João Bosco
Botelho
A necessidade incontrolável de dar sentido à
vida, diferente da dos outros animais, e de minimizar a morte, expressa com
transparência na História, contribuiu para materializar, como opostos, saúde e doença,
prazer e dor. Saúde e prazer, sinônimos de vida, ficaram ligados ao bem, bom,
belo; doença e dor, compreendidas como mal, ruim, feio, antecipavam o falecer
temido, a morte.
A
pulsão inata para desvendar a forma visível, em especial o corpo, dotado com
propriedades sensíveis de comunicar-se e locomover-se, para fugir da dor e da
morte, pode ser considerada como a primeira verdade material. É verdadeira em si
mesma, porque dá forma ao viver, num movimento caleidoscópico, composto na carnalidade
da pele quente, realidade dos sentidos, da respiração e do ritmo cardíaco. Atinge
e entrelaça o ser no mundo! .
Quando
a morte advém, como antítese da vida, emudece a memória, descolora a pele,
resfriando-a e tornando-a insensível à dor, o pior dos tormentos. O movimento
respiratório e o coração param. O corpo desfigurado pelo rigor cadavérico enche
de sentido a vida dos que choram. É quando o vivo se apercebe da própria
existência e rejeita a morte refletida na do outro.
O ser-tempo (homens e mulheres visíveis e
mensuráveis), para reafirmar a vida e rejeitar a morte temida, serve-se da
ficção para compor a possibilidade de o corpo morto do outro poder renascer
entres os seres-não-tempo (almas e espíritos não visíveis, não mensuráveis).
Essa incrível construção da inteligência humana prolonga a vida depois da
morte, fortalece a crença de um renascimento, premiado ou castigado, nos moldes
da vida vivida.
É a dialética fundamental entre a vida e a
morte, atando com uma ligadura indissolúvel o ser-tempo e o ser-não-tempo.
Talvez nunca seja possível saber como a
linguagem edificou esse pilar estrutural das relações sociais: a crença no
renascimento que aprimora e prolonga os sentidos, marcando a separação do
ser-tempo (homem vivo) do ser-não-tempo (homem morto) dos outros animais.
O imaginável renascimento dos homens e
mulheres, empurrando os limites da vida, tem acompanhado as culturas, possivelmente,
muito antes dos registros da linguagem escrita, entre ricos e pobres, numa
dimensão e repetição que não podem ser atribuídas somente ao ordenamento
social.
É
possível estabelecer relação teórica da vida após a morte com a ideia arcaica
de renascer a partir dos ossos descarnados (Gn 2, 21-24 ). Datando da pré-história, com registros confiáveis, a
prática da exumação ritual seguida da pintura dos ossos com ocra de cor
vermelha, em associação ao sangue, como o maior símbolo da vida, sem o qual o
renascimento seria impossível, e a rearrumação em sepulturas rituais. O
professor Leroi-Gourhan, já falecido, da Sorbonne, no seu livro "As
religiões da pré-história", editado em 1964, afirmou: "Já muito se
disse sobre o papel dos corantes e sobretudo do ocre, no paleolítico superior:
matéria-prima das pinturas parietais, considera-se também que serviu para
colorir as sepulturas e os corpos dos vivos, simbolizando de um modo geral o
sangue e, consequentemente, a vida, particularmente a do morto"
Fica difícil atribuir a crença no
renascimento após a morte somente às culturas. Desse modo, é valido também
teorizar sobre a possibilidade de existir uma memória-sócio-genética, que
modula geneticamente certos aspectos da vida social, de modo semelhante a qualquer
outro aspecto do corpo, como o da cor dos cabelos e dos olhos.