Zemaria Pinto
1. Chanchadas
amazônicas
Antes, uma palavra sobre chanchada , vaudeville e revista . As três
têm a música popular
como suporte
e uma origem marginal ,
ligada ao mau gosto e ao riso fácil . Com o tempo , entretanto , mudaram de status e viraram temas de laudatórias pesquisas
acadêmicas, que reconhecem nos gêneros
manifestações culturais da época , seja na Europa,
nos Estados Unidos ou no Brasil. Ligada
especificamente ao cinema , a chanchada caracterizou-se por
apresentar comédias
de baixo custo
de produção e alto
apelo popular .
Ao relacionar as peças tratadas neste capítulo
como chanchadas ,
estou apenas referindo as ligações de Márcio Souza com
o cinema , sem
nenhuma pretensão de mudar
os gêneros nos
quais ele
classificou suas criações – vaudeville e revista. Afinal , como
afirma o próprio autor :
“Brecht já nos
havia ensinado a entender Marivaux” (1984, p. 46).
Encenada pela primeira vez em 1976, As folias
do látex (1997b, p. 65-121) é uma delirante viagem
por quase
duzentos anos de história
do Amazonas , misturando informações projetadas e um
vaivém de personagens , ora alegóricos, como
o Coronel de Barranco ,
a Amazônia, o Lusitano , o Britânico
e o Americano ; ora
saídos provisoriamente dos livros de história ,
como La Condamine, o casal Agassiz, Eduardo Ribeiro ,
Plácido de Castro, Euclides da Cunha e Stradelli. Tudo
isso para louvar “os ignorantes
mais refinados da Linha
do Equador ”: nós .
Concebido com um
vaudeville ,
As folias
do látex é composto de vários
quadros , conduzidos por
um mestre de cerimônias e uma pianista nascida no mesmo ano de inauguração do Teatro
Amazonas , o mais
glorioso símbolo
do ciclo da borracha .
O resultado não
deixa de ser funcionalmente engraçado , mas o riso é amargo , pois o objetivo do autor não
é apenas a caricatura ,
mas sim
a reflexão .
A sequência da trilogia farsesco-reflexiva é A resistível ascensão do Boto Tucuxi (1997c, p. 9-52), estreada em 1982, tendo os anos
1950 como cenário .
Após um leve alento durante a segunda
guerra mundial, a economia
do Amazonas voltou ao fundo do poço .
Manaus, que já
fora a Paris dos trópicos ,
era uma cidade
em ruínas .
É nesse cenário que
as personagens desse drama brechtiano, encenado como
um patético
vaudeville, rastejam, entre bruxas
macbethianas e tipos tirados de enredos de horror ,
numa síntese histórico-jocosa da política amazonense
daquela época . Infelizmente ,
passados quase sessenta anos , mudaram os atores, mas o texto
é o mesmo :
– O Boto
Tucuxi, herói da leseira baré, tão amazonense quanto leibniziano nesta terra
onde a classe
dominante é uma panglossiana confraria , não
é mais que
a Desrazão Insuficiente da nossa vontade
extrativista. Com ele
descobrimos a nossa pantomima ,
arcano da degenerada teodiceia do ciclo das águas ,
na neutralidade sublime da província iletrada .
Na última
cena , o Cabaré
La Chunga, onde se passa
toda a ação
da peça , transforma-se na linha de montagem
de uma fábrica de relógios
da Zona Franca
de Manaus, como a anunciar
a terceira peça
do grupo , Tem piranha no pirarucu (1997b,
p. 137-174), originalmente intitulada (e
censurada como) Zona Franca ,
meu amor .
Encenada em 1978, trata-se de uma
alegórica revista carnavalesca ,
que zomba do modelo econômico
legado pela
ditadura instaurada em
1964, para concluir ,
melancolicamente: “Porto de Lenha ,
tu nunca
serás Liverpool...”. Condessa de Nivico,
Coronel Bubu ,
Mister Pyle e Maria Piranha ,
mais o representante da “classe
artística ”, El Biscateiro ,
são alguns
dos personagens cujos
nomes já
identificam o tipo. A conclusão não poderia ser mais simbólica:
uma índia “magra ,
o corpo dilacerado de torturas , arrastando-se penosamente ”
lê o seguinte
telex (ou
fax ou e-mail ):
– Saigon (urgente ):
as primeiras sementes de Zona
Franca roubadas pelos
americanos de Manaus acabam de germinar no Jardim Botânico de Westmoreland. Os cientistas
acreditam produzir racionalmente
Zonas Francas dentro
de dez anos .
O monopólio amazonense
de Zonas Francas estará assim quebrado .
Essa veia
satírica do teatro
de Márcio Souza é a que mais se aproxima do romancista
de Galvez, o imperador
do Acre , O brasileiro voador
ou O fim do terceiro
mundo , tributários
do humor corrosivo
e anárquico de Oswald de Andrade, em cuja obra dramática pode ser
vislumbrada a ascendência das chanchadas
amazônicas de Márcio Souza. Em As folias
do látex , o Mestre de Cerimônias justifica a forma :
– Nada como o vaudeville para se entender aquele tempo . Não , não é piada .
Pode achar graça ,
se quiser, é uma constatação : o vaudeville como expressão
da monocultura enlouquecida. A única arte que se aproxima do delírio .
Mas se Oswald mira na decadência
burguesa e na ascensão do socialismo , Márcio não
nutre ilusões , restando-lhe rir , apenas , aquele riso amargo , como se
deduz destas falas do Coronel Bubu
e de Mister Pyle:
– Manaus, o sorriso
da vitória-régia . É um
subúrbio meio
distante do Rio
de Janeiro .
– Minha multinacional estar
interessada em investir
aqui . Penso
em montar fábrica de coçadores de costas
automáticos . Dizem que ,
com a quantidade
de mosquitos que
tem por aqui ,
deverá ser o mercado
ideal .
Para coroar
o desfile dos bufões
amazônicos de Márcio Souza, nada como relembrar o Hierofante ,
na última fala
de A Morta :
– Respeitável público ! Não vos pedimos palmas ,
pedimos bombeiros ! Se quiserdes salvar as vossas tradições
e a vossa moral ,
ide chamar os bombeiros
ou se preferirdes a polícia !
Somos como vós
mesmos , um
imenso cadáver
gangrenado! Salvai vossas podridões e talvez
vos salvareis da fogueira
acesa do mundo !
(ANDRADE, 2005, p. 73)
O espírito
trágico paira sobre
a obra dramática
de Márcio Souza, mesmo quando ela se
propõe cômica, ecoando o “princípio de atualidade ” de Artaud – “atualidade
de sensações e de preocupações ,
mais do que
de fatos ” (apud ROUBINE, p. 189) – e
levando ao extremo o pessimismo de Camus, para quem o niilismo
só tem valor
quando transcendido (2008, p. 346-351).
Lembra-me um velho
poema de Drummond, “Congresso Internacional do Medo”, onde
a esperança aparece de forma
enviesada no último verso ,
quando já
não havia mais
porque ter esperança : “e sobre
nossos túmulos
nascerão flores amarelas e medrosas”
(1974, p. 49).
O pessimismo
é um traço
da modernidade, desde Cervantes. O escritor moderno
usa da ironia
para transcendê-lo. É nesse ponto
delicado que
se dá a comunicação entre
o autor e o leitor :
se este subverte o código ,
virando pelo avesso
a mensagem , a obra
está salva . Se a leitura
for direta e objetiva ,
entretanto , não
terá havido comunicação .