Amigos do Fingidor

terça-feira, 31 de janeiro de 2023

Vamos ajudar nossos irmãos!

 Pedro Lucas Lindoso


Seu Tibiraçá nasceu em Boa Vista, quando a cidade era capital do Território Federal do Rio Branco. O nome dado ao então território federal se deve ao rio do mesmo nome que banha a cidade de Boa Vista.  Sabemos que a capital do Acre também é Rio Branco. Por outro motivo. Homenageia o Barão do Rio Branco, que assinou o Tratado de Petrópolis, anexando o Acre ao Brasil.

 Segundo Tibiriçá, havia sempre muita confusão. Correspondências endereçadas para o Acre iam parar em Boa Vista. E vice-versa. O fato é que o território passou a se chamar Território Federal de Roraima, hoje um dos estados da federação.

Seu Tibiriçá veio para Manaus ainda bem jovem. Tirou sua identidade aqui. O documento consta que seu Tibiriçá é natural de Rio Branco-AC. O erro só foi notado anos depois. E ficou por isso mesmo. Ele faleceu acreano sem nunca ter estado por lá.

Lembrei-me dele com as terríveis notícias sobre as condições deploráveis do povo Yanomami. Tibiriçá contava que o primeiro massacre sofrido por eles se deu há séculos. Quando os primeiros colonizadores chegaram na região de Manaus, havia duas tribos: os Manaus e os Barés. Os portugueses conseguiram conquistar os Manaus. Mas os Barés eram mais rebeldes.

Com auxílio dos Manaus, os colonizadores tocaram fogo na maloca dos Barés, com o fim de exterminá-los. Eles fugiram para o norte. Segundo Tibiriçá, os Yanomamis são remanescentes dos barés. Mas seu Tibiriçá nem sempre contava a verdade. Tinha uma imaginação fértil. Então esse relato está despido de qualquer cientificidade historiográfica.

O fato é que esse povo sofre desde sempre. A terra deles é inóspita. A umidade da floresta é elevadíssima por lá. Ademais, o relevo é muito acidentado e não ajuda na proteção pelo estado e por políticas públicas eficazes.

Infelizmente, desde que a reserva indígena foi homologada, impera a degradação e mortes do povo Yanomami. Deixados à própria sorte. Estão morrendo de enfermidades e desnutrição. O povo Yanomami, segundo Tibiriçá, é muito ingênuo e não sabem comercializar as coisas. Tudo isso tem uma causa. O garimpo do ouro. Lembro-me de seu Tibiriçá me ensinar que Yanomami significa “ser humano”. E nós o que somos? Essa inércia dos governos precisa acabar. São mais de 35 anos de massacre lento e gradual. Quando viviam isolados, estavam em paz e saudáveis. Vamos ajudar nossos irmãos! 


domingo, 29 de janeiro de 2023

Manaus, amor e memória DCIII

 

Planta da cidade de Manaus, em 1852, quando era governador o hoje dourado
Tenreiro Aranha, publicada em 1897.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

A poesia é necessária?



Clique sobre figura, para reproduzir do YouTube
a música de Mauri Mrq para o poema abaixo,
de Zemaria Pinto.

exercício nº 21

Zemaria Pinto

 

soneto  meu, faustino de armação

tramado e arquitetado em vário

desarma-se

em vis desvios vãos

limítrofes

à tinta e ao papel

 

(meu      canto      fraturado

              é um crânio

              morto

 oco       osso

 síntese de nada

              ou

 cousa alguma:

                         crianças & urubus

 canteiros            de         noturnos

                     girassóis)

 

soneto meu de têmpera diversa

forjado em noites

                             sob lamparinas

                             silvos de partidas

                             salvas perdidas

 

a ti revelo-te

                       tua natureza

a ti entrego-te

                       meu braço destro

                       meu sexo

                       meus olhos

                       e meus delírios

 

(do livro Música para surdos, Manaus: Valer, 2001)

 

 

terça-feira, 24 de janeiro de 2023

Fascinação é fascinação

 Pedro Lucas Lindoso


Recebo notícias de um amigo que está fazendo pós-doutorado na Inglaterra. O assunto recorrente na imprensa escrita, falada e na televisão, inclusive e principalmente nas mídias sociais, é o livro autobiográfico do Príncipe Harry.

O livro se chama “Spare”. Há vários significados para o vocábulo. Pode se traduzir como poupar, privar-se de, reserva, disponível e sobressalente, dentre outros. Penso que o príncipe, desde menino, se sentiu um sobressalente. Como irmão mais novo e segundo na linha de sucessão ao trono.

