Amigos do Fingidor

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quarta-feira, 5 de março de 2025

Folia no Seringal – lançamento

Zemaria Pinto


Começo agradecendo a presença de todos: a família – esposa, filhas, netas e irmãs; os parceiros Mauri Mrq e Tenório Telles; o time da Valer – Isaac Maciel, Neiza Teixeira, Bruna Chagas; amigos velhos, ex-alunos, pessoas que estou conhecendo hoje... E destaco ainda a presença do mestre Marcos Frederico Krüger, e do nosso decano Elson Farias, em cujas personas cumprimento a todos os presentes. Num hipotético país parlamentarista das letras, o Marcos seria o primeiro ministro e o Elson, o presidente.

Vigésimo oitavo livro publicado, ainda não me acostumei com o estresse dos lançamentos, e às portas dos setenta anos, tomo o cuidado de trazer estas breves palavras pré-escritas, para não correr o risco de gaguejar ou de simplesmente esquecer – não só o que ia falar, mas o que estou mesmo fazendo aqui?...

E olha que setenta anos não é pra qualquer um, que o digam os meus amigos Antônio Paulo Graça, Anibal Beça, Sérgio Luiz Pereira... e Torquato Neto, Paulo Leminski, Ana Cristina César... e Glauber Rocha, Raul Seixas, Sergio Sampaio, Cazuza... e Jimi Hendrix, Janis Joplin, Amy Winehouse... Mas, de uma coisa fiquem certos: com a chegada da velhice, nós aprendemos que não sabemos nada do que pensávamos que sabíamos quando jovens. Por favor, não me cancelem, isto não é etarismo; é apenas uma autocrítica. Se não, vejam.

Professora Neiza Teixeira, que conduziu o evento.

Entre os 15 e os 17 anos, estudei o Científico, equivalente ao ensino médio de hoje, no Colégio Estadual (ou simplesmente Estadual). Ficava vendo de longe os componentes do Clube da Madrugada que frequentavam o Café do Pina, na praça em frente – a da Polícia. Moleques, eu e Geraldo dos Anjos ficávamos horas a falar mal dos “funcionários públicos da literatura amazonense”. Estúpidos, nós dois, não demoraria muito para tomarmos consciência dessa estupidez. Mas, a juventude, vocês sabem, não acaba aos 17 anos... É um processo. E de repente vem a artrose, a artrite, a arritmia, a glicose, as viroses a pressão alta, a pressão baixa, a falta de... sezão... E estamos irremediavelmente velhos.

Folia no seringal é um balanço da minha aventura como ensaísta, reunindo doze exemplares da minha produção no gênero, desde “Maranhão Sobrinho, o místico de Satã”, publicado em 1999, como prefácio de Papéis Velhos... roídos pela traça do Símbolo, na histórica Coleção Resgate, coordenada por esse mítico guerreiro das Letras amazônicas, Tenório Telles, até textos escritos nesta década, vinte e tantos anos passados. E tudo tendo como eixo o Clube da Madrugada, fundado em 1954. Com este livro, celebramos os 70 anos do Clube.

Folia no seringal faz um passeio pela trajetória do Clube, que é o caminho traçado pela literatura feita no Amazonas, mostrando que há um antes e um depois do Clube da Madrugada, sendo o durante a própria existência do Clube. Comecemos pelo princípio.

 

Mauri Mrq, músico e compositor.

Antes – o ensaio de abertura, “A paisagem na literatura de viajantes e nativos”, começa com Frei Gaspar de Carvajal, que escreveu, no seu relato, Descobrimento do rio de Orellana, a nossa certidão de nascimento; e faz um breve inventário dos viajantes e nativos que tomaram a paisagem como personagem: Cristóbal de Acuña (Novo descobrimento do grande rio das Amazonas), Henrique João Wilkens, o poeta do genocídio (Muraida), Julio Verne (A jangada, 800 léguas pelo Amazonas), Conan Doyle (O mundo perdido), Raul Pompeia, autor de O Ateneu, escreveu Uma tragédia no Amazonas, com 17 anos; Euclides da Cunha (que estava escrevendo Um paraíso perdido quando foi parado pela bala de um desafeto); Ferreira de Castro (e o superestimado A selva); e os amazonenses Octavio Sarmento (A Uiara) e Violeta Branca (Ritmos de inquieta alegria).

