Zemaria Pinto
Ficha biobibliográfica
Autor: Farias de
Carvalho
Nome completo: Carlos Farias Ouro de Carvalho
Naturalidade: Manaus – AM
Nascimento: 8 de setembro de 1930
Falecimento: 25 de junho de 1997
Obra poética:
· Pássaro de cinza (1957)
· Cartilha do bem amar com lições de bem sofrer (1965)
MEU CAVALO CHEGOU
Meu cavalo chegou (memória e nuvem),
a aurora derramada sobre a crina.
Meu cavalo chegou. Fome de tudo
estou também: engoliremos mundos.
Meu cavalo chegou. E, pressentidos,
os caminhos me espiam de suas rédeas.
Meu cavalo chegou. Há quanto tempo
gasto-me em pés e olhos nesta
espera...
Meu cavalo chegou. Eu despertava
quando o vento falou-me de seus
cascos
e a poeira garantiu-me sua presença.
Meu cavalo chegou. Cumprir-me-ei.
Tanta gente cansada nessas cruzes...
Meu cavalo chegou. Mortos, montai!...
MENSAGEM DO AMANHÃ
Essa aurora que vem será dos puros,
dos bem-aventurados loucos de hoje;
dos que trocaram o paletó de carne
pela túnica azul dos infinitos.
Essa aurora que vem será dos poetas,
esses feitores mágicos de mundos,
– galopadores das palavras vivas
que serão a estrutura do amanhã.
Essa aurora que vem, cairá das mãos
desses pálidos anjos que andam, à
noite,
tatuando mensagens nos espaços...
Essa aurora que vem, magicamente
pulará da cartola de Carlitos
com a chave de amor do mundo novo!
A poesia de Farias de
Carvalho goza de livre trânsito entre a crítica social e o misticismo. O que, a
distância, aparenta ser um paradoxo, verifica-se, com a visada sem pressa, que
é tão somente uma demonstração de demasiada humanidade: a inquietação política
não anula os cuidados com a alma, assim como a entrega mística não se desgarra
do banal cotidiano. Desse modo, a poesia de Farias de Carvalho oscila ora para
o discursivo e, por vezes, datado, ora para um existencialismo que tem suas
raízes mais fundas na escola simbolista. Nos poemas a seguir analisados
prevalece a opção espiritual, porém, conforme procuraremos demonstrar, a visão
social está contemplada, pois o “mundo novo”, uma ideia recorrente na poesia de
Farias de Carvalho, é dos puros e dos justos, dos oprimidos e dos que não
enveredaram pelos caminhos da opressão. Parece simplório – e é. Mas estamos
aqui tratando de símbolos, de representações idealizadas, onde a chave para
qualquer decifração é o amor ao próximo, por mais que isso pareça fora de moda.
O poema “Meu cavalo
chegou” traz, numa linguagem cifrada, própria da boa poesia, a euforia de um
espírito com a presença da pessoa que vai recebê-lo ou incorporá-lo, conforme
os rituais das seitas afro-brasileiras. A essa pessoa se chama cavalo, pois o espírito
ou entidade, vindo das pradarias do além, “cavalga-o”, num transe, dominando os
seus movimentos. O poema nos passa toda a angústia da espera intemporal,
imensurável pelos padrões humanos:
(...) Fome de
tudo
estou também:
engoliremos mundos.
(...) Há quanto
tempo
gasto-me em pés e
olhos nesta espera...
Ao fim da espera soma-se
a esperança, em imagens de beleza rara:
a aurora
derramada sobre a crina.
Para montar as imagens, o
poeta faz a opção por descrever uma cavalgada literal: numa inversão completa
dos signos, o cavalo, antes metáfora de um ser humano, assume sua aparência
animal, determinada pelas palavras “crina” e “rédeas”. Estamos falando de um
conceito de raríssimo emprego: a metáfora que se engendra a partir de si mesma.
Metametáfora?
(...) E,
pressentidos,
os caminhos me
espiam de suas rédeas.
Observe o que é o domínio
da linguagem poética: para dizer algo como “os caminhos se abrem diante de suas
rédeas” – o que seria belo em si mesmo, dada a perspectiva inusitada –, visando
afirmar que o cavalo, em disparada, tem várias opções a seguir, o poeta diz “os
caminhos me espiam de suas rédeas”. O verbo espiar, tão amazonense e tão
prosaico, assume, na arquitetura do poema – sem perder o sentido original, de
olhar – um significado transcendente, metafísico. Trata-se de um exemplo
soberbo da figura de linguagem hipálage,
que consiste em “atribuir a um ser as qualidades de outro ser que se encontra
próximo”.[1] As
rédeas e os olhos não são dos caminhos, claro, mas de cavalo e cavaleiro.
A sequência enfatiza a
imagem do cavalo real, a partir da representação usual da poeira levantada, a
que se contrapõe a insólita “o vento falou-me de seus cascos”, para dizer que o
barulho da cavalgada podia ser ouvido ao longe.
O terceto final guarda
uma nova surpresa: o eu lírico revela-se uma entidade superior, que tem um
papel predefinido, um destino – “Cumprir-me-ei” –, diante de “tanta gente
cansada nessas cruzes...”. O seu cavalo não é apenas um cavalo, mas todos os
cavalos, ensejando que o movimento que se articula em seguimento seja
interpretado como de retorno à vida: “Mortos, montai!”. Essa ideia é reforçada
pela repetição sistemática da locução “meu cavalo chegou”, que ecoa como um
refrão militar. Mas qual o significado possível dessa leitura? A resposta pode
estar no poema “Mensagem do amanhã”.
Embora repetido com menos
insistência, o refrão “essa aurora que vem” serve-se do símile “aurora” – chamo
símile a uma metáfora desgastada, onde a comparação, sem precisar ser feita,
está explícita – para designar o “mundo novo”. Se no poema anterior concluímos
com uma visão apocalíptica, dos mortos tomando a terra, neste temos a manhã da
redenção, onde apenas os puros, os loucos e os poetas herdarão a terra. Por
muito menos, Platão deixou os poetas do lado de fora de sua República.
“Mensagem do amanhã”
apresenta-nos a um mundo perigosamente idealizado, sem meios-termos, sem
concessões à aurea mediocritas a que
se referia o romano Horácio, que não conheceu o cristianismo. Vale ressaltar,
entretanto, entre expressões de gosto duvidoso, como “paletó de carne” e
“estrutura do amanhã”, a relação com o clown
chapliniano, Carlitos – um autêntico mensageiro da paz –, alegoria do homem
novo: puro de coração e espírito, um tanto louco, e envolto em permanente halo
de poesia. Carlitos é o arauto dessa “chave de amor”, trazida pela manhã do
mundo novo, que sucederá a noite apocalíptica, preconizada em “Meu cavalo
chegou”.
Profetas se expressam por
signos, como os poetas. O termo vate
é empregado tanto a profetas quanto a poetas. Farias de Carvalho, consciente
disso, exercita-se, sem maiores pudores, nas duas linhas. Sai-se muito bem como
poeta. Quanto ao mundo novo, a “nova república”, parece cada vez mais distante
do coração do homem.