Meu amigo, o qual chamarei de Luís, leu o livro. Eu não o li e provavelmente não vou ler. Disse-me que o livro é muito bem escrito pelo “ghost writer” escolhido e contratado por Harry. Trata-se, antes de tudo, de uma vingança em honra da falecida Princesa Diana, mãe de Harry. Ele é impiedoso com a sua madrasta, a Rainha Consorte Camila.

Outro ponto muito polêmico são suas confissões sobre a quantidade de talibãs que morreram com sua participação em operações de guerra. O que acontece em campo de batalha deve ficar no campo de batalha. A família real pode até perdoar o príncipe pelos descalabros ditos. Mas os militares britânicos jamais perdoarão Harry. Muito menos os compatriotas dos abatidos pelo príncipe boquirroto. Acredito que ele jamais poderá dispensar seguranças, enquanto viver.  

Para muitos ingleses conservadores e monarquistas ferrenhos, o livro é uma traição. Para esse pessoal, o mínimo que ele merece é ser despido de todos os títulos e deserdado. É um acinte à memória de sua falecida avó. A Rainha Elizabeth II exigia da família que não reclamassem de nada e que não comentassem nada dos assuntos familiares.

Last but not least, Luís me lembra que a rivalidade entre Harry e William começou a ser descrita com Caim e Abel, nos textos do Velho Testamento. O tema foi explorado de Shakespeare a Machado de Assis. O nosso festejado escritor amazonense Milton Hatoum enfrenta a temática no seu livro “Dois irmãos”. O romance trata da relação conflituosa entre dois irmãos de uma família de libaneses em Manaus.

A tia avó de Harry, Princesa Margareth, tinha inveja de sua irmã, a Rainha Elizabeth II. Margareth teve uma biografia bastante conturbada e desafiadora. Quanto à esposa de Harry, Meghan Markle, trata-se de um típico caso de fascinação. O mesmo fenômeno de nosso Pedro I com a Marquesa de Santos. Assim como do tio bisavô de Harry, Príncipe Edward, com Wallis Simpson, a Duquesa de Windsor.

Harry é fascinado por Meghan. Perdoem o príncipe pelo livro. Fascinação é fascinação!

 

domingo, 22 de janeiro de 2023

Manaus, amor e memória DCII

 

Distrito Industrial de Manaus, com a Bola da Suframa em primeiro plano.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

Gal Costa em quatro ou cinco tempos

 De musa da Tropicália a diva do samba-canção

Zemaria Pinto


“Eu não tenho medo de mudar, gosto do novo e encaro os possíveis erros de frente, porque sei que só assim se pode criar. O caminho é feito de descobertas e sou feliz assim.”

(Gal Costa, em 1970)[1]

 

 

Se você chegou até aqui é porque percebeu que o título é uma provocação. Não há apenas duas Gal, mas múltiplas. Tomemos a mão da menina extremamente tímida, que, aos 24 anos, ainda quase Maria da Graça, iniciou uma revolução estética e de costumes – enquanto o país era dilacerado por uma ditadura sanguinária. Gal, sem pegar em armas, fez a sua parte na Resistência.

O primeiro álbum de que ela participou foi Domingo (1967), de Caetano, onde era coadjuvante de luxo. Caetano, na contracapa, justifica a parceria: “Gal participa dessa qualidade misteriosa que habita os grandes cantores de samba: a capacidade de inovar, de violentar o gosto contemporâneo, lançando o samba para o futuro, com a espontaneidade de quem relembra velhas musiquinhas”. Como se percebe, Caetano ainda não abrira a mente para as inovações que ele, Gil, Tom Zé, Torquato Neto, Capinam, Os Mutantes et cetera promoveriam a partir do ano seguinte, quando lançaram Tropicalia ou Panis et circencis, onde Gal seria novamente figurante, não mais cantando sambas...

 

Em 1969, enfim, o primeiro solo: na capa, o seu nome e o rosto em close, saindo de um look de plumas, o olhar perdido nalgum vão do éter... “Não identificado”, de Caetano, a primeira faixa, era o primeiro estranhamento. O arranjo do maestro Rogério Duprat, pleno de cordas, colocava o ouvinte numa sala de cinema, onde se projetava um filme de sci-fi, mas a poesia da letra apontava, num processo metalinguístico, para algo mais singelo: apenas um “iê-iê-iê romântico”. E Caetano cria uma rima interna sublime: “um anticomputador”: romântico x anticom...