Destaco, no já citado “Maranhão Sobrinho, o místico de Satã”, o poeta que, vivendo em Manaus, na minha Cachoeirinha, e aqui morrendo, foi o autor que logrou maior reconhecimento nacional na era pré-Madrugada. Nenhuma antologia séria do Simbolismo brasileiro o ignora.

O terceiro ensaio, fechando esse grupo, diz ao que veio já no título: “Romancistas e contistas: a literatura de ficção na Academia Amazonense de Letras”. Porque sempre tem um incomodado a reclamar que a Academia tem escritores de menos. E é verdade, mas isso não chega a ser nenhuma catástrofe, porque os escritores da AAL dominam outros saberes, além da literatura de ficção. Vejam. Em cem anos de existência, 1918-2018, contam-se 15 ficcionistas, em um total de 148 acadêmicos; 10%, portanto; o que significa que os outros 90% dominam outros saberes. E escrevem livros sobre eles.

 

Tenório Telles, escritor e crítico literário.

Clube da Madrugada – o ensaio que abre este capítulo não se isenta de polêmica, em três frentes; duas afirmações e uma pergunta. Primeira afirmação: o Clube da Madrugada não se constituiu como um movimento, uma vez que não tinha um programa estético, e sim político. Segunda afirmação: o Clube da Madrugada não foi o Modernismo no Amazonas. E a pergunta: até onde vai, cronologicamente, o Clube da Madrugada? Costuma-se dizer, eu mesmo já o disse várias vezes, que o Clube da Madrugada foi fruto de uma geração excepcional. Na verdade, foram pelo menos três gerações.

Na sequência, quatro ensaios sobre quatro autores emblemáticos do Clube: Luiz Bacellar (Frauta de barro), Astrid Cabral (Alameda), Elson Farias (Memórias literárias) e Ernesto Penafort (uma visão geral de sua obra, mostrando que havia muita poesia além do azul). Esses quatro autores representam as mais de duas dezenas de autores que gravitaram em torno do Clube.

Eu lembro que, há exatos 10 anos, em um 9 de março, Eu e o Mauri, juntamente com o Tenório, o Marcos Frederico, o Alisson, a Nícia e outros amigos, lançávamos na sede da Academia o livro-objeto Lira da Madrugada, homenagem aos 60 anos do Clube – aliás, não fomos eu e o Mauri, mas sim o Mauri e eu. O Mauri cantou, tocou, fotografou, produziu, deu palpite em tudo. Eu só desorganizei as ideias poéticas, para dar um toque de não sei quê. Parece que faz tanto tempo: até o conceito de livro-objeto, nestes tempos virtuais, fica difícil de entender. Vou tentar: eram dois livros e um CD. O CD era um disquinho compacto, um compact disk... É melhor parar por aqui...

 

Depois – reunindo três ensaios de autores que surgiram após o auge do Clube da Madrugada, comenta-se a dramaturgia amazônica de Marcio Souza – A paixão de Ajuricaba, Jurupari, a guerra dos sexos, A maravilhosa história do Sapo Tarô-Bequê, As Folias do Látex, Tem piranha no pirarucu e muitas outras; o romance histórico de Rogel Samuel, O amante das Amazonas; e três títulos da escritora Márcia Antonelli, que tem a figura de um adulto portador de nanismo como protagonista e como isso se desenvolve entre o grotesco, o fantástico e o marginal: são eles O enterro do anão, O anão do açougue e O anão trompetista. De novo, quero deixar bem claro que isso não é capacitismo, até porque os anões de Márcia, além de protagonistas, são personagens com uma carga trágica muito forte. E foi isso o que me encantou neles, além da já conhecida capacidade da autora de engendrar tramas fantásticas. Antonelli representa, no livro, a literatura produzida no Amazonas neste século 21. É, portanto, o que há de mais novo em nossa literatura.   

Zemaria Pinto.

Fechando o capítulo, um ensaio – “Miniconto, microconto, nanoconto, contos são?” – onde se discute uma tendência minimalista do conto contemporâneo, que chega a usar os muros da cidade como veículos para o texto, lembrando a Poesia de Muro, teorizada pelo poeta madrugadense Jorge Tufic.

