Amigos do Fingidor

sábado, 31 de outubro de 2009

Nem ralouin nem Saci: hoje é o dia do Curupira!


Zemaria Pinto

O Curupira, de Manoel Santiago (1897-1987).

O Palavra do Fingidor lança uma campanha nacional contra a bestificação e a macaquice: ralouin, puma nenhorra, bom mesmo é o Curupira! No verso do quadro acima, do amazonense (eu tenho orgulho...) Manoel Santiago, tem o seguinte texto:


“O Curupira é um dos seres phantásticos que povoam as densas florestas do Amazonas. É uma figura estranha, cheia de astúcias. Tem os pés virados para traz afim de melhor enganar os viandantes. As índias adolescentes, ao doce embalar das redes de tucum, adormecem sonhando com o Curupira. Se alguma d'ellas commeter uma falta e não a puder justificar, logo será acusado o Curupira pelo crime de sedução. Rio de Janeiro – Brasil 1926.”

Meu caro Mouzar Benedito encabeça uma campanha nacional, já há alguns anos, para acabar com a palhaçada do ralouin e instituir o dia nacional do Saci. Mas não está emplacando; deve ser aquele cachimbo politicamente incorreto; ou aquela carapuça ridícula, sei lá. Mas eu tenho o argumento definitivo: o moleque Saci não é nativo. Mestre Cascudo ensina que o romano Petrônio já o cita – entre uma sacanagem e outra do Satyricon. O Curupira, ao contrário, é brasileiríssimo: segundo ainda o inefável mestre, foi o padre Anchieta o primeiro a registrar a presença do nosso herói, em 1560:
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“É coisa sabida e pela boca de todos corre que há certos demônios a que os brasis chamam corupira, que acometem aos índios muitas vezes no mato, dão-lhes açoites, machucam-nos e matam-nos. São testemunhas disto os nossos irmãos, que viram algumas vezes os mortos por eles. Por isso, costumam os índios deixar em certo caminho, que por ásperas brenhas vai ter ao interior da terra, no cume da mais alta montanha, quando por cá passam, penas de aves, abanadores, flechas e outras coisas semelhantes, como uma espécie de oblação, rogando fervorosamente aos corupiras que não lhes façam mal. ”
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Para Ermano Stradelli, o nome Curupira é formado pela contração de “curumi” e “pira”, ou seja “corpo de menino”.
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Então, ficamos assim: na próxima vez que alguém lhe falar de ralouin, lembre ao imbecil que isso é coisa de visagem e que você curte mesmo é o Curupira.
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31 de outubro, dia nacional do Curupira.

Fantasy Art – Galeria

Maya.
Chris Achilleos.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

fábula


muitas luas se passaram, desde que o gavião da montanha desapareceu da planície.

mas, ao ouvir o uivo de chacais, anunciando o sacrifício de mais uma ovelha, ele decidiu seguir o destino que lhe fora revelado em sonho.

pintou o rosto com tinta de tucum, pôs o penacho na cabeça, e subiu a montanha, soprando a flauta de bambu.

(Adrino Aragão)

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Manaus sob duas óticas: La Belle Vitrine e Manaus e Liverpool

A EDUA (Editora da Universidade Federal do Amazonas), a FAPEAM (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas, co-financiadora de uma das obras), e o Museu Amazônico, convidam para o lançamento dos livros La Belle Vitrine, de Otoni Mesquita e Manaus e Liverpool, de David Pennington.

Onde: Museu Amazônico, rua Ramos Ferreira, Centro
Quando: 30 de outubro de 2009 (sexta-feira)
Horas: 19 horas


La Belle Vitrine. O mito de Manaus nunca foi explorado como no estudo deste livro de história da cidade. O Teatro Amazonas é apenas um dos marcos desse contexto, ao qual se juntaram novas ruas, novas praças e jardins, o projeto do Palácio dos Governadores, o Palácio da Justiça, o Instituto Benjamin Constant, bem como investimentos no porto de Manaus e nos serviços públicos de iluminação, de abastecimento de água, de comunicação, de transporte. Esse conjunto de intervenções urbanas e arquitetônicas constituíram La Belle Vitrine, a cidade da imagem embelezada.
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Manaus e Liverpool. O livro aborda as relações comerciais e marítimas entre as duas cidades, Manaus e Liverpool, durante o ciclo da borracha. Foram pouco mais de meio século de relações comerciais, em que Manaus se tornou a capital mundial da borracha, com linhas marítimas que a ligavam aos maiores portos europeus. Faz uma prospecção minuciosa dessas relações comerciais, lançando luz sobre um terreno ainda cheio de hipóteses, suposições e fantasias, mostran que os interesses ingleses em Manaus eram amplos e diversificados, mas se evaporaram rapidamente, tão logo o monopólio do látex se esvaiu.
Medicina nas primeiras cidades: Mesopotâmia
João Bosco Botelho

Deus bom, Ningishzida, representado em forma de cobra.

Com a consolidação do sedentarismo, nas margens dos rios piscosos, em torno de 5.000 anos, no Norte da África — Egito e Mesopotâmia — e algumas áreas da Ásia — Índia —, importantes modificações foram se processando nos antigos grupos nômades de caçadores-coletores. Entre as mais significativas, que mudariam para sempre as relações sociais humanas anteriores, se destacaram: a construção das elites dominantes laicas e religiosas, as práticas agrícolas, os ajustes e defesa da territorialidade e os panteões.

Como fruto dessas mudanças, as sociedades francamente hierarquizadas acolheram regras destinadas às propriedades privadas, moldando os assentamentos mais duradouros.