Na sequência, “Sebastiana”, do repertório de Jackson do Pandeiro, com uma levada de rock, no arranjo de Gil, era o tributo à tradição, um dos pilares da Tropicália. “Saudosismo”, de Caetano, cumpre a mesma função, ao reverenciar criticamente a Bossa Nova: “as notas dissonantes se integraram ao som dos imbecis”. E conclui com uma avalanche de “chega de saudade, chega de saudade, chega de saudade...”. O novo chegara.

E Gal repete “Baby”, gravada com Caetano, uma das mais emblemáticas e polêmicas do álbum manifesto Tropicalia (assim mesmo, sem acento). “Leia na minha camisa: Baby, I love you”. A letra de Caetano reforça a ideia de Iê-iê-iê romântico e clama “você precisa ouvir aquela canção do Roberto”. E o álbum traz duas delas, com o indefectível parceiro Erasmo: “Se você pensa” e “Vou recomeçar”. A MPB se expandia, ainda que a contragosto dos caretas.

O álbum traz ainda outras canções de Gil, Torquato Neto, Caetano, Tom Zé e Jorge Ben. A polêmica “Lost in the Paradise”, com letra em inglês, era uma agressão ao purismo de muita gente. Mas, a composição mais forte do álbum, uma parceria de Gil e Caetano, era “Divino, maravilhoso” – uma alusão à luta armada que se desenvolvia nas sombras, com a imprensa censurada, noticiando apenas os releases paridos nos quartéis: “É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte”. No mesmo ano, a dupla de compositores gravou “Alfômega”, no terceiro disco de Caetano, uma letra hermética, onde Gil grita ao fundo o nome do guerrilheiro Marighella. A censura comeu mosca. Marighella, assassinado covardemente em novembro daquele ano, hoje é História.

 

Talvez para compensar os dois anos como coadjuvante, que ela, baixinho, dizia que foram anos de aprendizado, Gal lança ainda em 1969 o segundo disco solo, radicalizando as propostas do disco anterior. Na capa, apenas as três letras do primeiro nome sobre um quadro policrômico, com representações de animais míticos e o seu rosto, em meio perfil, em destaque, no lugar de uma possível assinatura. O quadro era uma leitura do artista plástico baiano Dicinho, creditado como Dircinho, do conjunto das músicas do disco – de “Cinema Olympia” a “Pulsars e Quasars”. Ouça o quadro (ou a capa) e veja o disco. Ou vice-versa. A música psicodélica invadia o Brasil.

Gil, Caetano, Jorge Ben, Roberto/Erasmo e a dupla Macalé/Capinam assinavam as nove faixas do disco. Lanny Gordin (ainda chamado Alexander) faz a diferença na guitarra, correspondendo plenamente aos arranjos sempre ousados do maestro Duprat.

Entre as canções, destacam-se “The empty boat”, de Caetano, só pela provocação; “Cultura e civilização”, de Gil, um rock pesado, onde Gal solta a voz com personalidade; “Com medo, com Pedro”, também de Gil, parece dialogar com “Divino, maravilhoso”: “quem pisar no fundo / encontra a porta / do fim de tudo”; “Objeto sim, objeto não”, do quase onipresente Gil, permite ao maestro Duprat exercitar seu lado “música concreta”, com a fragmentação da melodia em sons que se encontram mais adiante, guiados pela vibrante voz de Gal. “Pulsars e quasars”, de Macalé e Capinam, é outra ousadia do trio Gal-Gordin-Duprat, numa síntese: “os ruídos terão sentidos e teus sentidos perdidos”.

“Cinema Olympia”, de Caetano, numa levada de rock, “Tuareg”, de Jorge Ben, num exótico arranjo árabe, não comprometem. “País tropical”, entretanto, do mesmo Ben, com o auxílio luxuoso de Gil e Caetano na interpretação, não é inesquecível, tantas as regravações dessa música, que, para meu gosto, tem o agravante de destoar do momento histórico. Mas, você não precisa concordar comigo, querida leitora.

Só falei de oito músicas? Ah, tá, faltou “Meu nome é Gal”, que segundo todas as fontes históricas, disfóricas e folclóricas foi feita só por Erasmo, entrando Roberto como sócio e não parceiro. Mas, o que importa é que o iê-iê-iê é fofíssimo, começando como um anúncio de classificado – de uma moça chamada Gal, de 24 anos, amiga de Gil e Caetano e mais um monte de gente boa, procurando namorado – e termina com a assinatura da cantora, da maneira mais completa: com a voz, a melhor tradução de Gal.

Este segundo disco vendeu muito menos que o primeiro, o que não quer dizer absolutamente nada. Azar do público. Pensando na construção histórica da cantora Gal Costa, diria que é um disco fundamental na definição do perfil e do jeito de cantar daquela que viria a ser a referência maior da geração que surge na segunda metade da década de 1960 e, sem envelhecer, chega ao zênite da plenitude na década seguinte.

