Amigos do Fingidor

domingo, 31 de dezembro de 2023

Manaus, amor e memória DCLI


Colaboradoras da Beleza, na Revista Cabocla, dirigida por Genesino Braga,
em fevereiro de 1937. Destaque para a poeta Violeta Branca, no alto, à direita. 

 

sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Lira da Madrugada – Alcides Werk 11/15


Zemaria Pinto

 

Ficha biobibliográfica

 

Autor: Alcides Werk

Nome completo: Alcides Werk Gomes de Matos

Naturalidade: Aquidauana – MS

Nascimento: 20 de dezembro de 1934

Falecimento: 13 de novembro de 2003

 

Obra poética:

·       Da noite do rio (1974)

·       Trilha dágua (1980)

·       Poems of the water and the land – Poemas da água e da terra (1987, edição bilíngue)

·       In natura – poemas para a juventude (1999)

·       Cantos ribeirinhos e outros poemas (2002)

·       A Amazônia de Alcides Werk – toda poesia (2004 – póstumo)


NA PRAIA DA PONTA NEGRA

 

Às vezes tenho vontade

de andar de jeans, ser moderno,

fazer versos esquisitos,

gerar palavras estranhas,

somar asfalto com lua,

misturar brigas de rua

com rosa, com cal e mar.

Mas, quando te sonho nua

na praia da Ponta Negra,

com gestos de pré-amar,

todo o meu ser se acomoda,

e eu volto a me ver menino

que sonhara ser poeta

em noites de romantismo,

e, conquistado, me esqueço

das conquistas que faria:

minha alma mansa flutua

nas águas pretas do rio

e esvoaça sobre a tua

como um pássaro no cio.

 

 

 

NO ROADWAY

 

As águas do Roadway são negras

porque são filhas do rio Negro,

ou porque os homens as toldaram?

 

As águas lavam tudo,

mas não lavam a si mesmas.

 

Meu pequeno espírito, absorto,

filosofa sobre essas obviedades.

 

vi muitas pessoas

lavar o lado sujo de suas almas

no rio Negro.

 

Estamos ficando velhos

precocemente

eu e o rio Negro.

 

 

IGARAPÉ DE MANAUS

 

A água, que é mãe da vida

(antes pura, clara, doce),

passa prostituída,

triste, amarga, poluída,

como se mater não fosse.

  

A lírica de Alcides Werk tem duas vertentes bem acentuadas: uma, telúrica, voltada para as coisas da terra; outra, confessional, onde a sensibilidade do poeta se expõe, muitas vezes, perigosamente. Os poemas “Na praia da Ponta Negra”, “No Roadway” e “Igarapé de Manaus” fazem uma espécie de ponte entre uma e outra vertente. São poemas que enfatizam a preocupação do escritor com o meio ambiente, porém no âmbito da cidade, longe das paisagens desenhadas em outros poemas, onde sobressai a descrição da natureza e dos fenômenos, inclusive sociais, a ela ligados.

“Na praia da Ponta Negra” é um poema de amor. O poeta coloca-se numa posição conservadora, um homem de meia-idade, que compara a agitação da praiaou talvez da sua calçadacom o modernojeito” de fazer poesia. Talvez ele se imagine um seresteiro, um romântico, e aquela agitação dos jovens não tenha nada a ver com a sua poesia. Quando ele fala em somarasfalto com lua”, por exemplo, a palavra asfalto denota a agitação da cidade e soma-se ao jeans, ao tênis, enquanto a palavra lua é seu contraponto de sonho. O asfalto, aqui mesmo; a lua, impossível, impassível e inalcançável. Mas quando o poeta sonha com sua amada, a praia da Ponta Negra se transforma e torna-se aquele lugar bucólico do seu tempo de menino, em que ele apenas sonhava ser poeta.