Por fim, sempre me têm perguntado “por que Folia no seringal”? Talvez estranhando um súbito relaxamento na sisudez com que se trata a literatura sobre a época. Lembro o amigo Márcio Souza, a quem presto todas as reverências que um discípulo deve ao mestre: a peça As folias do látex, encenada pela primeira vez em 1976, me deu a senha. Então, eu li o lírico romance do amigo Rogel Samuel como se fora um desfile carnavalesco, trocando o circunspecto Bakhtin, teórico da carnavalização, por um glamoroso e feliz Joãosinho Trinta. Evoé!   

O livro é de vocês! 

          

 Fotos: diversos autores; obrigado a todos.

quinta-feira, 21 de março de 2024

A poesia é necessária?

 

Silêncio molhado

Saturnino Valladares

 

Disfarçado de memória, um silencio

molhado habita minhas intimidades,

como uma gota de chuva na altura

da vertigem.

Minha voz não descobre o que de mim

escondo. Não me revela o fulgor

vazio do poema que me escrevo.

Meu pensamento não está nas minhas palavras.

 

Tudo o ocupa o silêncio molhado.

 

Arde, dói, apaga-se e não me acalma

a tristeza de compreender

e não saber. E não querer saber.

 

Tradução: Tenório Telles


terça-feira, 12 de dezembro de 2023

A cultura do cancelamento chega à UEA

A propósito de um Encontro de Literatura e os Novos Inquisidores 

Por Tenório Telles



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quinta-feira, 3 de agosto de 2023

A poesia é necessária?

                

Reminiscências

Tenório Telles

 

Lá fora a chuva

banha (a vida) de prata e silêncio:

o girassol dança

ao ritmo do vento

– disco solar em botão.

 

Embalado pelas lembranças

que habitam os cômodos

da casa da memória

– eu – grávido de ti

costuro retalhos do tempo.


quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

Almoçando com Lucchesi

 

O presidente da Academia Brasileira de Letras, escritor Marco Lucchesi, cujo mandato termina no próximo mês – “não vejo a hora!”, ele diz –, passou este final de semana em Manaus, em compromissos diversos. No sábado, atendendo a um convite do amigo Tenório Telles, presidente do Concultura, Lucchesi almoçou com artistas e escritores. As fotos registram o encontro.

Marco Lucchesi promoveu uma verdadeira revolução na ABL, tanto do ponto de vista administrativo quanto acadêmico – injetando, sobretudo, qualidade na instituição.   


Lucchesi, Zemaria Pinto e Tenório Telles.

Da esquerda para a direita: escritor Thiago Roney; Alonso Oliveira, presidente da ManausCult; artista plástico João Bosco Ricochote; Marco Lucchesi e os escritores Tenório Telles, Marcos Frederico Krüger, Zemaria Pinto e Tainá Vieira. 
Fotos: Marcely Gomes.

Lucchesi, ladeado pela artista plástica Monik Ventilari e as escritoras Neiza Teixeira, Leyla Leong e Tainá Vieira.
Foto: Zemaria Pinto.


quarta-feira, 28 de abril de 2021

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Estudos de Literatura do Amazonas

 


A primeira tentativa de se escrever algo próximo a uma história da literatura amazonense data de 1934, autoria de Anísio Jobim, cuja memória dissociou-se da literatura, vinculando-se à barbárie das revoltas acontecidas no complexo prisional que leva o seu nome. A Intelectualidade no Extremo Norte, subintitulado “Contribuições para a História da Literatura no Amazonas”, é um levantamento dos nomes que deram algum lustro, não à literatura, mas a esse conceito vago e impreciso do que é ser “intelectual”, abrangendo cerca de 180 anos – desde a segunda metade do século 18 até a década de 1930. A conclusão a que o historiador chega é de que “não temos, nem podemos ter, por força das condições do meio, uma literatura regional”. Depois dele, o jovem Djalma Batista, outro que se afastou da literatura de invenção, publicou Letras da Amazônia (1938), uma síntese abrangente, se me permitem o paradoxo, que começa com Carvajal, no século 16, e chega até o mesmo ponto de Jobim. De lá para cá, mais de 80 anos passados, contamos dois títulos de Mário Ypiranga Monteiro, Fases e Fatos da literatura amazonense (anos 1970), além da fragmentária mas indispensável contribuição de Jorge Tufic (anos 1980) e mais meia dúzia de antologias – uma forma de, definindo um cânone, escrever a história.