Os aldeamentos foram substituídos pelas primeiras cidades e, no milênio seguinte, as civilizações regionais se consolidaram e assimilaram diferentes formas de poderes, predominando o teocrático e o mercantil-escravista. As guerras contínuas pela posse do território ofereciam escravos e terras, fortalecendo a escravidão e a propriedade privada.

Muitas mudanças provocadas pelo sedentarismo contribuíram para fortalecer a figura social do médico. De modo geral, os registros disponíveis, no Egito (Novo Império, XVIII a XX dinastias, 1.540 a 1.069 a.C.), Mesopotâmia (Babilônia, no período de Hammurabi, 1792-1750 a.C.) e Índia (Mohenjo-Daro, 2.500 a.C.), indicam que, apesar de poucos, os médicos já eram personagens sociais reconhecidos e com nominação própria, instruídos na arte de curar por meio de remédios e cirurgias.

Os médicos dessas cidades, sem um processo teórico que explicassem a saúde e a doença, apesar de terem iniciado a Medicina como uma especialidade social, ficavam atados às crenças e idéias religiosas, onde a vontade dos deuses e deusas era mais poderosa de que os remédios e as cirurgias.

Por outro lado, mesmo com a comprovação histórica da estreita ligação dos médicos ao panteão — Medicina divina — em ensaios de acertos e erros, compondo o conhecimento historicamente acumulado, houve a busca de novos saberes da natureza circundante para curar as doenças — Medicina empírica. É possível que a proximidade entre essas duas práticas médicas, em especial as praticadas nos templos pelos representantes dos deuses e deusas, os sacerdotes e as sacerdotisas, tenha promovido a semente que levaria a construção da Medicina oficial, amparada pelo poder dominante.

De certo modo, mutatis mutandis, nos quatro cantos do planeta, continuamos comprovando a existência dessas três Medicinas.

Deus mau em forma de inseto díptero.
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Mesopotâmia

A atividade médica deveria ser intensa e diferenciada nos vários extratos sociais, no reinado de Hammurabi (1728-1688 a.C.), suficientes para gerar atritos freqüentes, perturbando a ordem social.

Como não se constroem leis proibindo ou punindo o que não se faz, a administração do rei Hamurabi dedicou vários parágrafos do famoso código de leis para disciplinar o exercício da Medicina:
§ 216 Se foi o filho de um muskenum, ele receberá 5 siclos de prata.
§ 217 Se foi o escravo de um awilum, o dono do escravo dará ao médico dois siclos de prata.
§ 218 Se um médico fez em um awilum uma operação difícil com um escalpelo de bronze e causou a morte do awilum ou abriu a nakkaptum de um awilum e destruiu o olho do awilum, eles cortarão a sua mão.
§ 219 Se um médico fez uma operação difícil com um escalpelo de bronze no escravo de um muskenum e causou-lhe a morte, ele deverá restituir um escravo como o escravo morto.
§ 220 Se ele abriu a sua nakkaptum com um escalpelo de bronze e destruiu o seu olho, ele pesará a metade de seu preço.
§ 221 Se um médico restabeleceu o osso quebrado de um awilum ou curou um músculo doente, o paciente dará ao médico 5 siclos de prata.
§ 222 Se foi um muskenum, dará 3 siclos de prata.
§ 223 Se foi o escravo de um awilum, o dono do escravo dará 2 siclos de prata.

Dessa forma, o código de Hammurabi iniciou o processo histórico para estabelecer normas nos dois pontos cruciais da ordem médica: as sanções que devem receber os médicos pela imprudência, imperícia e negligência e os honorários diferenciados pelo tratamento entre pessoas de diversos grupos sociais.

Como no Egito, os tratamentos eram cercados da presença dos deuses e deusas e a doença compreendida:
- Como castigo divino;
- Ofensa específica a um determinado deus;
- Intervenção direta dos deuses maus;
- Abandono do deus protetor;
- Influência do deus mau.

O panteão era povoado por muitos deuses e deusas taumaturgos:
- Gula, mulher de Ninurta;
- Ningischzida, filho de Ninurta, representado pelas duas cobras enroladas no bastão; trata-se da primeira associação entre a cobra e a Medicina;
- Sachan, a deusa-serpente;
- Ishtar, a deusa da fecundação e libido no homem e na mulher;
- Pazuzu, o deus mau em forma de um inseto díptero.

As tábuas de escrita cuneiforme encontradas nas bibliotecas de Assurpanibal, em Nínive, e Hammurabi, em Mari, descreveram os quadros de várias doenças de modo extraordinariamente coerente e preciso: malária, tuberculose pulmonar, distúrbios mentais, alguns tumores benignos e malignos, otite, gastrite, hepatite e asma brônquica, entre muitos outros.

De modo geral, as práticas médicas, nas primeiras cidades, moldaram grande parte da compreensão da profissão, que perdura na atualidade:
- Reconhecimento social do médico;
- Trabalho remunerado;
- Fiscalização da má prática;

Talvez seja interessante refletir sobre dois aspectos significativos da relação da Medicina mesopotâmica com os deuses e deusas.

1. A significância do simbolismo da cobra ligada à cura das doenças: o caminho escolhido pelo imaginário humano na busca da pretendida imortalidade com a participação da cobra está perfeitamente claro em dois fantásticos registros. O primeiro, no Rig Veda, onde os Adityas descri­tos como descendentes da cobra, porque ao perderem a pele velha, vence­ram a morte e adquiriram a imortalidade. O segundo, na Epopéia de Gilgamesh, on­de o herói, depois de inúmeras ações sobre-humanas para obter a planta da vida eterna, cansado, após acordar na beira do rio, presencia o remédio que garantiria a vida eterna ser comido pelo réptil, seguindo-se da imediata mudança da pele, momento em que o herói mítico babilônico se dá conta da morte inevitável.

