João
Bosco Botelho
A principal diferença entre a
medicina-oficial (reconhecida pelo Estado), cujo represente é o médico, e as
praticadas pelos curadores de todos os matizes, sejam as inseridas nas
estratégias de catequeses das ideias e crenças religiosas (medicina-divina),
cujos representantes, entre muitos outros espalhados nos cinco continentes,
atados às respectivas culturas, são padres, pastores, médiuns, benzedores, pais
e mães de santo, e as dos conhecedores do saber historicamente acumulado
(medicina-empírica), com o pajé sendo o agente mais importante, reside no fato
de a medicina-oficial estar assentada em torno de processos teóricos que
constroem o diagnóstico, o tratamento e o prognóstico.
Um desses processos teóricos – o
mecanicismo – teve profunda influência nas práticas médicas oficiais a partir
do século 16. Um pilar dessa mudança pode ser sentida nas palavras de Galileu
Galilei (1564-1642): "Aquilo que acontece no concreto, acontece do mesmo
modo no abstrato, os cálculos e raciocínios feitos com números abstratos devem
corresponder aos cálculos feitos com moedas de ouro e prata. Os erros não estão
no concreto ou no abstrato, na geometria ou na física, mas no calculador, que
não sabe calcular".
Essa
afirmação de Galileu retrata muito bem o pensamento dominante no Renascimento
europeu: o progresso da ciência estava nas mãos dos homens. O conceito de
máquina substituiu o de fábrica nos tempos de Galeno, na Roma do século 2.
Desse modo, entre os séculos 16 e 17, os homens e mulheres da ciência começaram
a medir a "máquina humana" em níveis nunca antes imagináveis.
Os
antigos conceitos dos fenômenos fisiológicos e anatômicos de Hipócrates e
Galeno foram criticados e substituídos com base na nova concepção científica. O
corpo foi desvendado, dividido em partes e estas comparadas com o fole
(pulmão), dentes (tesoura), filtro (rim) e outros. Apesar dos exageros, estava
aberto outro caminho na compreensão do diagnóstico, tratamento e prognóstico.
O
médico Santório (1561-1636) foi um dos primeiros a aplicar na medicina-oficial
as novas concepções de medidas. Esse homem extraordinário mediu o ritmo por
minuto da respiração e do coração, as quantidades diárias de saliva, urina e
fezes. Comparando com o peso do alimento ingerido, concluiu que o corpo deveria
eliminar por outras vias, parte do que era ingerido. No século seguinte, esses estudos
serviriam de base para a primeira ideia daquilo que seria conhecida por
metabolismo basal (conjunto de reações químicas endógenas para a produção de
energia indispensável à vida).
A
produção de Santório, publicada, em 1614, no livro Distatica Medicina, descreveu com incrível clareza a construção
teórica comparando o corpo humano como uma fábrica, com os acontecimentos
biológicos, longe de serem mágicos, seriam reproduções dos fenômenos físicos.
Nesse
conjunto efervescente de saberes e dúvidas, se destacou Marcelo Malpighi, o
precursor do pensamento micrológico, com a magistral descrição do invisível aos
olhos, usando a lente de aumento: "Contemplei inúmeros animais pequenos com admiração infinita: entre eles, a
pulga é horrível; o mosquito e a traça, os mais
belos, e com grande contentamento vi
como fazem a
mosca e outros pequenos animais para caminhar".
Os
mecanicistas não estabeleceram relação coerente entre as partes, isto é, entre
outros exemplos, como o coração se relaciona com o rim e o pulmão. Essas
dúvidas seriam parcialmente aclaradas no século seguinte com os estudos
experimentais de Claude Bernard.