Observe o jogo que o autor empreende com as palavras: “Mas, quando eu te sonho nua / na praia da Ponta Negra, / com gestos de pré-amar”. Esta última palavra, composta, a rigor, não existe. No texto ela significa algo comoantes do amor”, a frase toda seria “com gestos de antes do amor”. Mas se formos mais fundo, no âmago mesmo do poema, “pré-amar” se relaciona diretamente compreamar”, palavra que significa maré cheia ou nível máximo da maré. Ou seja: “gestos de pré-amar” também significa que a mulher amada está transbordando – no nível máximo da maré – de gestos de amor, de carinho. Observe que essa sensualidade faz parte de um sonho: não são os corpos que se encontram, mas as almas. E a alma do poeta esvoaça sobre a da mulher amada “como um pássaro no cio”. Numa referência exterior, lembro-me de um poema de Manuel Bandeira, chamado “A arte de amar”, em que ele, depois de falar sobre a incomunicabilidade das almas, conclui afirmando: “Porque os corpos se entendem, mas as almas não”. Manuel Bandeira escrevia numa época de negação aos valores espirituais, embora ele mesmo cultivasse uma espiritualidade que parecia tímida, em face da exigência materialista de algumas facções modernistas. Alcides, neste poema, declara-se romântico e avesso ao moderno, e, consequentemente, ao Modernismo. Daí o seu posicionamento frontalmente contrário ao de Manuel Bandeira.

O poema “No Roadway” conecta-se com o primeiro pelo uso do rio Negro como metáfora. Em “Na praia da Ponta Negra” o rio é o lugar que guarda as lembranças do poeta-menino e, no sonho, é o leito de amor do poeta adulto. Roadway é o nome original do porto de Manaus, explorado inicialmente pelos ingleses da Manáos Harbour, ainda no início do século 20. O poema é um alerta amargo sobre os vícios testemunhados pelo porto, há um século. A função do rio aqui é menos nobre que no poema anterior: suas águas lavam “o lado sujo das almas das pessoasque transitam pelo Roadway e por isso vão ficando mais escuras, vão se toldando, porque vão acumulando a sujeira. E o poeta, impotente, conclui que está envelhecendo junto com o seu rioprecocemente. Esta última palavra remete-nos de volta ao início do primeiro poema em que o poeta declara tervontade” de parecer jovem, estabelecendo uma segunda conexão.

O poemaIgarapé de Manaus” é uma das mais belas páginas da poesia ecológica – se é que existe uma poesia ecológica. Há muito tempo dizia-se poesia engajada, de cunho político. “Igarapé de Manaus”, em suas cinco linhas, vale por um tratado sobre a destruição de um rio por uma cidadeou por seus bárbaros habitantes. Nãomuito a explicar: a singeleza do poema, mesmo usando uma palavra em latim (mater, mãe – o que reforça o caráter mítico da figura), fala por si mesma. A água, mãe da vida, que um dia passou, por ali mesmo, “pura, clara, doce”, agora passa “prostituída, triste, amarga, poluída” – que imagem terrível! –, sem mais ostentar a condição de mãe. Pense numa pessoa que, depois de muito tempo afastada de sua mãe, encontra-a nessas condições descritas pelo poeta. É apenas isso. Poesia panfletária nem sempre é boa poesia. Alcides Werk, com seu imenso talento para a indignação e seu maior ainda amor pela natureza, consegue, em 22 palavras, escrever um tratado sociológico sobre o descaso e a destruição. Mas esse sofrimento do Igarapé de Manaus vai acabar: como último ato dessa tragédia, vão aterrá-lo.[1]   

 

Na praia da Ponta Negra - No Roadway - Igarapé de Manaus
(Mauri Mrq-Alcides Werk) 



[1] Referência ao projeto Prosamim, de “saneamento” dos igarapés de Manaus, em andamento quando da escritura deste texto.

 

quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

A poesia é necessária?

 

Soneto 370 Sem-terra

Glauco Mattoso

 

Não há justiça agrária sem reforma,

repete o campesino rebelado.

“Ou cedem-me o terreno ou eu invado!”

E o latifundiário se inconforma.

 

Marxismo primitivo, mas em forma:

com práxis de guerrilha, lança o brado,

sitia, ocupa, pilha a safra, o gado,

arrepiando o estado, a lei, a norma.

 

Revolução começa pelo campo

e acaba na cidade, onde se junta

à massa de manobra a mão sem trampo.

 

No ar, só paira a histórica pergunta

que o inepto agente capta pelo grampo:

“Quem disse que a utopia era defunta?”

 


terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Um presépio impossível

Pedro Lucas Lindoso


Para mim o Presépio Natalino é mais importante do que qualquer árvore de natal ou guirlandas. Mais importante do que qualquer novidade eletrônica ou não vindo diretamente de Miami, do Paraguai ou da feira de importados de Brasília ou de Foz de Iguaçu.