2. O deus mau Pazuzu em forma de inseto díptero: como os primeiros assentamentos, na Mesopotâmia, foram consolidados em área de várzea, pressupõe-se a existência da maior quantidade de insetos que transmitem a malária. Apesar de nada conhecerem da etiologia dessa doença, é possível que tenham associado o inseto com as febres descritas.

Desse modo, mesmo com a forte dependência das idéias e crenças religiosas para formar juízos de valores das doenças, tanto no Egito quanto na Mesopotâmia, havia a intencionalidade de compreender a doença fora do panteão.
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Diorito preto contendo o código de Hammurabi.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Fantasy Art – Galeria

Battle of the Mermaids.
Julie Bell.
drops de pimenta 34


─ Esses teus amigos são uns cascas!
─ ...
─ Sabe o que o Alfredão falou da Alice, a mu-lher-de-le?!
─ ...
─ Que ela está com o prazo de validade vencido!

(Zemaria Pinto)
Os sertões – uma tragédia brasileira (3/8)
Zemaria Pinto








terça-feira, 27 de outubro de 2009

Entre as sombras, novo livro de João Bosco Botelho


Com a capacitação de sua competência intelectual, traçada em uma formatação de imagens que buscam no passado as bases sobre as quais explicita um poder descritivo que imanta o interesse do leitor, João Bosco Botelho promove através de brilhantes flashes históricos da Manaus ainda mergulhada no auge da riqueza produzida pela economia da borracha, uma descrição do que foi a urbes manauara no desenrolar dos seus instantes de projeção até no exterior, inclusive pela presença de estrangeiros aqui vindos apenas para enriquecer, promovendo ações maléficas, como a do inglês que furtou as sementes da preciosa seringueira, levando-as ao seu país.

João Bosco Botelho traça um painel – confirmado pela história – da existência de uma cidade que viveu dias de esplendor e de decadência e estagnação. É nesse ambiente que o autor fez inserir, de forma aventuresca, porém não menos verdadeira, o existir de pessoas que vivenciaram grande parte de suas existências, trocando experiências e registrando, algumas ainda pelos recursos da memória dos que restam, momentos expressivos da vida cotidiana. O livro apresenta uma família de classe média tradicional da cidade, com um patriarca conservador e integrantes que de certa forma sempre dão um jeito de administrar os conflitos internos.

Entre as sombras, o primeiro romance de João Bosco Botelho, apresenta, na sensibilidade e emoção, a existência de personagens que povoam suas páginas, potencializando, para conhecimento de quem mergulhar em sua leitura, horas de apreensão, mas que foram também de coragem no enfrentar das circunstâncias. É, portanto, um livro destinado a quantos se interessam pelo que Manaus teve de autêntico, num momento crucial da existência do País.

O Autor

Dono de vasta cultura humanística, o professor Dr. João Bosco Botelho é reconhecidamente um dos principais mestres da Universidade Federal do Amazonas, onde atua como orientador do doutorado de biotecnologia. Também é professor do Curso de Medicina da Universidade do Estado do Amazonas e da Universidade Nilton Lins. Membro da Academia Amazonense de Medicina, conquistou seus títulos superiores com sua produtividade médica e científica principalmente como professor convidado da Universidade de Paris 7, na França, uma das mais antigas do mundo. Autor de História da Medicina, para o autor a medicina é um sacerdócio, renúncia, serenidade, bondade, tolerância, compreensão, respeito à vida humana físico e espiritual, competência e ética.

Sua obra literária é erudita e completa. Tem publicadas as obras: Arqueologia do Prazer (1990); Os limites da cura (1998); O Deus genético (2000); História da Medicina: da abstração à materialidade (2004); Medicina e religião (2005); e Epidemias – a humanidade contra o medo da morte (2008).

Evento: Lançamento de livro
Título: Entre as sombras
Autor: João Bosco Botelho
Páginas: 156
Valor do livro: R$ 25,00
Data: 28 de outubro de 2009 (quarta-feira)
Horário: 19h30min
Local: Centro Cultural Palácio da Justiça - Av. Eduardo Ribeiro, 833 – Centro.
Contatos: 3635-1324 (Editora Valer)
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segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Poetatuzinho chapa branca
Zemaria Pinto

Os três números anteriores do Poetatu foram marcados pela desordem. Em todos os sentidos. O que, aliás, conferia um certo charme à coisa. Esculhambação charmosa. Treze anos passados, era de se esperar alguma mudança. Mudou, sim. Pra pior. Por exemplo: o gênio que fez a diagramação, que certamente não sabe a diferença entre poema e poesia, identou todos os poemas de forma padrão, centralizando o texto. Mas, comigo, ele (ou será ela?) fez pior: pegou quatro poemas e deles fez um só. O poema do caboco doido.

E esqueçam tudo aquilo que eu escrevi aqui, dia destes, sobre independência etc.: o poetatuzinho 4 teve o patrocínio da SEC, com direito à bandeirinha e manifestações de apreço ao senhor secretário.

Eu, hein! Que coisa!
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domingo, 25 de outubro de 2009

O fogo da labareda da serpente

Neuza Machado*
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Foto raríssima da época da borracha, vendo-se no meio o capitalista Maurice Samuel, avô de Rogel Samuel.

