Amigos do Fingidor

domingo, 8 de dezembro de 2013

Naná, a cigarra que não aprendeu a cantar, denuncia na polícia crítico literário que ameaçou escrever sobre seu livro de “poesias”



João Sebastião


Na última sexta-feira passei por uma experiência inédita. Ex-aluno de direito – estudei na velha FUA, de onde fui sumariamente expulso, no 5º período, sem direito a defesa, por ter rido na cara de um desembargador-professor, que não sabia nada da matéria que deveria ministrar e só queria nos enrolar. Tempos da ditadura, onde quem tinha phoder phodia. Maus tempos aqueles, de direitos castrados. Onde era que eu estava, mesmo? 

Ex-aluno de direito, fui convidado pelo escritor Zemaria Pinto, meu dileto amigo e compadre, para acompanhá-lo a uma delegacia, onde fora convocado – com a gentileza que caracteriza essas convocações – para se explicar. Explicar de quê? Sei lá, porra, foi a resposta que obtive. Botei meu único e surrado blazer e deixei a gravata de nó permanente (nunca aprendi a dar nó em gravata) bem frouxa no colarinho, à maneira de James Stewart no inesquecível O homem que matou o facínora, e fomos atrás do misterioso endereço: 20º DIP, Rua Santa Helena, s/n, Parque São Pedro, telefone: . Você sabia onde fica esse endereço? Nem nós.

Irritantemente lento – o Zemaria dirige como uma velha senhora de óculos fundo de garrafa –, levamos, da Praça 14 à invasão da Carbrás, pois é lá o tal Parque São Pedro, exatos 65 minutos. Oh, glória, 5 minutinhos antes da fatídica 9:30 da intimação. E eu achando exagero a gente sair com mais de uma hora de antecedência. Chegando no “bairro”, foi fácil de achar o objeto da nossa procura: a delegacia, um conjunto de contêineres, fica no pátio de um colégio. Pensei com meus borbotões: o que tem a ver misturar educação com polícia? Mas não pude avançar na reflexão, pois já estávamos no contêiner-recepção, pequeno, porém aconchegante, do DIP, onde fomos recebidos com fidalguia por um jovem simpático, como deveria ser todo policial, inclusive os de rua.

Só fiquei invocado quando ele perguntou a sua colega ao lado, a vítima não chegando, quanto tempo o autor deveria esperar. Vítima? Autor? Vi que o Zemaria fervia, de tão vermelho, doido para chutar as paredes do contêiner. Aproximei-me do funcionário e fiz valer minha autoridade de causídico do autor: doutor, do quê mesmo que o meu cliente está sendo acusado? Sou doutor, não, doutor. E olhando para o vermelhíssimo Zemaria, o senhor conhece a senhora Naná de tal? Zemaria fumaçou e eu vi um balãozinho sobre sua cabeça, onde se podia ler, em letras garrafais: FILHA DA PUTA! Antes que o meu cliente tivesse uma síncope, me coloquei entre os dois e disse sim, nós conhecemos, mas de que ela nos acusa? O diligente funcionário esclareceu que a vítima Naná acusava o meu querido amigo de ameaçá-la, por meio de um e-mail. Pensei em como a nossa língua é susceptível a mudanças. Mas que tipo de ameaça? Era isso que nós queríamos tirar a limpo agora, mas como a indigitada irresponsavelmente não compareceu, os senhores estão liberados, podem ir. Assunto encerrado. E apontou com firmeza para a única porta do caixotão.

Ainda tentei puxar conversa. Falei que o e-mail do meu cliente pedia a várias pessoas, inclusive a mim, o livro que ela publicara há pouco tempo, pois, sendo professor de literatura, o meu cliente tem o dever moral e intelectual de chamar a atenção para as novidades da praça – para o bem e para o mal. Inclusive, ele já está escrevendo um ensaio ligeiro mostrando que Naná é uma pobre cigarra que não aprendeu a cantar. Sua lira é de papel machê, mero simulacro. O funcionário, nem tchuns para o que eu falava, assobiava alguma coisa, acho que aquela da Legião Urbana: “parece cocaína ahah, mas é só tristeza...” E eu: mas que coisa, né, meu parceiro? Tanto problema pra Polícia resolver e tem gente que ocupa vocês com picuinha de quinta monta, questiúnculas miseráveis, sórdidas, ridículas. Pois é, doutor, nem queira saber; os vagabundo chega aqui cheio de marra e na hora, ó, se acovarda ou então fica dormindo, curtindo o porre da noite anterior. Por isso a gente marca tão cedo. Pra nós é tardíssimo, meu caro: acordamos às 5 da manhã. Mas ó, já tem gente esperando, vamo, vamo. E apontou novamente à porta.

Tentava fazer hora pra ver se Naná chegava. O objetivo era resolver a questão definitivamente e, se possível, mostrar a ela o absurdo da queixa contra o sagrado direito de crítica e expressão. Ela, apesar de madura, desconhece as regras mais elementares da convivência em sociedade. Como qualquer cigarra, acredita que o mundo gira em torno do seu umbigo sebento. Mas a cigarra falida não apareceu. Malandro velho, pedi uma declaração de que o meu cliente ali estivera, conforme intimado, cumprindo seu dever de cidadão ilibado. O espertinho me olhou como se eu pedisse picanha na padaria e falou com conhecimento de causa: um atestado de comparecimento? É pra já. E em menos de cinco minutos lá íamos nós de volta à Praça 14, só que eu ia dirigindo, do meu jeito, porque o Pinto continuava duro de tanta tensão.

Mas ele estava puto mesmo, você não imagina, os olhos injetados por baixo dos óculos escuros, babando e falando coisas desconexas como eu vou acabar com essa... Eu vou... essa... Essa... tá... comigo... Essa... Calma, poeta!

– Poeta é o caralho!!! Poeta é a puta que o pariu!!!

Pronto, baixou o Luiz Bacellar. Ah, falou no Bacellar o velho Zé relaxou e começou a rir. Não, a gargalhar, e, coisa impensável naquela cara de pedra, a chorar de tanto rir.

– Imagine, Joãozinho, a cara do Visconde se lhe caísse em mãos o livro de merda da Naná... Quer saber duma coisa, compadre, o Bacellar ia acabar concluindo que essa Naná não é cigarra porra nenhuma: ela não passa de uma rola-bosta.

Quem sou eu para discordar?