Simplesmente porque o presépio era o elemento natalino de destaque de minha infância. Uma tradição de nossa família. Gostar de presépios é um sentimento herdado de meu querido e saudoso pai. Ele adorava o nosso presépio. Guardado o ano todo com esmero numa caixa de papelão. As imagens cuidadosamente enroladas em folhas de papel de seda. A caixa era devidamente forrada e fornida com jornais suficientes para evitar que as imagens fossem danificadas ou quebradas. O nosso presépio foi adquirido em uma viagem à Europa feita por meus pais em meados dos anos cinquenta.

Ao presépio original foram acrescentadas outras peças extras. Além do tradicional boi e da vaca, das ovelhas e carneirinhos, foram acrescentados galinhas e pintinhos. Bem como outros animais domésticos que possivelmente estariam presentes no estábulo onde Jesus nasceu.

O presépio deveria estar pronto e devidamente ornamentado até o dia 8 de dezembro. Feriado em honra a Nossa Senhora da Conceição, padroeira do Amazonas. É o dia da família e se comemorava o aniversário de casamento de meus pais. Se vivos fossem, teriam comemorado setenta e cinco anos neste último dia oito.

Todos da família, em especial os mais velhos, podiam e deviam participar da ornamentação do presépio. O Natal que antecedeu nossa ida para Brasília teve um presépio especialmente bem caprichado.

Nós morávamos na Rua Henrique Martins, em frente ao SESC. Naquela época o SENAC também era ali. Havia cursos, direcionados aos comerciários, de vitrinistas e decoradores. Um dos professores se ofereceu para opinar na ornamentação do nosso presépio. Até um marceneiro foi chamado para fazer uma bancada onde ficou o estábulo e todos os personagens do presépio original e os adicionados posteriormente.

Havia ainda o cometa que anunciou a chegada do Menino Deus. Naquele ano, especialmente, feito de isopor e coberto por papel laminado.  Encrostado de purpurina. Aquilo tudo reluzia com intensidade persistente até hoje nas minhas memórias. Aquele presépio, aquela montagem são simplesmente inesquecíveis. Uma de minhas irmãs desejou um presépio nos moldes daquele de nossa infância. Hoje, um presépio impossível.

domingo, 24 de dezembro de 2023

sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

Lira da Madrugada – L. Ruas 10/15


Zemaria Pinto

 

 Ficha biobibliográfica

 

Autor: L. Ruas

Nome completo: Luiz Augusto de Lima Ruas

Naturalidade: Manaus – AM

Nascimento: 28 de novembro de 1931

Falecimento: 1.° de abril de 2000

 

Obra poética:

·       Aparição do clown (1958)

·       Poemeu (1985)

·       Poesia reunida (2013 – póstumo)

 


DIDÁTICA

 

Palavra por palavra

compõe-se a arquitetura.

O canto é limpo timbre.

É rosa a rosa. Rosa.

 

Desnuda geometria

espaço libertado:

no campo indevassado

na página tranquila

 

desenho desprovido

de inúteis arabescos

os pontos se projetam

em linhas e figuras

 

os semitons banidos

só restam sombra e luz.

Palavra é só palavra:

Indício fruto ou véu.

 

Por fim se ordenam símbolos

em lúdica harmonia

Fundindo o lucicanto

ou coisadedizer.

 

 

ORÁCULO

 

Tenho pena, disse-me o meu Deus,

Daquele que é amado por mim.

Tenho muita pena.

 

Tenho pena, disse-me o meu Deus,

Porque aquele que eu amar

Jamais

Terá um só momento de paz.

 

Aquele que eu mais amar

Jamais terá dias tranquilos

Nem mesmo aos domingos

Ele poderá se divertir.

Por exemplo, não terá

Aquela paz necessária que é preciso ter

Para passar um dia inteiro, de calção,

Num balneário. E se sentir feliz.

E, à noite, não frequentará boates

Nem “dancings”, nem “night clubs”,

Porque já não terá mais em si

A tranquilidade inócua dos felizes.

 

Não digo que ele não vá. Isso não.

Ele vai, mas, não como os outros vão.

Porque o que ele busca nessas coisas

Não é mais felicidade. Nem prazer.

O que ele quer mesmo é me encontrar em tudo isso.

Porque eu o amo de tal modo

Que ele quer me encontrar em toda parte.