Ainda, repensando a questão pelo prisma foucaultiano, “a problemática da população” e “a arte de governar”, naquelas paragens amazonenses próximas às fronteiras da Bolívia e Peru, nos séculos XVIII e XIX, não se originaram do governo familiar de modelo colonial português, ao contrário, o modelo familiar amazonense, principalmente o da capital do Estado, até os dias de hoje, reflete o modelo familiar francês e uma certa influência alemã, herdada naturalmente do convívio da população citadina e ribeirinha com os padres alemães e prussianos, das congregações católicas que por ali se aclimataram. Influências marcantes, também, poderão ser diagnosticadas, levando-se em consideração as grandes expedições de estudiosos franceses e germânicos da fauna e flora da região amazonense e adjacências, e do domínio centralizador e familiar de muitos desses estrangeiros que se colocavam como donos (e se colocam ainda) de extensões e extensões da Grande Floresta, desmatando-a implacavelmente, além de subjugar a população nativa e os retirantes nordestinos, que para ali se deslocaram, nas épocas das grandes secas, em busca de melhores meios de vida. O próprio romance rogeliano oferece-me pistas reveladoras.

No decorrer do século XX, o capitalismo primitivo, originário da Revolução Industrial do século XVIII, conhecido por “capitalismo selvagem” (dezesseis horas de trabalho por dia, ou mais), foi se modificando gradativamente, e, já nos anos finais do referido século passado, conheceu uma nova forma de ser entendido em termos mundiais. Antes, no Brasil especialmente, era a escravidão explícita ou camuflada do trabalhador assalariado: horas de trabalho além do normal e dívida permanente para com o empregador, uma vez que o “patrão” era também o dono dos postos de venda de mercadorias necessárias à sobrevivência de seus empregados (carne-seca, farinha de mandioca, açúcar, sal etc.).
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Publicado originalmente no blog de Rogel Samuel.
Voo Noturno
Inácio Oliveira


Quando João acordou a manhã já estava avançada. Ele havia sonhado, porém não se lembrava com o quê sonhara, tinha apenas um gosto estranho na boca, que ele não soube como definir; era preciso que se inventasse uma nova palavra para que João pudesse definir aquele estranho gosto que sentia na boca; por conta disso, João perdeu o apetite e não ingeriu nada o resto do dia. Ele tinha uma sede que não era de água nem de qualquer outro líquido conhecido.

Começava a chover, mas tão suave que nem se percebia; as cortinas estavam fechadas, ainda não amanhecera ali (talvez não amanhecesse nunca mais). João sentou-se pesado no sofá da sala, como se tivesse engordado ou envelhecido muito durante a noite; ele não ousava ligar a televisão.

João estava inquieto. João era um homem urgente, porque ele sabia que o tempo era curto e tudo estava se perdendo, ele tinha a aflição do tempo que passa sem remédio. No círculo de coisas em que sua vida estava envolta, ele compreendia cada vez menos aquele sentido íntimo que tem uma flor quando morre: o ter sido apenas uma flor.

Mesmo sabendo o tempo ser curto, João permanecia sentado no sofá da sala na contemplação da ordenação natural do dia; tudo o aborrecia, ele simplesmente já não compreendia a estupidez de seus modos.

João estava exausto de tudo o que não acontece e aos poucos ele começava a ignorar aquela verdade tão urgente e necessária de que um homem é o mundo inteiro, por isso ele é todo um esforço de se encontrar; havia uma ausência de sentido e desejo em tudo. João havia deixado de desejar e um homem quando não deseja mais nada ele deseja o mal, esse era o princípio de um caminho sem volta.

Como um náufrago em alto-mar, que procura desesperadamente algo sólido que o mantenha à superfície, João também procurava desesperadamente algo “sólido” que o mantivesse à vida. Num golpe de sorte ele conseguiu lembrar-se da última mulher que amara, exatamente naquele preciso momento depois do amor, ela tinha no rosto um sorriso que ia acontecer mas não acontecia, havia adquirido aquela expressão grave que as pessoas têm quando não pensam em nada e João sabia que não pensar em nada era uma das formas mais profundas de pensar, por que ele também agora era um homem profundo que não pensava em nada.

Com aquela mulher ele havia sido como o homem que morou a vida inteira num lugar muito bonito mas nunca se dera por isso até que viesse alguém de fora (e esse alguém de fora era ela) para lhe mostrar como tudo aquilo era muito bonito, como tudo era incrível, mas ela havia partido e ele esquecera como tudo aquilo era muito bonito, como tudo era incrível.

No transcorrer do dia, João foi perdendo a urgência que tinha: ele tinha agora a calma que o mar tem antes que a tempestade comece e aos pouco ele começava a entrar naquela região perigosa em que não havia passado nem futuro; João era como uma coisa que estivesse fora do tempo.

A tarde era azul, em tons escuros; talvez ainda chovesse. João saiu pela primeira vez do apartamento naquele dia, caminhou pela alameda como alguém que não vai a lugar nenhum, mas porque é natural e necessário que um homem ande, ele anda, involuntariamente, sem saber aonde vai.

João não compreendia porque o mundo estava assim, daquele jeito, quem fizera as coisas daquele modo? João viu a tarde se encolher de frio no olhar de um mendigo que se agasalhava num canto da praça; tudo o agredia profundamente; ele tentou, com muita força, pensar mais uma vez no rosto e no corpo da mulher que amara, porém a sua imagem se dissipava entre a tarde e a noite que se confundiam envolvendo a cidade numa névoa imprecisa, que fez com que João por um momento errasse o caminho de volta para casa.