Agora temos, com 20 anos de atraso, este Estudos de Literatura do Amazonas, escrito a quatro mãos por Antônio Paulo Graça e Tenório Telles. O título mereceria um exame à parte: por que estudos e não história? Por que literatura do Amazonas e não o elástico literatura no Amazonas ou mesmo o soberbo literatura amazonense? Todas essas perguntas estão respondidas no texto, claro. E há muitas outras respostas a descobrir, antes da revelação final: existe uma literatura amazonense? Assim como a história se constrói a partir da própria história, sem nunca se dar por acabada, a literatura se transforma sob o olhar crítico de leitores especializados, observando-se dois valores essenciais: o estético e o histórico. Com isso, algumas obras vão para os arquivos do tempo, enquanto outras são chamadas para a vitrine da glória – efêmera, muitas vezes, pois a historiografia literária é sobretudo reflexo e reflexão de seu próprio tempo.  

Paulo Graça, o amigo Paulinho, era um polemista aguerrido – sem perder a ternura jamais. Imagino o trabalho do amigo Tenório com o seu clarinete mozartiano harmonizando a dissonância blues da guitarra graciana... Pois é dessa parceria – inusitada, se não fosse ligada por laços de profunda amizade e sincero amor (ou vice-versa) – é dessa parceria que nasce uma obra marcante para a história e a literatura do Amazonas.

Agora, sim, com a trilha sonora perfeita, podemos afirmar, finalmente: a história da literatura amazonense começa a ser escrita.  

Zemaria Pinto

(na orelha de Estudos de Literatura do Amazonas, Manaus: Editora Valer, 2021. 704 p.)

quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

A poesia é necessária?

 Platônica

Tenório Telles

Para Marcos Frederico

 

o pássaro da poesia

[línguaprateada]

incendeia a cortina

do mundo:

sombras deixam

o casulo   e      v o a m

em busca de luz

o coração em trevas

ful/gura e flor/esce

como um sol originário

e inexplicável


quinta-feira, 13 de junho de 2019

A poesia é necessária?


Canção da esperança

 Tenório Telles

Para Michele


Neste tempo desolado
de sonhos subtraídos
e utopias amortalhadas
– ergo este canto para celebrar
a esperança entressonhada

Neste tempo de partos sem flores
de silêncio e de almas violadas
– ergo este canto para celebrar
a semente que arde em luz.

Neste tempo de vidas fraturadas
de olhos imantados e corações ressecados
– ergo este canto para celebrar
a inocência e o brilho da infância.

Neste tempo de morte e de sombras
de guerras e de campos devastados
 – ergo este canto para celebrar
a vida e os que tombam pela liberdade

Contra toda desesperança
Contra toda cegueira e emudecimento
Contra toda indiferença

– Ergo este canto para celebrar
a manhã. os rios
as florestas e seus enigmas
– Ergo este canto para celebrar
os pássaros – suas cores e cantos
as flores. o ser humano e a utopia
e também os olhos da amada.

É para vós
este canto de esperança
– que mesmo sendo pranto –
se eleva como música luminosa.

É para vós
este canto de exaltação
– que floresça em vossos olhos
– que se faça verdade em vossas bocas
e nasça como verdade em nossas vidas.

