Amigos do Fingidor

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Renascimento como resistência à morte

 

João Bosco Botelho

 

 

A necessidade incontrolável de dar sentido à vida, diferente da dos outros animais, e de minimizar a morte, expressa com transparência na História, contribuiu para materializar, como opostos, saúde e doença, prazer e dor. Saúde e prazer, sinônimos de vida, ficaram ligados ao bem, bom, belo; doença e dor, compreendidas como mal, ruim, feio, antecipavam o falecer temido, a morte.

            A pulsão inata para desvendar a forma visível, em especial o corpo, dotado com propriedades sensíveis de comunicar-se e locomover-se, para fugir da dor e da morte, pode ser considerada como a primeira verdade material. É verdadeira em si mesma, porque dá forma ao viver, num movimento caleidoscópico, composto na carnalidade da pele quente, realidade dos sentidos, da respiração e do ritmo cardíaco. Atinge e entrelaça o ser no mundo! .

            Quando a morte advém, como antítese da vida, emudece a memória, descolora a pele, resfriando-a e tornando-a insensível à dor, o pior dos tormentos. O movimento respiratório e o coração param. O corpo desfigurado pelo rigor cadavérico enche de sentido a vida dos que choram. É quando o vivo se apercebe da própria existência e rejeita a morte refletida na do outro.

O ser-tempo (homens e mulheres visíveis e mensuráveis), para reafirmar a vida e rejeitar a morte temida, serve-se da ficção para compor a possibilidade de o corpo morto do outro poder renascer entres os seres-não-tempo (almas e espíritos não visíveis, não mensuráveis). Essa incrível construção da inteligência humana prolonga a vida depois da morte, fortalece a crença de um renascimento, premiado ou castigado, nos moldes da vida vivida.

É a dialética fundamental entre a vida e a morte, atando com uma ligadura indissolúvel o ser-tempo e o ser-não-tempo.

Talvez nunca seja possível saber como a linguagem edificou esse pilar estrutural das relações sociais: a crença no renascimento que aprimora e prolonga os sentidos, marcando a separação do ser-tempo (homem vivo) do ser-não-tempo (homem morto) dos outros animais.

O imaginável renascimento dos homens e mulheres, empurrando os limites da vida, tem acompanhado as culturas, possivelmente, muito antes dos registros da linguagem escrita, entre ricos e pobres, numa dimensão e repetição que não podem ser atribuídas somente ao ordenamento social.

            É possível estabelecer relação teórica da vida após a morte com a ideia arcaica de renascer a partir dos ossos descarnados (Gn 2, 21-24 ). Datando da pré-história, com registros confiáveis, a prática da exumação ritual seguida da pintura dos ossos com ocra de cor vermelha, em associação ao sangue, como o maior símbolo da vida, sem o qual o renascimento seria impossível, e a rearrumação em sepulturas rituais. O professor Leroi-Gourhan, já falecido, da Sorbonne, no seu livro "As religiões da pré-história", editado em 1964, afirmou: "Já muito se disse sobre o papel dos corantes e sobretudo do ocre, no paleolítico superior: matéria-prima das pinturas parietais, considera-se também que serviu para colorir as sepulturas e os corpos dos vivos, simbolizando de um modo geral o sangue e, consequentemente, a vida, particularmente a do morto"

Fica difícil atribuir a crença no renascimento após a morte somente às culturas. Desse modo, é valido também teorizar sobre a possibilidade de existir uma memória-sócio-genética, que modula geneticamente certos aspectos da vida social, de modo semelhante a qualquer outro aspecto do corpo, como o da cor dos cabelos e dos olhos.