A chuva que era fina e leve mudava de tom caindo severa e indiferente, lavando a cidade que estivera por demais suja; como alguém que estivesse em perigo e assim fugisse, João voltou para o apartamento vazio que estivera esperando que ele voltasse; tudo ali se esforçava para ser aconchegante, no entanto João já não se reconhecia em meio aos móveis e à decoração estúpida como em casa alheia.

João se recostou à janela e naquela noite ele pensou na morte como se pensa num amigo querido, como muita ternura e cuidado e sem qualquer curiosidade ou medo, apenas como alguém que está muito cansado de um longo dia de trabalho e se agasalha num canto para dormir: ele se atirou do quinto andar. Morreu assim na sarjeta numa noite de chuva, tão grotesco e ridículo como um peixe que morre afogado.

sábado, 24 de outubro de 2009

Fantasy Art – Galeria

Sky Painting.
Michael Parkes.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

homem-caminhão


desde menino se dizia ser um caminhão, confessava sentir o motor roncando dentro do peito, e no tumultuado trânsito imitava, com a boca, a buzina do imaginado transporte de carga. acabou morrendo debaixo de um caminhão, quando entrava na contramão da estrada da vida.

(Adrino Aragão)

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

POETATU, release 4, uma porrada na mesmice


Após 13 anos, o GENS DA SELVA reedita sua Antologia Poética POETATU, release 4. O livro reúne poemas inéditos de 17 poetas, que vão desde nomes consagrados de imortais da Academia Amazonense de Letras ( Anísio Mello, Tenório Telles e Zemaria Pinto), aos novíssimos Felipe Wanderley, Castro e Costa e Henrique Mesquita, passando pela prata da casa, como Simão Pessoa, Almir Graça, Celestino Neto, Jersey Nazareno, Marcileudo Barros, Carlos Araújo e Marco Gomes, além dos músicos/poetas Célio Cruz, Cleber Cruz e Eliberto Barroncas. Vocês devem ter notado que não tem mulher na parada... Que coisa!

O lançamento será nesta sexta feira, às 19 horas, na Arena do Palacete Provincial (antigo quartel da polícia). O evento contará com um show de Cileno e da mega transformer Guadalupe de Montserrat.

E como disse o Zemaria Pinto, ao jornalista Evaldo Ferreira:

“O POETATU é, antes de mais nada, um gesto de rebeldia. Uma manifestação de independência, buscando mostrar aos que se acham donos da cultura amazonense que, quando um quer, todos partem pra porrada.

Mas é também um brinquedo, o lance lúdico da poesia, que não abole o ocaso... (atenção, revisão: é ocaso, mesmo)
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O POETATU, por fim, é a retomada de um tempo em que não tínhamos certeza de nada – exatamente como agora, ou melhor, como sempre.
Despimo-nos das máscaras cotidianas e encaramos a fantasia de ser poetas: desfilar nus, para desespero do rei...”

Mais não disse nem lhe foi perguntado.
Medicina nas primeiras cidades do Egito
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João Bosco Botelho
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Horus, um dos importantes deuses curadores.

Com a consolidação do sedentarismo, nas margens dos rios permanentes e piscosos, em torno de 5.000 anos a.C., no Norte da África — Egito e Mesopotâmia — e algumas áreas da Ásia — Índia —, importantes modificações foram se processando nos antigos grupos nômades de caçadores-coletores. Entre as mais significativas, que mudariam para sempre as relações sociais humanas anteriores, se destacaram: a construção das elites dominantes laicas e religiosas, as práticas agrícolas, os ajustes e defesa da territorialidade e os panteões.

Como fruto dessas mudanças, as sociedades francamente hierarquizadas acolheram regras destinadas às propriedades privadas, moldando os assentamentos mais duradouros.

Os aldeamentos foram substituídos pelas primeiras cidades e, no milênio seguinte, as civilizações regionais se consolidaram e assimilaram diferentes formas de poderes, predominando o teocrático e o mercantil-escravista. As guerras contínuas pela posse do território ofereciam escravos e terras, fortalecendo a escravidão e a propriedade privada.

Muitas mudanças provocadas pelo sedentarismo contribuíram para fortalecer a figura social do médico. De modo geral, os registros disponíveis, no Egito (Novo Império, XVIII a XX dinastias, 1.540 a 1.069 a.C.), Mesopotâmia (Babilônia, no período de Hammurabi, 1792-1750 a.C.) e Índia (Mohenjo-Daro, 2.500 a.C.), indicam que apesar de poucos, os médicos já eram personagens sociais reconhecidos e com nominação própria, instruídos na arte de curar por meio de remédios e cirurgias.

Os médicos dessas cidades, sem um processo teórico que explicassem a saúde e a doença, apesar de terem iniciado a Medicina como uma especialidade social, ficavam atados às crenças e ideias religiosas, onde a vontade dos deuses e deusas era mais poderosa do que os remédios e as cirurgias.

Por outro lado, mesmo com a comprovação histórica da estreita ligação dos médicos ao panteão — Medicina divina — em ensaios de acertos e erros, compondo o conhecimento historicamente acumulado, houve a busca de novos saberes da natureza circundante para curar as doenças — Medicina empírica. É possível que a proximidade entre essas duas práticas médicas, em especial as praticadas nos templos pelos representantes dos deuses e deusas, os sacerdotes e as sacerdotisas, tenha promovido a semente que levaria à construção da Medicina oficial, amparada pelo poder dominante.

De certo modo, mutatis mutantis, nos quatro cantos do planeta, continuamos comprovando a existência dessas três Medicinas.