Aquele que eu amo, disse-me o meu Deus,

Fica besta que nem poeta enamorado:

Me julga ver em toda parte e em todo mundo.

E não se cansa nunca de me procurar.

Por ele, nunca mais me largaria

Nunca mais estaria longe de mim.

E este desejo de estar perto de mim,

Sempre,

É que o fere e o maltrata.

Um dos que eu mais amei, foi Paulo,

Aquele judeu nascido em Tarso.

Outro que também muito amei foi Francisco.

Aquele nascido em Assis, na Úmbria – Itália.

E vocês bem sabem as tolices que fizeram.

Se a causa de tudo aquilo não fosse meu amor

Eu vos digo que não aprovaria o que fizeram:

Não aprovaria ter Francisco brigado com seu pai

Nem Paulo ter apelado, tolamente, para César.

Isso não são coisas que um homem de bem deva fazer...

Mas, enfim, o culpado fui eu que muito amei.

 

É por isso, disse-me o meu Deus,

Que eu não amo todos os homens igualmente.

Porque eu não sei amar de outro modo

Só sei amar assim, desmedidamente.

Não sei amar como amam os homens “comportados”:

Com elegância, com medida, com “finesse”.

Porque eles são feitos com medida e com limites.

Mas eu sou o “sem limites” e o “sem medidas”.

Por isso não amo todos igualmente:

Escolho entre muitos os que podem

Suportar as minhas exigências. Os mais fortes.

Porque depois de algum tempo ficam fracos

E consumidos pelo meu amor que os devora.

Eu sei, disse-me o meu Deus, que muitos gostariam

Que eu os amasse como amei Francisco e Paulo.

Mas eles não sabem muito bem o que desejam.

Eu sei que eles não resistiriam ao muito amor

Porque são limitados e muito fracos.

Por isso não amarei todos igualmente

Porque mesmo os mais fortes quase não resistem.

Ainda hoje acho graça dos doutores, disse Deus,

Que querem explicar as cantigas de João da Cruz

E as visões da minha Tereza D’Ávila

Como um simples caso de psicopatologia.

 

E, depois, disse Deus, eu mesmo quis que houvesse

Entre os homens e, mesmo, em minha Igreja,

Um certo clima de paz e de sossego

Para que as coisas fossem feitas devagar

Como convém que se faça entre os humanos.

Porque só eu sei fazer, com rapidez,

Coisas bem feitas, bem perfeitas.

Mas os homens não sabem e é preciso,

Por isso, dar-lhes tempo e alguma paz.

Mas, aqueles que eu amo perdem a paz

E querem fazer tudo logo de uma vez.

E não deixam mais ninguém ficar em paz.

Atrapalham mesmo os meus Pontífices

No governo da Igreja se eu não chego

A tempo de impedir que assim o façam.

Porque os meus Pontífices são os meus Pontífices.

E eu os quero assim. Mas, nem sempre

Meus Pontífices são meus amados também.

 

Tenho muita pena, disse Deus,

Daquele que é amado por mim.

Porque é muito triste ver um homem

Pequeno, limitado, circunscrito,

Querendo satisfazer o meu amor

Ilimitado.

 

Tenho muita pena, disse Deus,

E, muitas vezes, também choro

Quando, a sós, ele chora,

Me suplica e implora

Para que me afaste dele.

Tenho muita pena, mas, não posso

Fazer nada por ele senão mesmo

Mais amá-lo, mesmo que não queira.

 

A obra poética do padre Luiz Ruas reduz-se a dois títulos: Aparição do clown e Poemeu. O primeiro é dos mais belos exemplos de poesia religiosa em língua portuguesa. Eu disse religiosa? É pouco, pois quando falamos em “poesia religiosa” estamos nos referindo a um tipo de poesia atrelada a uma determinada religião. A poesia de L. Ruas é bem mais complexa. Voltada para o espírito e o questionamento das relações entre o humano e o sagrado, é mais apropriado classificá-la como poesia metafísica. Poemeu, a despeito de conservar, em alguns textos, essa transcendência, é um livro profano, voltado para as coisas do mundo, as inquietações cotidianas – seja do poeta, enquanto agente da criação estética, seja do homem, dividido entre os prazeres mundanos e as obrigações com o divino.