 

Em 1970, Legal é o terceiro solo. Com capa e contracapa de Hélio Oiticica, arranjos de base de Lanny e Macalé, e arranjos de orquestra de Chiquinho de Moraes, é um disco mais ameno que o anterior, mas nem por isso menos ousado. Abrindo com “Eu sou terrível”, da dupla Roberto/Erasmo, a guitarra de Lanny e a voz de Gal no último volume, parece uma continuação do disco anterior. A letra, que na voz de Roberto soa como autoafirmação machista, na voz de Gal, é um grito ameaçador, de resistência: “estou com a razão no que digo / não tenho medo nem do perigo”. Alguém lembrou de “não temos tempo de temer a morte”?

Um xaxado de Gil, “Língua do P”, desfaz a impressão de continuidade. Uma intro de não mais que dez segundos, com guitarra, baixo e bateria, dá lugar a uma base com sanfona, zabumba e triângulo – e muita ironia: “gapa-ranpan-topô quepê vopô-cepê nãopão vaipai compom-prepre-enpen-derper bulhufas!” A censura, para sorte nossa, não compreendeu nada mesmo.

No quesito letras em inglês, uma overdose: “Love, try and die”, de Macalé, Gal e Lanny, é uma boutade à Broadway, com a voz de Gal soando límpida como água de fonte, e um coro luxuoso, formado por Erasmo, Tim Maia, Macalé e uma misteriosa Nana. Ou seria Naná, o percursionista? “London, London” dispensa comentários. É a melancólica “canção do exílio” de Caetano, com uma levada caribenha. O uso da gaita de boca é extraordinário, mas o músico não foi creditado. Para fazer justiça, ainda que tardia: foi Angela Ro Ro, ela mesma, com sua própria gaita, segundo depoimento tardio de Macalé. A terceira letra mistura inglês e português, blues e samba-canção: “The archaic lonely star blues”, de Macalé e Duda. Pura experimentação.

Aliás, da mesma dupla, “Hotel das estrelas” começa como um blues sombrio e evolui para um rock progressivo, de letra cortante: “no fundo do peito esse fruto / apodrecendo a cada dentada”. “Acauã”, de Zé Dantas, um clássico do repertório de Luiz Gonzaga, vira uma balada que, após uma pausa de segundos, se transforma pela guitarra de Lanny e pela voz de Gal. “Minimistério”, de Gil, remete-nos de volta a “Divino, maravilhoso” ao ecoar as sinistras palavras de Kurtz, no Coração das trevas: “oh, terror, terror, terror...”

Um inusitado frevo de Caetano, “Deixa sangrar” é uma referência direta ao Let it Bleed, dos Stones, mas é também uma espécie de “carnaval do apocalipse”, uma referência direta à situação política do Brasil: “deixa o mar ferver / deixa o sol despencar / deixa o coração bater / se despedaçar / chora depois, mas agora / deixa sangrar / deixa o carnaval passar”. A ditadura fazia sangrar, mas a sangria stoniana – que não tem nada com a conformista “Let it Be”, dos Beatles, posterior –, é uma celebração hedonista, a cara de Keith Richards, o que nos leva a entender o “carnaval do apocalipse” como uma metáfora da ditadura.

“Falsa baiana”, clássico do mineiro Geraldo Pereira, fecha o disco, de maneira surpreendente: Gal reverencia a Bossa Nova, especialmente o conterrâneo João Gilberto, cantando num tom que não usava desde o pioneiro Domingo. Uma transformação se anunciava.

Os símbolos da resistência se espalham pelas dez faixas de Legal. Com Gil e Caetano no exílio, Gal vai encontrar-se com eles em Londres. Em agosto de 1970, assistem ao lendário Festival da Ilha de White. Gal encanta-se em particular com Jimi Hendrix, que morreria no mês seguinte. De volta para o Brasil, ela frequenta, em Ipanema, um lugar conhecido como Dunas do Barato – descrito por quem andava por lá como um oásis de liberdade em meio ao ambiente repressivo do país. Com o tempo, o local ganhou um segundo nome, em homenagem a sua mais notável frequentadora: Dunas da Gal.

 

Para falar do quarto disco solo, o emblemático Gal a todo vapor, também conhecido como FA-TAL, gravado ao vivo, é preciso dizer de uma das mudanças fundamentais na indústria da música de entretenimento nestes 50 anos. Hoje, ou pelo menos até a explosão do streaming e da pandemia, há uma sequência básica: disco, show do disco, disco do show. No início dos anos 1970, um disco ao vivo, com todas as suas imperfeições técnicas, era um acontecimento raro. Havia ainda o conceito de “ao vivo, no estúdio”, mas essa é uma outra história.

