Amigos do Fingidor

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Deuses, heróis, bufões – uma dramaturgia amazônica 8/10



Zemaria Pinto

 

 
1.  Chanchadas amazônicas


Antes, uma palavra sobre chanchada, vaudeville e revista. As três têm a música popular como suporte e uma origem marginal, ligada ao mau gosto e ao riso fácil. Com o tempo, entretanto, mudaram de status e viraram temas de laudatórias pesquisas acadêmicas, que reconhecem nos gêneros manifestações culturais da época, seja na Europa, nos Estados Unidos ou no Brasil. Ligada especificamente ao cinema, a chanchada caracterizou-se por apresentar comédias de baixo custo de produção e alto apelo popular. Ao relacionar as peças tratadas neste capítulo como chanchadas, estou apenas referindo as ligações de Márcio Souza com o cinema, sem nenhuma pretensão de mudar os gêneros nos quais ele classificou suas criações – vaudeville e revista. Afinal, como afirma o próprio autor: “Brecht nos havia ensinado a entender Marivaux” (1984, p. 46).  

Encenada pela primeira vez em 1976, As folias do látex (1997b, p. 65-121) é uma delirante viagem por quase duzentos anos de história do Amazonas, misturando informações projetadas e um vaivém de personagens, ora alegóricos, como o Coronel de Barranco, a Amazônia, o Lusitano, o Britânico e o Americano; ora saídos provisoriamente dos livros de história, como La Condamine, o casal Agassiz, Eduardo Ribeiro, Plácido de Castro, Euclides da Cunha e Stradelli. Tudo isso para louvar “os ignorantes mais refinados da Linha do Equador”: nós. Concebido com um vaudeville, As folias do látex é composto de vários quadros, conduzidos por um mestre de cerimônias e uma pianista nascida no mesmo ano de inauguração do Teatro Amazonas, o mais glorioso símbolo do ciclo da borracha. O resultado não deixa de ser funcionalmente engraçado, mas o riso é amargo, pois o objetivo do autor não é apenas a caricatura, mas sim a reflexão.

A sequência da trilogia farsesco-reflexiva é A resistível ascensão do Boto Tucuxi (1997c, p. 9-52), estreada em 1982, tendo os anos 1950 como cenário. Após um leve alento durante a segunda guerra mundial, a economia do Amazonas voltou ao fundo do poço. Manaus, que fora a Paris dos trópicos, era uma cidade em ruínas. É nesse cenário que as personagens desse drama brechtiano, encenado como um patético vaudeville, rastejam, entre bruxas macbethianas e tipos tirados de enredos de horror, numa síntese histórico-jocosa da política amazonense daquela época. Infelizmente, passados quase sessenta anos, mudaram os atores, mas o texto é o mesmo: 

– O Boto Tucuxi, herói da leseira baré, tão amazonense quanto leibniziano nesta terra onde a classe dominante é uma panglossiana confraria, não é mais que a Desrazão Insuficiente da nossa vontade extrativista. Com ele descobrimos a nossa pantomima, arcano da degenerada teodiceia do ciclo das águas, na neutralidade sublime da província iletrada. 

Na última cena, o Cabaré La Chunga, onde se passa toda a ação da peça, transforma-se na linha de montagem de uma fábrica de relógios da Zona Franca de Manaus, como a anunciar a terceira peça do grupo, Tem piranha no pirarucu (1997b, p. 137-174), originalmente intitulada (e censurada como) Zona Franca, meu amor. Encenada em 1978, trata-se de uma alegórica revista carnavalesca, que zomba do modelo econômico legado pela ditadura instaurada em 1964, para concluir, melancolicamente: “Porto de Lenha, tu nunca serás Liverpool...”. Condessa de Nivico, Coronel Bubu, Mister Pyle e Maria Piranha, mais o representante da “classe artística”, El Biscateiro, são alguns dos personagens cujos nomes identificam o tipo. A conclusão não poderia ser mais simbólica: uma índiamagra, o corpo dilacerado de torturas, arrastando-se penosamente o seguinte telex (ou fax ou e-mail): 

– Saigon (urgente): as primeiras sementes de Zona Franca roubadas pelos americanos de Manaus acabam de germinar no Jardim Botânico de Westmoreland. Os cientistas acreditam produzir racionalmente Zonas Francas dentro de dez anos. O monopólio amazonense de Zonas Francas estará assim quebrado.   

Essa veia satírica do teatro de Márcio Souza é a que mais se aproxima do romancista de Galvez, o imperador do Acre, O brasileiro voador ou O fim do terceiro mundo, tributários do humor corrosivo e anárquico de Oswald de Andrade, em cuja obra dramática pode ser vislumbrada a ascendência das chanchadas amazônicas de Márcio Souza. Em As folias do látex, o Mestre de Cerimônias justifica a forma: 

Nada como o vaudeville para se entender aquele tempo. Não, não é piada. Pode achar graça, se quiser, é uma constatação: o vaudeville como expressão da monocultura enlouquecida. A única arte que se aproxima do delírio.  

Mas se Oswald mira na decadência burguesa e na ascensão do socialismo, Márcio não nutre ilusões, restando-lhe rir, apenas, aquele riso amargo, como se deduz destas falas do Coronel Bubu e de Mister Pyle: 

– Manaus, o sorriso da vitória-régia. É um subúrbio meio distante do Rio de Janeiro.

Minha multinacional estar interessada em investir aqui. Penso em montar fábrica de coçadores de costas automáticos. Dizem que, com a quantidade de mosquitos que tem por aqui, deverá ser o mercado ideal.   

Para coroar o desfile dos bufões amazônicos de Márcio Souza, nada como relembrar o Hierofante, na última fala de A Morta: 

Respeitável público! Não vos pedimos palmas, pedimos bombeiros! Se quiserdes salvar as vossas tradições e a vossa moral, ide chamar os bombeiros ou se preferirdes a polícia! Somos como vós mesmos, um imenso cadáver gangrenado! Salvai vossas podridões e talvez vos salvareis da fogueira acesa do mundo! (ANDRADE, 2005, p. 73) 

O espírito trágico paira sobre a obra dramática de Márcio Souza, mesmo quando ela se propõe cômica, ecoando o “princípio de atualidade” de Artaud – “atualidade de sensações e de preocupações, mais do que de fatos” (apud ROUBINE, p. 189) – e levando ao extremo o pessimismo de Camus, para quem o niilismo tem valor quando transcendido (2008, p. 346-351). Lembra-me um velho poema de Drummond, “Congresso Internacional do Medo”, onde a esperança aparece de forma enviesada no último verso, quando não havia mais porque ter esperança: “e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas” (1974, p. 49).
 
O pessimismo é um traço da modernidade, desde Cervantes. O escritor moderno usa da ironia para transcendê-lo. É nesse ponto delicado que se dá a comunicação entre o autor e o leitor: se este subverte o código, virando pelo avesso a mensagem, a obra está salva. Se a leitura for direta e objetiva, entretanto, não terá havido comunicação.