Os poemas escolhidos para análise pertencem ao segundo livro. “Didática” é um exemplo de metalinguagem, a partir do próprio título: o poeta discorre sobre o seu fazer poético, procedimento que tem uma tradição milenar inesgotável como representação individualizada da linguagem do poeta que se dispõe a revelar-se. Comecemos por examinar a própria sintaxe do poema. As regras de pontuação são desrespeitadas já a partir da segunda estrofe. O uso de maiúscula após o ponto é uma convenção também desconsiderada. O poeta busca transmitir a ideia de seu poder sobre a página em branco, manipulando palavras e símbolos, a tal ponto que o fecho do poema é um inusitado substantivo, um neologismo de grafia estranha: “coisadedizer”. Vamos por partes, ou melhor, por estrofes.

A primeira estrofe joga luz sobre a palavra e sua importância para a composição: a armação do poema se dá “palavra por palavra”. Mas a palavra “timbre” esconde uma cilada, muito própria da boa poesia: a possibilidade de múltiplas leituras. Podemos entender o poema com uma tonalidade límpida, o que seria uma redundância, mas podemos também inferir o poema como uma inscrição, ou um selo, que, sendo único, identifica seu autor. Para enfatizar essa ideia, Ruas relembra o conhecido verso de Gertrude Stein: Rose is a rose is a rose is a rose. Nada mais rosa que uma rosa.

Nas estrofes dois e três, o poema é comparado a um desenho seco, sem ornatos, compondo linhas e figuras a partir de pontos, a unidade mínima de um desenho. Trata-se de uma lei natural da poesia: a condensação. Ruas repete-a e usa a quarta estrofe para enfatizá-la, tirando do seu desenho o que estava em demasia, restando unicamente “sombra e luz”, como nas lições sublimes de Vermeer e Rembrandt. No poema, “palavra é só palavra”, mas não só, do contrário não seria poesia. A palavra é indício (pista, vestígio, rastro); é fruto (ela, em si mesma); é véu (antipista, antivestígio, antirrastro). No bom poema, como no bom poeta, a palavra pode ter várias funções, sendo ela mesma ou não. E não sendo, assumindo o papel de sugestão ou de negação. Cabe ao leitor descobrir.  

A quinta estrofe fecha a ideia que Ruas faz do poema: “por fim se ordenam os símbolos / em lúdica harmonia”. Três palavras carregadas de significados: símbolos, lúdica, harmonia. O poema é nada mais que isso: símbolos que se ordenam numa harmonia lúdica. Isso é anti-hermético, porque o lúdico indica que há leituras possíveis. A conclusão propõe que o jogo funda a reflexão (“coisadedizer”) com a técnica poética, o canto de luz (“lucicanto”). Cabe ao leitor saber jogar. É o que veremos na análise do poema “Oráculo”.

Nos seus mais de cem versos, é um poema que concentra uma ideia bastante simples: a relação de amor e de entrega daqueles que recebem o dom da iluminação divina. Ruas, não o sacerdote, mas o homem, procura mostrar que essa é uma relação sobretudo de sofrimento. É interessante que o eu lírico – que, de forma simplificada, identificamos com o poeta – fale em nome de Deus, como se o tivesse ouvido: “disse-me o meu Deus”. Na verdade, o poeta-oráculo fala para si mesmo, como a justificar o seu sacrifício, o sacrifício dos votos sacerdotais: para ser amado por Deus é preciso merecer o seu amor.

Sem negar-lhe quaisquer direitos, é facultado, mesmo ao escolhido de Deus, frequentar os prazeres do mundo:

Não digo que ele não vá. Isso não.

Ele vai, mas, não como os outros vão.

Porque o que ele busca nessas coisas

Não é mais felicidade. Nem prazer.

O que ele quer mesmo é me encontrar em tudo isso.

 

O sacerdote, assim como o artista, está sempre antenado: um à procura de Deus, o outro em busca de motivo para sua arte.

É interessante observar a crítica que o poeta-sacerdote faz a sua Igreja, desfazendo a mística da infalibilidade papal:

Porque os meus Pontífices são os meus Pontífices.

E eu os quero assim. Mas, nem sempre

Meus Pontífices são meus amados também.


Deus é humanizado a tal ponto que chega ao cúmulo do egoísmo.

Tenho muita pena, disse Deus,

Daquele que é amado por mim.

Porque é muito triste ver um homem

Pequeno, limitado, circunscrito,

Querendo satisfazer o meu amor

Ilimitado.