EGITO
O processo de mutações em torno do sedentarismo de caçadores e coletores, nas margens férteis do Rio Nilo, foi iniciado em torno de 6.000 anos, seguido da gênese da territorialidade, elites, práticas agrícolas e panteões.

Desde os primórdios dos registros, a presença do médico estava assinalada como um especialista social desfrutando de relevância. Os famosos papiros médicos, produzidos em diferentes fases, Ebers (1550 a.C.), Smith (1540-1600 a.C.), Berlin (1540 a.C.), Brugsch (1540 a.C.), Londres (1540 a.C.), Kahoun (2000 a.C) e Chester-Baetty (1300 a.C.) contêm extraordinárias referências de diagnósticos e tratamento de muitas doenças.

Apesar de os tratamentos estarem descritos como receitas de bolo, sem previsibilidade das variações dependentes das mudanças do binômio doente-doença, é possível perceber a expectativa em torno de três questões que ainda dominam as discussões médicas dos dias atuais:
- Entender, dominar e modificar a multiplicidade dinâmica das formas e funções do corpo;
- Estabelecer os parâmetros do normal e da doença;
- Vencer as limitações impostas pelo determinismo da dor e da morte.

Por outro lado, sem um processo teórico capaz de explicar a saúde e a doença fora da vontade dos deuses e deusas, a Medicina egípcia caminhava ao lado dos incontáveis taumaturgos:
- Thoth, curou Horus da picada do escorpião;
- Imnhotep, filho de Ptah;
- Isis, a curadora de Ra, ressuscitava certos mortos;
- Sechmet, a protetora das doenças femininas;
- Zoser, rei da Terceira Dinastia, identificava-se como Sa ou aquele que cura e nas inscrições do templo recebeu o título de médico divino.
- Sekhmet, deus com cabeça de leão, sanguinário, causador de doenças e epidemias;
- Hem Ka, relacionado à circuncisão.

Os médicos eram distribuídos no território e recebiam diferentes identidades:
- Per Âa Sounou, médico da corte;
- Sounou Grergetl, médico das colonias;
- Hérishef Néknet, médico das minas e dos templos.

Entre os muitos fatos de extraordinária importância no processo de estruturação da Medicina como especialidade social, iniciada nas primeiras cidades, atada ao sedentarismo dos grupos nômades de caçadores e coletores, está centrado na claríssima busca para vencer as limitações impostas pelas doenças e pela morte. Mesmo com a forte presença das idéias e crenças religiosas nas curas, os fartos registros dos papiros apontam para os caminhos traçados pelos primeiros médicos no aprimoramento dos diagnósticos e das terapêuticas.

Foram encontrados depósitos específicos de leite materno, sugerindo que havia o aproveitamento dirigido às puerperais com dificuldade de amamentação. A formação dos bancos de leite materno, no Brasil, ainda de modo artesanal, só foi iniciada há pouco tempo.

No Papiro de Ebers está descrito um quadro clínico que sugere ser o infarto do miocárdio e o reconhecimento tácito de não haver tratamento: “Se examinares um homem que sofre do estômago, que se queixa de dores no braço e no peito, mais precisamente na parte lateral... diz-se então que se trata da doença wid*... deves dizer: é a morte que se aproxima dele”.

No Papiro de Smith, o tratamento prescrito para a luxação da mandíbula é exatamente igual ao de hoje: “Se examinares um homem com deslocamento da mandíbula, acharás sua boca aberta (e) se sua boca não pode ser fechada, deves colocar teu(s) polegar(es) no fim dos dois ramos da mandíbula, no interior da boca (e) tuas duas garras abaixo do queixo (e) deves produzir um recuo de tal forma que volte ao seu lugar. deves dizer a respeito disso: eis alguém que tem deslocamento da mandíbula, uma doença de que tratarei. Deves amarrá-la com ymrw* (e) mel, todos os dias até a recuperação”.

* “Tradução” dos hieróglifos, segundo Pain Entralgo.

Depósito de leite materno.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Fantasy Art – Galeria

Boris Vallejo.
Os sertões – uma tragédia brasileira (2/8)
Zemaria Pinto
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drops de pimenta 33


─ Tenho uma coisa séria pra falar...
─ ...
─ Eu quero voltar a trabalhar...
─ Só se for pra ganhar mais que eu! ...Eu fico em casa cuidando das crianças.

(Zemaria Pinto)

terça-feira, 20 de outubro de 2009

O Encontro das Águas no dia do poeta
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Zemaria Pinto*

Ontem, estive no Careiro da Várzea, fazendo a palestra de encerramento do Flifloresta, sobre a importância da leitura na formação do escritor. Mas não é sobre isso que quero falar: é que, para chegar ao Careiro da Várzea, uma beleza de cidade, onde não há grades nas portas e janelas, é preciso cruzar o Encontro das Águas. E aí bateu aquela angústia – na ida, ainda com o dia claro, e na volta, mais de 11 da noite, tentando adivinhar o momento exato da passagem de um rio ao outro. Esse fenômeno de milhões de anos – muito, muito, muito antes que o Solimões e o Negro, que se encontram para formar o Amazonas, fossem assim chamados – está para ser, senão destruído, modificado, pela ação e pela omissão criminosas – ação de uns poucos, omissão de todos nós. Estão prestes a iniciar a construção de um porto – o já maldito porto das lajes – que irá interferir naquela paisagem de milhões de anos, anterior à história, lendária, mitológica...