Gravado no Teatro Thereza Rachel, em Copacabana, em 1971, o disco é todo ele uma invenção coletiva, da qual participam, entre muitos outros: o veterano bossa-novista Roberto Menescal (direção de produção), Lanny Gordin (arranjos, direção musical e guitarra); Novelli (baixo); Jorginho (bateria); Baixinho (percussão); Luciano Figueiredo (cenografia e capa); Óscar Ramos (capa) e Wally Salomão (naquela época, ainda Sailormoon, na direção geral). Na contracapa, uma foto parcial de Gal tocando violão e as palavras “boca microfone mão violão”. Estas palavras combinavam com a capa, onde se lia, sobre a boca vermelhíssima de Gal, “FA-TAL”. Óscar me confidenciou que ele e Luciano não concordaram, de início, com a interferência de Wally, por achá-la óbvia, mas acabou virando um emblema do disco e a síntese da sensualidade que ele emana ainda hoje.

O disco lançado como álbum duplo, hoje é disponibilizado, em CD e no streaming, na ordem inversa – primeiro o disco dois, depois o um. E isso tem uma explicação. Na ordem que prevaleceu, o show começa intimista, com Gal cantando e se acompanhando ao violão e evolui, na nona faixa, “Vapor barato”, para um trabalho coletivo, sob o comando febril de Lanny. Na verdade, essa era a ordem das músicas no show. Das dezenove faixas, apenas três haviam sido gravadas antes por Gal: “Coração vagabundo”, “Hotel das estrelas” e “Falsa Baiana”. Entre as novidades, composições de Caetano e das duplas Macalé/Wally, Moraes/Galvão e Roberto/Erasmo. Gil é uma inexplicável ausência. Do repertório de Luiz Gonzaga, a lancinante “Assum Preto”, cantada como jamais será cantada novamente. Ainda no capítulo “velha guarda”/tradição, a clássica “Antonico”, de Ismael Silva. A lista fecha com duas faixas do folclore baiano: “Fruta gogóia” e “Bota a mão nas cadeira”. 

Ao contrário dos discos anteriores, onde uma Gal politizada desafia o establishment, a censura, a ditadura, este continua no mesmo tom, mas, sem falar em política, desafia os “bons costumes” – ou eu preciso explicar o que é “vapor”?

É difícil apontar destaques sem ser prolixo e redundante. Gal a todo vapor é, como se dizia na época, um desbunde. Uma experiência única e definitiva. Não é apenas o “ponto alto da contracultura no Brasil”, um chavão desgastado. É, sim, um dos momentos culminantes da música e, por extensão, da cultura brasileira.

 

Em 1974, assisti a um show de Gal Costa pela primeira vez, na quadra do Olímpico Clube, em Manaus. Não sei mais o que é memória ou o que é sonho, delírio, invenção. Era o show do quinto disco solo, Índia, lançado no ano anterior – portanto, dois anos após a catarse de Gal a todo vapor. Transpirando sensualidade, Gal cantou músicas do novo disco, e, para encanto da geral, várias de FA-TAL. Hoje percebo que Índia, se não era um caminho novo, era um novo jeito de caminhar, como diria o querido Thiago.

À guarânia clássica, de origem paraguaia, um tanto cafona para os meus mal-acostumados ouvidos, somava-se um dolorido samba-canção de Lupicínio, “Volta”. Ali nascia uma nova Gal.

Em não mais que três anos, a presença de Gal Costa eternizara-se na música brasileira – e nem precisava das dezenas de discos e centenas de interpretações antológicas dos cinquenta anos seguintes. Aqueles primeiros quatro discos bastavam.

    

              



[1] In: LIMA, Marisa Alvarez. Marginália: Arte & Cultura na “idade da pedrada”. 3. ed. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

A poesia é necessária?

 

Haicais sujos

Hiram Lopes

 

Lago em Nhamundá;

o jacaré vê a bunda branca.

Era a lua cheia!

 

O carapanã vai à vila;

ouvira falar em aplausos.

Morreu no ré menor.

 

O morcego sempre vai à vila.

Suga os primos mamíferos.

Ele morde e abana.

 

A cobra cega foi à cidade.

Na rua olhou à esquerda e à direita.

Avançou. Ploft! Merda!

 

A osga, citadina, faz cléc! cléc!

Ao fone, o menino faz tik! tok!

Converge o colóquio.