 

Essa humanização faz parte de uma “lúdica harmonia”: o homem é “imagem e semelhança” de seu criador, logo, este é imagem e semelhança do homem. Um jogo de espelhos. Paulo de Tarso e Francisco de Assis, assim como o poeta João da Cruz e a visionária Tereza D’Ávila, todos eles santos da Igreja Católica, são citados por Ruas como paradigmas dos que mereceram o amor de Deus porque souberam amá-Lo. É curiosa a raiz etimológica desse amor desmedido, representado na palavra “fanatismo”, hoje pejorativa, carregada de sentido negativo, ligado à intolerância e à violência de fundo religioso: inspirado pelos deuses, entusiasmado. Aliás, a palavra entusiasmo também foi corrompida, vulgarizada; o seu significado hoje está muito distante de sua acepção original, que, válida a poetas e a profetas, procura explicar a própria condição de oráculo que ambos carregam.

A poesia de L. Ruas encerra um duplo sentido, cumprindo dupla função: transitando entre o sagrado e o profano, nos faz pensar sobre o transcendente ao mesmo tempo em que pensamos também sobre essa atividade tão terrena e tão pouco valorizada que é o fazer poético.

Didática - Oráculo
(Mauri Mrq-L. Ruas)


quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

A poesia é necessária?

 

Palavras

Tainá Vieira

 

Pálidas palavras 

impronunciáveis

palpitam no meu

peito de poeta

 

assim perduraram

perdidas por longos

períodos do tempo

em que passei

pedindo permissão

para pronunciá-las.

 


terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Censos: Quantos somos? O que somos? O que fazemos?

 Pedro Lucas Lindoso

 

Muitos países, inclusive o Brasil, costumam fazer um censo geral no início de cada década. Como todos sabemos, o censo desta década sofreu um atraso em razão da pandemia. O objetivo principal do recenseamento é não somente saber quantos somos e a exata população de cada município brasileiro. O censo serve também, e principalmente, para identificar as características e revelar como vivem os brasileiros. São produzidas informações imprescindíveis para a definição de políticas públicas e a tomada de decisões de investimentos tanto na área pública quanto na área privada.

O primeiro censo de que se tem notícia está escrito no Livro de Êxodo. Foi organizado por Moisés e ocorre depois que os judeus se libertaram dos egípcios. Há muitos censos descritos na Bíblia. Os homens sempre tiveram necessidade de saber quantos somos. E também estipular classificação para diversos objetivos e políticas de governantes em todas as épocas.

Na época de Jesus, era comum que o Império Romano fizesse censos esporádicos para ter o controle da população de seus territórios. Na época do nascimento de Jesus, que ora se comemora com o Natal, cada judeu tinha que ir para a sua cidade para fazer o censo com sua família. Isso fez com que José e Maria necessitassem ir para Belém.

Nos dias de hoje, o nosso último censo só teve início em agosto de 2022. O censo que se realiza a cada dez anos é a única pesquisa domiciliar que vai a todos os municípios do país. Estamos em dezembro de 2023 e o plano do IBGE é chegar até o fim desse mês de dezembro com cerca de 80% a 90% do censo divulgados.

Além do censo, os homens costumam criar parâmetros, classificações e “rankings” de todo modo e qualidade. Elegem-se desde os cem políticos mais influentes até as dez melhores músicas do ano. Houve uma época, nos meados do século passado, que os colunistas sociais elegiam as dez mulheres mais elegantes. Hoje as mulheres querem ser empoderadas, não só elegantes.

Uma notícia chamou a atenção de minha querida tia Idalina. Ela já foi uma das dez mais de Brasília. Foram classificadas 250 pessoas mais ricas no planeta Terra. Para elas foi criado um cartão de crédito especial. Todo em ouro e cravejado de diamantes.

Numa população de cerca de oito bilhões de pessoas, o que são 250 indivíduos? Idalina disse que foi uma das dez mais. Agora entrar nessa lista de 250 é impossível. Ela e oito bilhões de terráqueos que se conformem em ser pobres de “marré, marré, marré”.[1]




[1] Alusão a Marais em contraponto a Mairie-D’Issy, bairros de Paris – o primeiro (marré), pobre; e o segundo (marré-deci), rico. É o que dá sentido à conhecida canção infantil. [Nota do editor]