E eu me pergunto: o que fazemos nós? O que temos feito contra isso? O que o campeão da ecologia, que posa ao lado do exterminador do futuro, na Califórnia, como o grande campeão da ecologia, do desenvolvimento sustentável, da tecnologia verde etc., tem feito? Seria ele o verdadeiro exterminador do futuro, saído da ficção para destruir o Encontro das Águas?

A poesia – eu já disse isso milhões de vezes, já está ficando chato – não transforma o mundo, não promove revoluções... Mas pode mudar uma pessoa... E quando lida, ouvida por centenas de pessoas, como hoje, nesta praça, pode mudar muitas pessoas. Por isso, convido vocês a uma reflexão: esses caras não vão ficar impunes eternamente; nós, só nós, podemos mudar isso que aí está. Reflitam comigo:

Moto-contínuo

Tudo muda, tudo passa,
tudo está em movimento
sobre a terra e sob o céu,
inclusive o pensamento.

Lentamente a História muda,
lentamente muda o Homem,
tão lentamente que às vezes
pensamos que estagnou.

As longas noites da História
passam-se tão lentamente
que nem nos apercebemos
quando o dia, enfim, chegou.

Tudo muda, tudo passa,
tudo está em movimento
sobre a terra e sob o céu,
inclusive o pensamento.

Tudo está em movimento
sobre a terra e sob o céu:
os corpos e os vegetais,
a fé e a necessidade,
a volúpia e a vontade,
o desejo e o desalento.

Tudo o que é vivo apodrece,
o que é líquido evapora,
o sólido se deforma,
o fogo que queima apaga
e o ar, puro ou cinzento,
a cada instante renova-se,
e mesmo o pó se transporta
sob o trabalho dos ventos.

Tudo muda, tudo passa,
tudo está em movimento
sobre a terra e sob o céu,
inclusive o pensamento.

(*)Pronunciamento feito no último domingo, por ocasião do Dia do Poeta (que na verdade é hoje, 20), realizado no Largo de São Sebastião, sob o patrocínio do Tacacá da Giselle, e com o indigesto, mas inevitável, apoio da SEC.
Delírio Coletivo – III


Existem seres – nos espaços público dos discursos –, que são como equilibristas reunidos em torno de um mesmo assunto: como continuar andando pelo fio de aço que eles mesmos armaram. Um fio de aço que se estende de uma ponta a outra das montanhas da vaidade. De vez em quando, um desses equilibristas cai, abatido pelo vento. Porém, alguns desses esclarecidos desatam os nós do fio estendido, retornam às suas casas e sentem uma brisa suave batendo em suas frontes. Esses não mais exercem o eu vaidoso que se expõe no fio de aço da vida ilusória.
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(Marco Adolfs)

domingo, 18 de outubro de 2009

Encontro das Águas: ainda podemos salvá-lo
Tenório Telles


A terra é a nossa casa e a natureza é o jardim e a fonte de nossas vidas. Maltratar a terra, agredi-la e devastá-la, significa por em risco a segurança de nossa morada, prejudicar o frágil equilíbrio que mantém vivos os rios, as florestas, os bichos e também os seres humanos. Movidos pelo egoísmo e arrogância, alguns homens têm feito exatamente isso: destruído o jardim que herdamos da providência para vivermos e nele sermos felizes. Transformaram o planeta num lugar ameaçador para a vida. E não contentes, apesar de todos os alertas, seguem destruindo, queimando... Essas criaturas que não merecem ser chamadas de humanas carregam no peito não um coração, mas uma pedra. Não sentem e não se comovem com nada: falar com elas sobre flores, passarinhos, rios, árvores, céu, estrelas, beija-flores... ou sobre o Encontro das Águas, é inútil. Insensíveis, não percebem a beleza que emana dessas coisas, veem apenas cifrões e a possibilidade de levar vantagem.

Esse tipo de gente mente, intimida e destrói para alcançar os seus intentos, como têm feito em relação à insanidade de construir um porto no Encontro da Águas. Não compreende o significado de um lugar como esse – encontro de dois rios milenares que carregam em suas falas e suas águas a memória do passado, do que somos e do próprio tempo. Não percebem sequer a beleza desse lugar mágico. O pior é que não se comovem com o seu simbolismo, sua grandeza, o encanto de sua natureza divina. O argumento do dinheiro e do progresso obscureceu-lhe os olhos e os sentimentos.

Apaixonado que sou por esse santuário, que traduz a força e exuberância de nossa terra e expressa a nossa identidade, fui ao Encontro das Águas. Num pequeno barco, naveguei-lhe as águas, maravilhei-me com a floresta de suas margens, os pássaros, as gaivotas, o silêncio e a paz que emanam desse espaço que mais que uma dádiva de Deus é uma bênção. Queria me certificar de que não estava sendo inconsequente ou irresponsável ao me posicionar contra a construção do porto das lajes. Na verdade, eu não sou contra que o porto seja construído. Só não concordo que seja no Encontro das Águas e seu entorno. Esse patrimônio deve ser preservado para as próximas gerações. Para a nação, enfim, para a humanidade.

Ao voltar, emocionado com a beleza e a grandiosidade dos dois rios que se embatem e se abraçam e resolvem se juntar para ser um só, concluí que pensaram o projeto errado para o lugar. A região do Encontro das Águas deveria ser um centro turístico e de entretenimento, com espaços culturais, bosques públicos, com um grande teatro, um grande aquário com as espécies regionais e um centro de estudo e documentação da memória da Amazônia e sua gente. Seria uma maneira de gerar renda, aproveitar o potencial turístico do lugar, sem destruir esse patrimônio do povo amazonense. O Encontro das Águas não pertence à Log-In Logística Intermodal. O Encontro das Águas é um bem de nossa gente.