 

A efêmera nasceu no lago;

por sina, logo morre.

Que decisões tomou?

 

terça-feira, 17 de janeiro de 2023

A Kamélia já chegou

 Pedro Lucas Lindoso 


No sábado passado, a Kamélia, como todos os anos, com exceção dos anos da pandemia, chegou a Manaus. Como sempre, após desembarcar no aeroporto, recebe as chaves da cidade e iniciam-se as folias de Momo em nossa cidade.

Este ano não me foi possível comparecer a tão histórico e tradicional evento. Considerado patrimônio imaterial do Estado do Amazonas.

A Kamélia é uma boneca inspirada nas tradicionais baianas de Salvador. Segundo especialistas, sua origem é de antes da II Guerra. Um dos dirigentes do Olímpico Clube levou a boneca para o carnaval e o resto é história.

Os meninos amazonenses da década de 1960 só usavam calças compridas depois que ficavam grandinhos ou em ocasiões excepcionais. Eu era pequeno, ainda de calças curtas. Me veio à memória uma especial chegada da Kamélia para o Carnaval.

Os adultos me informaram que ela iria chegar. Que íamos ao Aeroporto de Ponta Pelada para o evento. Tremi de medo. Ora, há uma marchinha de Carnaval que diz: “Oh, jardineira, por que estás tão triste? / Mas o que foi que te aconteceu? / Foi a camélia que caiu do galho / Deu dois suspiros e depois morreu”.

A Kamélia caiu do galho e morreu. Então, ela é um fantasma! Apavorado, fui me aconselhar com Darinha. Ela viveu conosco por mais de trinta anos. Analfabeta funcional, mas uma sábia! Explicou-me que a camélia da música era outra. Na verdade, a camélia da música era uma flor. Por isso que a jardineira estava triste. A Kamélia que ia chegar era uma baiana. Virá da Bahia para alegrar o Carnaval aqui de Manaus. Está vivinha da silva.

Que alívio! Daí em diante passei a achar as chegadas da Kamélia um acontecimento importante. Até que mudamos para Brasília. Uma cidade em construção. Apesar de já estar inaugurada, ainda não recebia a Kamélia.

Depois de muitos anos retornei a Manaus. Continuava muito viva. Mas a Kamélia não chegava mais pelo Aeroporto de Ponta Pelada. Havia se tornado a Base Aérea de Manaus, um aeroporto militar. A Kamélia passou a chegar pelo Aeroporto Internacional Eduardo Gomes. Mas, infelizmente, não tem mais o glamour que tinha na década de 1960. Entretanto, após a chegada no aeroporto, tem sempre uma carreata até o Olímpico Clube, onde ocorre o baile de abertura do carnaval na cidade. Atenção, rainhas e momos. Sambistas e gente do frevo. Autoridades do Carnaval. Podemos todos já brincar o carnaval. A Kamélia já chegou!

 

domingo, 15 de janeiro de 2023

Manaus, amor e memória DCI

 

Thiago de Mello, em 20.01.1955, toma posse na Cadeira 29 da
Academia Amazonense de Letras.

O nome desta seção  Manaus, amor e memória  
toma emprestado o título de um dos livros de Thiago de Mello.

 

sábado, 14 de janeiro de 2023

Um ano sem Thiago de Mello

 

Thiago de Mello (30/03/1926 – 14/01/2022).
À margem do rio Andirá. Foto de Alberto César Araújo. 


sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Claudio Willer (2/12/1940 – 13/1/2023)


Claudio Willer: poeta, ensaísta, tradutor.  

 

quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

A poesia é necessária?

 

Lição de escuridão

Thiago de Mello (1926-2022)

 

 

Caboclo companheiro meu de várzea,

contigo cada dia um pouco aprendo

as ciências desta selva que nos une.

 

Contigo, que me ensinas o caminho dos ventos,

me levas a ler, nas lonjuras do céu,

os recados escritos pelas nuvens,

me avisas do perigo dos remansos

e quando devo desviar de viés a proa da canoa

para varar as ondas de perfil.

 

Sabes o nome e o segredo de todas as árvores,

a paragem calada que os peixes preferem

quando as águas começam a crescer.

Pelo canto, a cor do bico, o jeito de voar,

identificas todos os pássaros da selva.

Sozinho (eu mais Deus, tu me explicas).

atravessas a noite no centro da mata,

corajoso e paciente na tocaia da caça.

a traição dos felinos não te vence.

 

Contigo aprendo as leis da escuridão,

quando me apontas na distância da margem,

viajando na noite sem estrelas,

a boca (ainda não consigo ver) do Lago Grande

de onde me fui pequenino e te deixei.