sexta-feira, 12 de abril de 2019

Um diálogo poético com Thiago de Mello 2/2




Tenório Telles*


Fui seguindo viagem, navegando as águas da tua poesia e parando nos diversos portos que são os teus livros. Notei que eles testemunham episódios da tua longa caminhada. Tem muita gente que pensa que a tua lírica é apenas de combate ou, como preferem outros, comprometida socialmente. Tua poética possui diversos matizes e tons. Aliás, o início do teu percurso criativo é marcado por uma dicção reflexiva sobre o existir e o sentido da tua presença neste vasto mar que se chama vida: O poema “Rumo” é revelador dessa inquietude e dessa busca: “Minhas faces mais diversas / são labirintos antigos / que me confundem e perdem // Para chegar até onde / não me presumo, mas sou, / sigo em forma de palavra”.
Sabe, amigo velho, hoje consigo compreender o sentido do verso que abre o poema que acabei de citar: “Somente sou quando em verso”. Tenho a impressão que o que dá existência às coisas são as palavras. Existimos pelas palavras. Penso que o mundo não existe em si mesmo. Acho que tudo é uma grande ilusão. Ou como dizia Shakespeare, um teatro. De bufões, loucos e espectros. Quando afirmas que és pela poesia, lembro de uma passagem do professor Bosi em que ele afirma que o poético é um ato de ressignificação e de “reencantar pessoas, coisas e eventos, mas também reconhecer-se em si mesma, palavra que se dobra sobre a palavra”. Acredito que a única forma de ser verdadeiro e de chegar ao cerne das coisas é pela poesia e por isso teu verso é epifânico.
Gosto da delicadeza dos teus poemas afetivos. Não seriam propriamente amorosos, mas enamorados, cheios de ternura, vibração e calorosos. “Num campo de margaridas” é tão bonito e comovente. E de uma densidade crua e delicada. Ele está sempre comigo. Lembro sempre dele. Ouço o ritmo dos versos e fico perscrutando o movimento das cenas. O jogo entre o onírico e a vigília. E de como o encontro dos enamorados se dá dentro do sonho:

   Sonhei que estavas dormindo
   num campo de margaridas
   sonhando que me chamavas,
   que me chamavas baixinho
   para me deitar contigo
   [...]

   Mas eu não fui, meu amor,
   que pena!, mas não podia,
   porque eu estava dormindo
   num campo de margaridas
   sonhando que te chamava
   que te chamava baixinho
   e que em meu sonho chegavas,
   que te deitavas comigo
   e me abraçavas macia
   num campo de margaridas.

Thiago, percebi que nos teus poemas tu contas na verdade uma história. Há uma narrativa permeando teu discurso poético. Entre tantas coisas e temas [liberdade, utopia, amor, justiça...] que teces com os fios do teu canto, o que sobressai é a tua vida, teu itinerário poético-existencial: a descoberta do mundo, da poesia, o sonho de uma sociedade diferente, libertária e mais justa. Plasmando tudo isso, um Eu à procura de si, de um lugar na existência e desejoso de compreensão e acolhimento. Esse ser, esse menino desconsolado, esse homem em busca de redenção se anuncia e se enuncia ao longo dos poemas. Tuas dores são dores que te aproximam dos outros e também de mim.
Nos versos de o “Encontro com o pai”, senti tua tristeza, a angústia da criança que um dia esperou do pai a “antiga ternura / e velhos carinhos / jamais transmitidos”, mas que viste “acumulados” em seus olhos. Talvez por isso és tão veemente no artigo oitavo dos “Estatutos do homem”: “Fica decretado que a maior dor / sempre foi e será sempre / não poder dar amor a quem se ama”. Imagino a falta que fez esse afeto silenciado no olhar do teu pai. Eu também convivi com esse silêncio e sei a dor que ele causa. Tua mãe, dona Maria Mitouso de Melo, teve sabedoria para depurar essas feridas com o bálsamo do amor e do cuidado. O poema que dedicas a ela é de uma ternura e comoção que faz qualquer um chorar:

   Dona Maria está partindo.
   Parece que está dormindo.
   Mas já está chegando ao finzinho
   do vale que leva à eternidade.

   Quero só ver o que a eternidade
   vai fazer com Dona Maria.
   Ela sempre garantiu, desde mocinha,
   que ia morar lá no céu.
   E muito ouvi dela que Jesus,
   de quem era serva fiel,
   A esperava, contente.

E por falar em eternidade, caro amigo, noto que, embora ressaltes que não tenhas “lá essas certezas” quanto a essa matéria, desde os teus primeiros livros há uma atmosfera de dúvida, uma ânsia de compreensão de si e do mundo – uma certa angústia metafísica. No “Silêncio e palavra”, de 1951, flagra-se um sinal alusivo a um certo sentido de transcendência presente na tua fala poética. Quarenta e cinco anos depois publicaste um poema, a propósito denominado “Da eternidade”, em que reiteras esse vínculo com uma percepção que considera a possibilidade da transcendência e de um princípio primevo que gerou todas as coisas:

   Da eternidade venho. Dela faço
   parte, desde o começo da vida
   dos que me fizeram ser
   até chegar ao que sou.

