Amigos do Fingidor

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Antônio




Letícia Cardoso

 

 Aquele que ri
Apenas não recebeu ainda
A terrível notícia[1]

 

Já era tarde e eu não conseguia dormir. O trabalho na firma me deixava fatigado, o número de processos aumentou nos últimos dias por conta da suposta contaminação da água. A “Águas puras” teria que pagar indenização às quatro mil pessoas que moram ao redor de sua adutora. Isso sem falar dos outros cidadãos que consumiam a água dali e obviamente foram afetados por ela. Para a minha sorte, eu não sou advogado da empresa, faço parte da acusação.

O problema é que os martírios dos outros quando ouvidos com muita frequência, como é o meu caso, acaba nos afetando. Hoje, por exemplo, ao tomar o café da manhã não pude deixar de me recordar da história de seu Geraldo. Um velho agricultor que mora há 30 anos na região de Plácidos e além de trabalhar na fazenda próximo à empresa de água também era consumidor dos seus serviços.

Naquela semana voltava para casa entre as onze horas e meia noite. Não comia nada nesse horário, ia direto para o banho e depois dormia. Mas naquela madrugada de sexta as coisas pareciam diferentes.

Saí do meu quarto, fui atrás de algo para beber na cozinha. Encontrei apenas água. Ao bebê-la notei um bilhete pregado na cafeteira. Dizia que Antônio, nosso empregado, não estaria em seu horário de costume, pois sua mãe tinha passado mal no fim da tarde. Em outras palavras, teria que tomar meu café no botequim da esquina.

A madrugada quente e a insônia repentina fizeram da minha vida um inferno pelas quatro horas que se seguiram depois que voltei da cozinha. A cama molhada pelo suor das minhas costas rangia e tornara-se pequena para o meu corpo carente por descanso. Eis que às 4h20 ouvi a porta da frente de casa se abrir. Pensei em descer e ver quem chegava àquela hora, decerto deveria ser meu irmão vindo da esbórnia.

Como não ouvi barulho de nada sendo quebrado, realmente fiquei preocupado. Pois isso confirmava que não era o beberrão do meu irmão quem entrara em casa. Já próximo à porta do meu quarto entendi que o indivíduo encaminhara-se para a cozinha.

Pronto para descer, percebi que os passos eram leves e os ruídos denotavam o andar de Antônio e não de um bêbado. Do alto da escada ainda pude ver um pequeno vulto gordo entrar no dormitório do empregado. Descoberta a minha charada, voltei para a cama. Feliz por não ter que ir ao botequim de manhã, consegui, por fim, dormi um pouco.

Quando vi que o café não estava pronto resolvi bater na porta de Antônio. Não era possível que ele tivesse esquecido dos horários! Bati, chamei, mas não tive resposta. O vadio do meu irmão olhou-me de seu quarto reclamando do barulho.

– Ora! O santinho precisa de descanso?! – respondi-lhe atravessado.

Irritado comigo ele disse que fosse ao botequim tomar meu café, pois Antônio ainda não havia retornado. Antes mesmo que pudesse contestá-lo, o imprestável fechou a porta de seu quarto e minhas palavras acabaram por morrer nela.

Pedi uma média do Adalberto e quando me sentei em uma das mesas do botequim, Clóvis, o motoboy da empresa, abordou-me para contar sobre a morte de seu Geraldo. O pobre homem morrera desidratado. Davam-lhe água, soro caseiro, mas nada adiantava porque a sede de seu Geraldo só aumentava.

Clóvis, assustado, ainda disse-me que seu Geraldo morreu com os olhos petrificados no copo d’água que lhe serviram e a língua seca para fora da boca. Quando colocado em seu caixão, sua pele apesar de escura tinha uma transparência em que podia ser visto o sangue coagulado.

Eis que mais três dias se passaram e Antônio não voltara para casa, embora todas as madrugadas, ainda vítima da insônia que me acometera nos últimos tempos, ouvia os passos que iam para o quarto do empregado. Meu irmão disse que a imagem que vira da última vez deveria tratar-se da gata grávida que adorava dormir ali perto da cozinha. Não concordei, mas também não disse que discordava. Nunca se pode dar valor demais ao que os vadios falam, pois senão você acredita neles e aos poucos cede aos seus vícios e eu pretendo crescer na firma.

Eram três da manhã e eu não havia dormido ainda. Desci à cozinha e tomei um pouco do leite destinado à gata. Percebi que o sujeito de todas as madrugadas já adentrara o quarto do empregado. Espreitei no corredor e segui para o dormitório de Antônio. Ao chegar lá, o vi se contorcendo, tive que segurá-lo para que não se machucasse, sua boca estava seca e a pele escura, como a de seu Geraldo, também era fria e tinha cheiro similar a algo pútrido. Dei-lhe água duas, três, quatro vezes, até que ele se restabeleceu e dormiu. Ao acordar, percebi que ele não estava mais ali.

Faltei ao trabalho naquele dia. Fui atrás de meu empregado. Procurei-o na casa de sua mãe, mas ela me disse que não o via há uma semana. Encontrei com Paula, sua noiva, e esta contou-me que seu noivo não aparecera desde o fim de semana em que foram ao balneário da “Águas Puras”. Se antes apenas desconfiava, agora tinha certeza: Antônio tinha sido afetado pela água. Porém, estranhando a saúde de Paula, interroguei-a sobre o tal passeio. Ela me contou que não entrou na piscina. Odiava o tal lugar porque era abarrotado de gente e sempre acabava em confusão. Por isso, Paula preferiu ficar sentada no quiosque, observando seu noivo nadar.

– Ah, os caprichos das mulheres! Superficiais para nós, homens, mas, não raro, cobertos de razão – pensei. Na madrugada seguinte, a agonia de Antônio se repetiu. Eu o ajudei como da outra vez. Já fraco dormiu por dois dias, às vezes se debatia durante o sono e eu ou meu irmão o segurávamos. Chamamos um médico, mas ele disse que para o estado de Antônio não havia cura. Uma semana passou e meu empregado estava mais magro e estranhamente novo. Os momentos de grande crise eram no período noturno. Senti que o fim dele estava próximo. Por isso, mandei buscar sua mãe e sua noiva para que se despedissem dele. Paula não conseguiu entrar no quarto, desmaiou por causa do mau cheiro e pelo nervosismo diante daquela situação. A mãe, no entanto, manteve-se firme e entrou no dormitório. Dona Conceição segurou a mão de seu filho, acariciando-a. Uma lágrima caiu de seus olhos e eu a ouvi sussurrar:

– Durma em paz, filhinho...

Pedi uma licença de interesse particular na firma e acompanhei os últimos dias e noites de Antônio. Sua aparência escurecida e a força com que sua mão gélida me agarrou contrastavam com seu corpo pequeno de criança. Por um instante nossos olhares se cruzaram e eu pude ver um rastro de lucidez em seus olhos. Opacidade. E de repente, já estava morto.



[1] Brecht. “Aos que vão nascer”. In: Poemas 1913-1956: Bertolt Brecht. Seleção e tradução de Paulo César de Souza – São Paulo: Ed. 34, 2000.