 

De novo no chão da infância,

contigo aprendo também

que ainda não tens olhos para ver

as raízes de tua vida escura,

não sabes quais são os dentes que te devoram

nem os cipós que te amarram à servidão.

 

Nos teus olhos opacos

aprendo o que nos distingue.

Já repartes comigo a ciência e a paciência.

Quero contigo repartir a esperança,

estrela vigilante em minha fronte

e em teu olhar apenas um tição

encharcado de engano e cativeiro.

 

Barreirinha, 1981.



terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Linguagem rebuscada

 Pedro Lucas Lindoso

 

Muitos me perguntam como vem a inspiração para escrever. Cabe ao cronista observar o mundo, as pessoas, os acontecimentos. O bom também é observar os fatos e comentá-los. Começamos o ano com muitas cerimônias de posse. Antes, tivemos a Copa do Mundo. Nesses eventos canta-se o hino nacional. É de hinos que vamos falar.

No Reino Unido, durante o reinado de Elizabeth II, o hino saudava uma rainha. God save the Queen. Deus salve a Rainha. Com sua morte, ascendeu ao trono Charles III. O hino dos ingleses mudou para God save the King. Deus salve o Rei.

Quando toca o hino britânico o soberano fica calado. Parece-me bem lógico. Tendo em vista que a letra do poema é em sua homenagem. E pede a proteção de Deus ao seu reinado.

Como a Inglaterra faz parte do Reino Unido, não há um hino específico para os ingleses. Em eventos esportivos, às vezes toca-se Jerusalem e Land of Hope and Glory. Mas tem prevalecido o hino God save the King, principalmente quando o monarca está presente.

Nós também temos outros hinos além do Hino Nacional. Temos o Hino da Independência e o Hino à Bandeira. Este último é meu favorito. Infelizmente, o Hino Nacional é mal cantado e muito pouco compreendido pela maioria dos brasileiros.

Muitos não sabem que lábaro significa bandeira. O que seria um brado? E uma terra mais garrida?  O que seria fúlgido, clava, penhor, retumbante? Qual o sujeito em “Ouviram do Ipiranga as margens plácidas, de um povo heroico o brado retumbante?”

A letra do nosso hino tem uma história polêmica. No início, os republicanos cantavam a Marselhesa.  Era preciso um hino para o novo regime. Houve várias versões e muitos debates. Como o conhecemos, nosso hino foi oficializado há cem anos, para a comemoração do centenário da Independência, em 1922. 

A explicação mais plausível para a letra do Hino Nacional é o Parnasianismo. Movimento literário no final do século XIX, em oposição ao realismo e ao naturalismo. Os autores parnasianos criticavam a simplicidade da linguagem. A proposta parnasiana era de uma poesia de linguagem rebuscada, racional e perfeita.

Não seria o caso de revogar o Hino Nacional. Apenas poderíamos adotar o Hino à Bandeira para cantar nos eventos e solenidades oficiais. A bandeira é de todos os brasileiros. Está acima de ideologias, religião ou etnia. Precisamos unir os brasileiros em torno de nossa bandeira. Penso que a linguagem rebuscada do hino não atende ao povo brasileiro.

 

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

A última vez que vi Joaquim


Zemaria Pinto

  

Trocando mensagens com o amigo poeta Donaldo Mello, Joaquim meteu-se na conversa, trazido pelo obituário da Folha de São Paulo. Donaldo, amazonense morador de Brasília, não o conheceu.

Comecei a contar sobre a Banca do Largo, o Tacacá na Bossa e constatei que não lembrava mais quando o conheci.   

Mas, a última vez que o vi, dia 16 de dezembro, foi antológica.

Uns dois dias antes, ele me telefona e me convida a passar na banca, que ele tinha uma novidade para mim. Nem adiantava insistir, porque eu só saberia da novidade indo à banca, que só abria às 16h. Na sexta-feira fui lá. Ele me entregou um pacotinho, com Um rio sem fim, da Verenilde Pereira, que eu encomendara há meses. Só que era xerocopiado.

– Pô, Joaquim, e o original?

– Ah, meu amigo, o original, autografado, é meu...

Mas, a historinha antológica não termina aí. Conversando com uma freguesa francesa, eu já estava de saída, quando aparece... a Verenilde. A bela francesa nos fotografou. E do Joaquim ficou a última lembrança...

 

Zemaria Pinto, Verenilde Pereira, Joaquim Melo.