Como abarcar a complexidade dessa nossa vida tão cheia de segredos e coisas que nos ultrapassam? Embora nos achemos autossuficientes, o fato é que sabemos tão pouco sobre o que somos, nosso lugar no mundo, nosso destino, o que nos espera... Várias vidas não seriam suficientes para esclarecer tantas dúvidas e mistérios. A vida foi dadivosa contigo, meu bom amigo. Chegaste até aqui e estás próximo de completar uma centena de anos. Sobreviveste a tantas coisas e viste muito neste mundo tão grande e inapreensível. E por teres vivido tanto, aprendeste a “cultivar... o dom de ver, / mesmo o que visto dói de ausente brasa”.
Foi para te celebrar – tua vida e teu canto – que escrevi esta carta para ser lida por ti e por todos os que te querem bem. Que aprenderam a respeitar tua história e a amar teus versos. Escrevi esta carta também para registrar teus longos anos de vida, tua luta, teu comprometimento com a causa do ser humano e a transformação do mundo. E porque te mantiveste fiel a ti e ao propósito de ser no mundo – e combateste o bom combate sem te renderes como os guerreiros de Leônidas, que resistiram até o fim pela liberdade –, relembro, neste momento, para louvar tua vida e tua poesia, os versos do poeta grego Simonides dedicados ao general espartano e seus soldados:

   Digam aos espartanos, estranhos que passam,
   Que aqui, obedientes às suas leis, jazemos.

Estas palavras, amigo leitor, é para testemunhar um poeta e sua história. E também para celebrar a amizade – para que não esqueçamos a mensagem desse filho de nossa terra que cantou a liberdade, a utopia e um novo sonho para a humanidade – na certeza de que um dia

   haverá girassóis em todas as janelas,
   que os girassóis terão direito
   a abrir-se dentro da sombra;
   e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
   abertas para o verde onde cresce a esperança.

Thiago, este pequeno gesto é para que saibas que nada foi em vão e que a tua poesia foi inspiração e força para os teus amigos e leitores. E também para os que continuam sonhando com um mundo mais generoso, mais verde e mais solidário. Parabéns, querido amigo. Que as musas continuem inspirando teu canto e te guardando.




*Tenório Telles é poeta e ensaísta, autor de Canção da esperança & outros poemas, Viver e Clube da Madrugada – presença modernista no Amazonas.

sexta-feira, 5 de abril de 2019

Um diálogo poético com Thiago de Mello 1/2



Tenório Telles*


Thiago,

Fiquei sensibilizado, no nosso último encontro, com o teu ânimo e altivez com que enfrentas as circunstâncias do tempo que te afligem. Nem as dores e nem o cansaço dos anos abateram teu ser resistente, pois como dizes

   De madeira lilás (ninguém me crê)
   se fez meu coração. Espécie escassa
   de cedro, pela cor e por conter
   no seu âmago a morte que o ameaça.
   [...]
   No crepúsculo estou da ribanceira,
   entre as janelas e o chão que me abençoa
   as nervuras. Já não faz mal que doa
   meu bravo coração, de água e madeira.

Filho da terra verde ribeirinha, dos encantados e dos rios amazônicos – teu coração tem o vigor das árvores centenárias da floresta e teu ser, a fundura dos rios e seus mistérios. Por isso resististe às tempestades, às dores e às perdas que te foram dadas viver. E agora mais uma primavera, florescente girassol, abre-se no teu peito: completas 93 anos e segues tua travessia com coragem, humor e sem lamentos.
Ao chegar em casa decidi revisitar teus livros e logo me deparei com o poema “Na manhã do milênio”, em que refletes sobre o significado da existência e te questionas sobre a validade dos teus sonhos, as promessas não cumpridas do nosso tempo e o sentido da tua própria poesia. Teu poema é doloroso porque nos expressa igualmente em nossas inquietações, buscas e sonhos nem sempre realizados. Mas tua capacidade de encantar as palavras, colori-las e revesti-las de humanidade o tornou belo e pungente. Li-o devagar, ouvindo cada verso, imaginando tuas mãos deslizando pela página, tua respiração e o compasso do teu coração relembrando os fatos e vivências que evocas no texto:

