Amigos do Fingidor

sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

Lira da Madrugada – Farias de Carvalho 8/15


Zemaria Pinto

 

 

Ficha biobibliográfica

 

Autor: Farias de Carvalho

Nome completo: Carlos Farias Ouro de Carvalho

Naturalidade: Manaus – AM

Nascimento: 8 de setembro de 1930

Falecimento: 25 de junho de 1997

 

Obra poética:

·       Pássaro de cinza (1957)

·       Cartilha do bem amar com lições de bem sofrer (1965)

 


MEU CAVALO CHEGOU

 

Meu cavalo chegou (memória e nuvem),

a aurora derramada sobre a crina.

Meu cavalo chegou. Fome de tudo

estou também: engoliremos mundos.

 

Meu cavalo chegou. E, pressentidos,

os caminhos me espiam de suas rédeas.

Meu cavalo chegou. Há quanto tempo

gasto-me em pés e olhos nesta espera...

 

Meu cavalo chegou. Eu despertava

quando o vento falou-me de seus cascos

e a poeira garantiu-me sua presença.

 

Meu cavalo chegou. Cumprir-me-ei.

Tanta gente cansada nessas cruzes...

Meu cavalo chegou. Mortos, montai!...

 

 

MENSAGEM DO AMANHÃ

  

Essa aurora que vem será dos puros,

dos bem-aventurados loucos de hoje;

dos que trocaram o paletó de carne

pela túnica azul dos infinitos.

 

Essa aurora que vem será dos poetas,

esses feitores mágicos de mundos,

– galopadores das palavras vivas

que serão a estrutura do amanhã.

 

Essa aurora que vem, cairá das mãos

desses pálidos anjos que andam, à noite,

tatuando mensagens nos espaços...

 

Essa aurora que vem, magicamente

pulará da cartola de Carlitos

com a chave de amor do mundo novo!


A poesia de Farias de Carvalho goza de livre trânsito entre a crítica social e o misticismo. O que, a distância, aparenta ser um paradoxo, verifica-se, com a visada sem pressa, que é tão somente uma demonstração de demasiada humanidade: a inquietação política não anula os cuidados com a alma, assim como a entrega mística não se desgarra do banal cotidiano. Desse modo, a poesia de Farias de Carvalho oscila ora para o discursivo e, por vezes, datado, ora para um existencialismo que tem suas raízes mais fundas na escola simbolista. Nos poemas a seguir analisados prevalece a opção espiritual, porém, conforme procuraremos demonstrar, a visão social está contemplada, pois o “mundo novo”, uma ideia recorrente na poesia de Farias de Carvalho, é dos puros e dos justos, dos oprimidos e dos que não enveredaram pelos caminhos da opressão. Parece simplório – e é. Mas estamos aqui tratando de símbolos, de representações idealizadas, onde a chave para qualquer decifração é o amor ao próximo, por mais que isso pareça fora de moda.

O poema “Meu cavalo chegou” traz, numa linguagem cifrada, própria da boa poesia, a euforia de um espírito com a presença da pessoa que vai recebê-lo ou incorporá-lo, conforme os rituais das seitas afro-brasileiras. A essa pessoa se chama cavalo, pois o espírito ou entidade, vindo das pradarias do além, “cavalga-o”, num transe, dominando os seus movimentos. O poema nos passa toda a angústia da espera intemporal, imensurável pelos padrões humanos:

(...) Fome de tudo

estou também: engoliremos mundos.

(...) Há quanto tempo

gasto-me em pés e olhos nesta espera...

Ao fim da espera soma-se a esperança, em imagens de beleza rara:

a aurora derramada sobre a crina.

Para montar as imagens, o poeta faz a opção por descrever uma cavalgada literal: numa inversão completa dos signos, o cavalo, antes metáfora de um ser humano, assume sua aparência animal, determinada pelas palavras “crina” e “rédeas”. Estamos falando de um conceito de raríssimo emprego: a metáfora que se engendra a partir de si mesma. Metametáfora?

(...) E, pressentidos,

os caminhos me espiam de suas rédeas.

Observe o que é o domínio da linguagem poética: para dizer algo como “os caminhos se abrem diante de suas rédeas” – o que seria belo em si mesmo, dada a perspectiva inusitada –, visando afirmar que o cavalo, em disparada, tem várias opções a seguir, o poeta diz “os caminhos me espiam de suas rédeas”. O verbo espiar, tão amazonense e tão prosaico, assume, na arquitetura do poema – sem perder o sentido original, de olhar – um significado transcendente, metafísico. Trata-se de um exemplo soberbo da figura de linguagem hipálage, que consiste em “atribuir a um ser as qualidades de outro ser que se encontra próximo”.[1] As rédeas e os olhos não são dos caminhos, claro, mas de cavalo e cavaleiro.   

A sequência enfatiza a imagem do cavalo real, a partir da representação usual da poeira levantada, a que se contrapõe a insólita “o vento falou-me de seus cascos”, para dizer que o barulho da cavalgada podia ser ouvido ao longe.

O terceto final guarda uma nova surpresa: o eu lírico revela-se uma entidade superior, que tem um papel predefinido, um destino – “Cumprir-me-ei” –, diante de “tanta gente cansada nessas cruzes...”. O seu cavalo não é apenas um cavalo, mas todos os cavalos, ensejando que o movimento que se articula em seguimento seja interpretado como de retorno à vida: “Mortos, montai!”. Essa ideia é reforçada pela repetição sistemática da locução “meu cavalo chegou”, que ecoa como um refrão militar. Mas qual o significado possível dessa leitura? A resposta pode estar no poema “Mensagem do amanhã”.

Embora repetido com menos insistência, o refrão “essa aurora que vem” serve-se do símile “aurora” – chamo símile a uma metáfora desgastada, onde a comparação, sem precisar ser feita, está explícita – para designar o “mundo novo”. Se no poema anterior concluímos com uma visão apocalíptica, dos mortos tomando a terra, neste temos a manhã da redenção, onde apenas os puros, os loucos e os poetas herdarão a terra. Por muito menos, Platão deixou os poetas do lado de fora de sua República.

“Mensagem do amanhã” apresenta-nos a um mundo perigosamente idealizado, sem meios-termos, sem concessões à aurea mediocritas a que se referia o romano Horácio, que não conheceu o cristianismo. Vale ressaltar, entretanto, entre expressões de gosto duvidoso, como “paletó de carne” e “estrutura do amanhã”, a relação com o clown chapliniano, Carlitos – um autêntico mensageiro da paz –, alegoria do homem novo: puro de coração e espírito, um tanto louco, e envolto em permanente halo de poesia. Carlitos é o arauto dessa “chave de amor”, trazida pela manhã do mundo novo, que sucederá a noite apocalíptica, preconizada em “Meu cavalo chegou”.

Profetas se expressam por signos, como os poetas. O termo vate é empregado tanto a profetas quanto a poetas. Farias de Carvalho, consciente disso, exercita-se, sem maiores pudores, nas duas linhas. Sai-se muito bem como poeta. Quanto ao mundo novo, a “nova república”, parece cada vez mais distante do coração do homem.


Meu cavalo chegou - Mensagem do amanhã
(Mauri Mrq e Farias de Carvalho)


 




[1] GRAÇA, Antônio Paulo. Como funciona a poesia. Manaus: Valer, 1999. p. 46.