Letícia Cardoso
Aquele que ri
Apenas não recebeu ainda
A terrível notícia[1]
Já era tarde e eu não
conseguia dormir. O trabalho na firma me deixava fatigado, o número de
processos aumentou nos últimos dias por conta da suposta contaminação da água.
A “Águas puras” teria que pagar indenização às quatro mil pessoas que moram ao
redor de sua adutora. Isso sem falar dos outros cidadãos que consumiam a água
dali e obviamente foram afetados por ela. Para a minha sorte, eu não sou
advogado da empresa, faço parte da acusação.
O problema é que os
martírios dos outros quando ouvidos com muita frequência, como é o meu caso,
acaba nos afetando. Hoje, por exemplo, ao tomar o café da manhã não pude deixar
de me recordar da história de seu Geraldo. Um velho agricultor que mora há 30
anos na região de Plácidos e além de trabalhar na fazenda próximo à empresa de
água também era consumidor dos seus serviços.
Naquela semana voltava
para casa entre as onze horas e meia noite. Não comia nada nesse horário, ia
direto para o banho e depois dormia. Mas naquela madrugada de sexta as coisas
pareciam diferentes.
Saí do meu quarto, fui
atrás de algo para beber na cozinha. Encontrei apenas água. Ao bebê-la notei um
bilhete pregado na cafeteira. Dizia que Antônio, nosso empregado, não estaria
em seu horário de costume, pois sua mãe tinha passado mal no fim da tarde. Em
outras palavras, teria que tomar meu café no botequim da esquina.
A madrugada quente e a
insônia repentina fizeram da minha vida um inferno pelas quatro horas que se
seguiram depois que voltei da cozinha. A cama molhada pelo suor das minhas
costas rangia e tornara-se pequena para o meu corpo carente por descanso. Eis
que às 4h20 ouvi a porta da frente de casa se abrir. Pensei em descer e ver
quem chegava àquela hora, decerto deveria ser meu irmão vindo da esbórnia.
Como não ouvi barulho
de nada sendo quebrado, realmente fiquei preocupado. Pois isso confirmava que
não era o beberrão do meu irmão quem entrara em casa. Já próximo à porta do meu
quarto entendi que o indivíduo encaminhara-se para a cozinha.
Pronto para descer,
percebi que os passos eram leves e os ruídos denotavam o andar de Antônio e não
de um bêbado. Do alto da escada ainda pude ver um pequeno vulto gordo entrar no
dormitório do empregado. Descoberta a minha charada, voltei para a cama. Feliz
por não ter que ir ao botequim de manhã, consegui, por fim, dormi um pouco.
Quando vi que o café
não estava pronto resolvi bater na porta de Antônio. Não era possível que ele tivesse
esquecido dos horários! Bati, chamei, mas não tive resposta. O vadio do meu
irmão olhou-me de seu quarto reclamando do barulho.
– Ora! O santinho
precisa de descanso?! – respondi-lhe atravessado.
Irritado comigo ele
disse que fosse ao botequim tomar meu café, pois Antônio ainda não havia
retornado. Antes mesmo que pudesse contestá-lo, o imprestável fechou a porta de
seu quarto e minhas palavras acabaram por morrer nela.
Pedi uma média do
Adalberto e quando me sentei em uma das mesas do botequim, Clóvis, o motoboy da
empresa, abordou-me para contar sobre a morte de seu Geraldo. O pobre homem
morrera desidratado. Davam-lhe água, soro caseiro, mas nada adiantava porque a
sede de seu Geraldo só aumentava.
Clóvis, assustado,
ainda disse-me que seu Geraldo morreu com os olhos petrificados no copo d’água
que lhe serviram e a língua seca para fora da boca. Quando colocado em seu
caixão, sua pele apesar de escura tinha uma transparência em que podia ser
visto o sangue coagulado.
Eis que mais três dias
se passaram e Antônio não voltara para casa, embora todas as madrugadas, ainda
vítima da insônia que me acometera nos últimos tempos, ouvia os passos que iam
para o quarto do empregado. Meu irmão disse que a imagem que vira da última vez
deveria tratar-se da gata grávida que adorava dormir ali perto da cozinha. Não
concordei, mas também não disse que discordava. Nunca se pode dar valor demais
ao que os vadios falam, pois senão você acredita neles e aos poucos cede aos
seus vícios e eu pretendo crescer na firma.
Eram três da manhã e eu
não havia dormido ainda. Desci à cozinha e tomei um pouco do leite destinado à
gata. Percebi que o sujeito de todas as madrugadas já adentrara o quarto do
empregado. Espreitei no corredor e segui para o dormitório de Antônio. Ao
chegar lá, o vi se contorcendo, tive que segurá-lo para que não se machucasse,
sua boca estava seca e a pele escura, como a de seu Geraldo, também era fria e
tinha cheiro similar a algo pútrido. Dei-lhe água duas, três, quatro vezes, até
que ele se restabeleceu e dormiu. Ao acordar, percebi que ele não estava mais
ali.
Faltei ao trabalho
naquele dia. Fui atrás de meu empregado. Procurei-o na casa de sua mãe, mas ela
me disse que não o via há uma semana. Encontrei com Paula, sua noiva, e esta
contou-me que seu noivo não aparecera desde o fim de semana em que foram ao
balneário da “Águas Puras”. Se antes apenas desconfiava, agora tinha certeza:
Antônio tinha sido afetado pela água. Porém, estranhando a saúde de Paula,
interroguei-a sobre o tal passeio. Ela me contou que não entrou na piscina.
Odiava o tal lugar porque era abarrotado de gente e sempre acabava em confusão.
Por isso, Paula preferiu ficar sentada no quiosque, observando seu noivo nadar.
– Ah, os caprichos das
mulheres! Superficiais para nós, homens, mas, não raro, cobertos de razão –
pensei. Na madrugada seguinte, a agonia de Antônio se repetiu. Eu o ajudei como
da outra vez. Já fraco dormiu por dois dias, às vezes se debatia durante o sono
e eu ou meu irmão o segurávamos. Chamamos um médico, mas ele disse que para o
estado de Antônio não havia cura. Uma semana passou e meu empregado estava mais
magro e estranhamente novo. Os momentos de grande crise eram no período
noturno. Senti que o fim dele estava próximo. Por isso, mandei buscar sua mãe e
sua noiva para que se despedissem dele. Paula não conseguiu entrar no quarto,
desmaiou por causa do mau cheiro e pelo nervosismo diante daquela situação. A
mãe, no entanto, manteve-se firme e entrou no dormitório. Dona Conceição
segurou a mão de seu filho, acariciando-a. Uma lágrima caiu de seus olhos e eu
a ouvi sussurrar:
– Durma em paz,
filhinho...
Pedi uma licença de
interesse particular na firma e acompanhei os últimos dias e noites de Antônio.
Sua aparência escurecida e a força com que sua mão gélida me agarrou
contrastavam com seu corpo pequeno de criança. Por um instante nossos olhares
se cruzaram e eu pude ver um rastro de lucidez em seus olhos. Opacidade. E de
repente, já estava morto.
[1] Brecht. “Aos que vão nascer”. In: Poemas
1913-1956: Bertolt Brecht. Seleção e tradução de Paulo César de Souza – São
Paulo: Ed. 34, 2000.