   De que valeu o assombro indignado
   e esta perseverança que me acende
   em pleno dia a estrela que me guia,
   seguro do meu chão e do meu sonho?
   [...]
   De que valeram todas as palavras
   que proferi na treva da esperança?
   Tão pouco, talvez nada. Não consola
   saber que fiz, que fiz a minha parte,
   que reparti com tantos o diamante,
   que olhei o sol de frente e não fugi
   (nem do meu próprio medo).
   De consolo não cuido. Pois valeu.
   Que tudo vale a pena quando a alma
   não é pequena.
                            Não sei o tamanho
   da minha alma. Só sei que vou varando
   o fim do rio, já posso discernir
   a margem que me chama. Mas obstinado
   confiante sigo no poder distante
   da estrela alucinante. Que destino
   de estrela é o de brilhar.
                             E mesmo extinta
   brilhante permanece sobre o mundo.

Este poema bem poderia ser teu testemunho poético ou tua carta ao mundo – como declarou Emily Dickinson ao conceber um de seus textos. Hoje percebo que teu canto transcende qualquer declaração ou tema particular. Tua poesia é teu chão, tuas vivências e tua infância, onde aprendeste a enfrentar os humores da natureza e, “entre os rebojos”, perdeste o medo. Teus versos tresmalhados de água, barro e vida se fizeram protesto e canção. Por isso carregas esse “grito que cresce”

   Cada vez mais na garganta,
   cravando seu travo triste
   na verdade do meu canto.

   Canto molhado e barrento
   de menino do Amazonas
   que viu a vida crescer
   nos centros da terra firme.
   Que sabe a vida da chuva
   pelo estremecer dos verdes. 

Caro amigo,

Sei o quanto a vida te foi cara pelas tuas escolhas e pelos compromissos que assumiste diante do teu tempo e da humanidade. Entre um existir resignado e a luta pela construção de um mundo menos bárbaro e desigual, te lançaste nas águas da história e, como os antigos argonautas, foste em busca da lâmpada capaz de despertar os seres humanos do negror da indiferença e da ignorância. Tua arma foi teu canto: sabias que as noites passam e por mais que os perversos prolonguem seu domínio de sombras e mentiras, a aurora, brasa incendida sob as cinzas, se tornará fogo, claridade. E não sendo possível deter o tempo, sabes que “a manhã vai chegar”. Que o novo é inevitável. Entre noites, guerras e solidão o destino humano se tece indiferente. E o que importa, como disseste, é “poder dar amor a quem se ama / sabendo que é a água / que dá à planta o milagre da flor”.
Pensando nisso, lembrei do poema que escreveste quando estiveste preso com o Cony, o Callado e o Glauber Rocha. Era o início do ciclo de sombras que se abateu sobre o país e vocês, como os espartanos nas Termópilas se lançaram contra a força dos senhores do poder. Nessa “Iniciação do prisioneiro”, escrito no cárcere em novembro de 1965, ressaltas exatamente a necessidade de afirmar o Amor como alento e contraponto àquele momento de suplício:

   É preciso que Amor seja a primeira
   palavra a ser gravada nesta cela.
   Para servir-me agora e companheira
   seja amanhã de quem precise dela.

Alguns anos depois viveste situação semelhante no Chile quando o sonho de Allende e do povo chileno foi tragado pelo fogo e pela morte. Por pouco não perdeste a vida, como ocorreu com o cantor Víctor Jara e outros artistas chilenos. Mas a providência te queria vivo, apesar do longo inferno que tiveste que amargar no exílio. Há um fato da tua história que me comove ainda hoje. Ele me foi relatado por um poeta peruano. Contou-me que estavas no Peru e para saciar tua saudade da pátria organizaram uma expedição clandestina ao rio Solimões para que pudesses ver, sentir o cheiro e estar próximo da tua terra. Fico imaginando os sentimentos que rebojavam dentro de ti – tão perto e tão longe do país. Dos teus familiares. Essas experiências te ensinaram que, apesar das intempéries, é preciso continuar navegando

   Como um rio, que nasce
   de outros, saber seguir,
   junto com outros sendo
   e noutros se prolongando
   e construir o encontro
   com as águas grandes
   do oceano sem fim.
  
   Mudar em movimento,
   mas sem deixar de ser
   o mesmo ser que muda.
   Como um rio.


(Conclui na próxima sexta-feira)

*Tenório Telles é poeta e ensaísta, autor de Canção da esperança & outros poemas, Viver e Clube da Madrugada – presença modernista no Amazonas.