho citado podem dar a ideia de sua criação pelo final dos anos 1970, mas sua temática continuará muito atual, enquanto os povos do rio Negro insistirem em resistir. No inevitável desenlace, Catuauá e Nudá serão alegorias de uma cultura que perdeu a energia vital para se deixar aprisionar na mera literatura.