É importante registrar o papel da Banca do Largo na vida literária de Manaus. Os frequentes lançamentos eram feitos ao ar livre. No último dia 9 de dezembro, tivemos a Eliane Brum lotando o espaço em frente à banca.  Além de La Brum, faziam parte da paisagem habitual da banca Ailton Krenak, Milton Hatoum, professores universitários, autores renomados e ilustres desconhecidos, acadêmicos, marginais, quadrinheiros etc.

E o Joaquim, sempre sorrindo, tinha uma palavra de agradecimento a cada um.

Nós é que te agradecemos, companheiro velho...


Nota: Joaquim Melo, economista, historiador, livreiro, agitador cultural, sofreu um enfarto no dia 20 de dezembro, vindo a falecer na madrugada do dia 1º de janeiro, aos 64 anos.


domingo, 8 de janeiro de 2023

quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

A poesia é necessária?

 

Balada das três mulheres do sabonete Araxá 

 

Manuel Bandeira (1886-1868)

 


As três mulheres do sabonete Araxá me invocam, me

[bouleversam, me hipnotizam.

Oh, as três mulheres do sabonete Araxá às 4 horas da tarde!

O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá!

 

Que outros, não eu, a pedra cortem

Para brutais vos adorarem,

Ó brancaranas azedas,

Mulatas cor da lua vem saindo cor de prata

Ou celestes africanas:

Que eu vivo, padeço e morro só pelas três mulheres do

 [sabonete Araxá!

São amigas, são irmãs, são amantes as três mulheres do

 [sabonete Araxá?

São prostitutas, são declamadoras, são acrobatas?

São as três Marias?

 

Meu Deus, serão as três Marias?

 

A mais nua é doirada borboleta.

Se a segunda casasse, eu ficava safado da vida, dava pra beber e

[nunca mais telefonava.

Mas se a terceira morresse... Oh, então nunca mais a minha vida

[outrora teria sido um festim!

Se me perguntassem: Queres ser estrela? queres ser rei? queres

 [uma ilha no Pacífico? um bangalô em Copacabana?

Eu responderia: Não quero nada disso, tetrarca. Eu só quero as

 [três mulheres do sabonete Araxá:

O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá!


 

terça-feira, 3 de janeiro de 2023

Horário de Brasília

Pedro Lucas Lindoso

 

Quando minha filha Marina, que é brasiliense, mudou-se para Manaus, ao constatar que aqui o fuso era uma hora a menos, comentou:

– Agora entendo perfeitamente as chamadas do Jornal Nacional. Informam que será apresentado as oito e meia, horário de Brasília. Em Manaus, assistimos às sete e meia.

Isso porque foi abolido o horário de verão. Nesses meses a diferença era de duas horas.

Trabalhei numa empresa carioca. No verão, quando nosso expediente começava aqui em Manaus, as oito da manhã, já eram dez horas no Rio. Era preciso estar atento, se desejássemos falar com alguém por lá. Dez horas já era meio-dia e as pessoas iam almoçar. Quando se retornava, pela tarde, por volta das duas horas, já eram quatro na sede. Praticamente, final de expediente.

Nunca foi tão fácil contestar os terraplanistas. Durante a Copa do Mundo, no Catar, os comentaristas nos davam boa tarde quando já era noite em Doha. Brasília está seis horas a menos e Manaus, sete.

Há alguns anos, quando havia horário de verão, fui acordado às seis horas da manhã por um call center. A moça insistia que eram oito da manhã em São Paulo. Não entendia que aqui era praticamente madrugada.  Primário malfeito.

O mundo realmente ficou pequeno. As pessoas se locomovem ao redor do planeta com muita facilidade. As notícias e os eventos são transmitidos pelas televisões abertas e pelas mídias sociais em tempo real. Mas em horários e fusos diversos.

Tenho uma sobrinha que mora na Costa Oeste dos Estados Unidos. A diferença de horário é de quatro horas. Para menos. Os Estados Unidos têm quatro fusos. Se contarmos Anchorage e Honolulu, no Havaí, são seis. Aqui no Brasil temos quatro. Mas a maioria dos estados segue a hora de Brasília. As regiões sul, sudeste e nordeste tem o mesmo fuso. Acre e Fernando de Noronha ficam em fusos diversos e opostos.

Quem estiver passando os feriados na paradisíaca ilha de Fernando de Noronha vai receber 2023 duas horas mais cedo do que os Manauaras.

Temos primos que moram na longínqua Nova Zelândia. O país parece ficar no cantinho do mundo. A diferença de fusos é de dezesseis horas. Quando o ano novo chegar por aqui os neozelandeses já terão almoçado no primeiro dia do ano. Ainda bem que nossa referência é o horário de Brasília!