A decisão de construir esse porto está na contramão dos debates e preocupações com a preservação da natureza. A sociedade precisa tomar uma atitude para impedir essa estupidez, antes que seja tarde. O governador Eduardo Braga, que assumiu compromissos, perante a comunidade internacional, com o meio ambiente e com a defesa da Amazônia, precisa tomar uma atitude para impedir que essa insanidade seja cometida. A força da grana não deve prevalecer sobre os direitos da sociedade ou ser usada de forma irracional para destruir nosso patrimônio natural. O dever de salvar o Encontro das Águas é de todos. E ainda é tempo.
O suave aprendizado
Nina Aiko
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Amanheceu, mas já parece tão tarde. O calor agressivo do sol aponta para quase meio-dia, mas pasmem – ainda não é chegada nem as 8 horas da manhã. A menina com salto alto, e vestido curto de costa nua, parece já ser uma mulher, mas do ponto onde está, escuto a mãe brigar e insistir em lembrar que ela tem apenas 11 anos. Mais à frente, uma casa. Enorme, imponente, fechada a cadeado e com cerca elétrica.

De um pequeno buraco no portão, surgem dois olhos arregalados, atentos e vidrados com os carros tomando seus caminhos. Uma criança de mais ou menos 5 anos, já acordada tão cedo, parece nunca ter visto vida além do universo do seu quintal. Durante algum tempo, percebo seus olhos soltarem faíscas com a movimentação matinal e me distraio com sua alegria em poder espiar o mundo pelo lado de fora. Menos de 5 minutos, ele corre. Alguém o chama desesperado – na certa, a mãe temendo ladrões ou sequestradores.

Continuo meu caminho. Ao menos tento. O ônibus mal sai do lugar, pois o trânsito já a essa hora está pavoroso. A cidade cresceu, mas as ruas não. Existem mais carros que possivelmente a cidade consegue suportar e eu – que nem tenho carro, pago por isso, me atrasando para chegar ao meu trabalho.

Já que não há nada a fazer, tento conectar uma rádio no meu celular. Consigo, mas me arrependo. Procuro uma música, algo para melhorar minha manhã. Mas ou há locutores comentando sobre o trânsito ou algumas espécies de ruídos musicais, chorando amores, falando de traição ou desmoralizando a mulher. E ainda há quem insista em chamar esses ruídos de música, aguenta!

Desisto da música, me convenço que o melhor mesmo é aderir aos modismos e comprar um Mp não sei das quantas. Gravo as músicas que gosto e pronto, os outros que se danem; um senhor ao lado lê um jornal, daqueles pequenos, de 0,50 centavos. Na primeira página, morte por assassinato. Na segunda, morte por suicídio. Na terceira, descobertas de mais corrupção na política – oh! e na ultima, fofoca sobre a vida dos outros. Me pergunto se não se preocupam com uma página para cultura, mas lembro que só colocam o que vende, e cultura não é interessante.

O sofrimento é interessante por que é muito mais acessível. É sério. Algumas pessoas vivem mais de 50 anos e admitem nunca ter sido felizes ‘de verdade’ enquanto a grande maioria com menos de 30, com certeza já experimentou mais de um tipo de sofrimento. E tanto interesse não vem da solidariedade. Vem da satisfação. Muitos dizem que se solidarizam com a dor alheia, mas no fundo o que todos querem e dizer para si mesmos que tem gente em pior situação. Esse é o bicho homem!

Desisto das coisas ao redor e tento me lembrar de algum momento engraçado. Preciso fugir daquele ônibus lotado e como fisicamente é impossível, me permito lembrar. Busco um momento bom, um momento muito bom, e mesmo revirando minhas lembranças, nada me vem à mente. Começo a sentir–me vazia, um oco.

Todo dia o mesmo trajeto. Trabalho, casa, casa, trabalho. Minhas amigas, sempre ocupadas, nunca têm tempo para nada. Meus colegas de trabalho são pessoas sem noção e não me passa pela cabeça conviver nem um minuto a mais com eles do que as obrigatórias 8 horas diárias, mais do que isso e a sem noção seria eu.

Vida medíocre, insossa e sem graça. Vida fútil, sem aspirações de mudança ou crescimento, sem cor, sem beleza. É a palavra vida, sem expressão nenhuma do que deveria ser de fato, vida!

Lembro do menino, percebo que temos algo em comum. Também estou aprisionada, ainda que do lado de fora da cela. E talvez essa seja a pior prisão. Lembro que os únicos momentos felizes que tive foram em minha distante infância, mas esses não valem. Quero um momento atual, algo forte, que eu possa sorrir sozinha só de lembrar – um passeio, uma aventura, um filme ou um livro – mas não há nada. Tenho vontade de chorar, de ligar para alguém – de alguém me ligar para saber como estou. Sei que isso não acontecerá. Procuro me distrair e me recompor deste momento de fraqueza.

Sinto receio das horas que correm e raiva do ônibus que mal anda. Não quero mais pensar em mim. Nem em ninguém. Percebo que pensar faz mal, quando nossos pensamentos não estão de bom humor. Quando finalmente consigo chegar ao trabalho, naturalmente atrasada, as inúmeras tarefas a serem feitas me consolam. É bom ocupar a cabeça, ao menos assim não penso besteiras.

De longe alguém me dá bom dia, não sinto vontade de retribuir. Um senso de chateação cai sobre mim, nada mais importa. Já comecei mal o dia.

sábado, 17 de outubro de 2009

Fantasy Art – Galeria

Age of Mythology.Greg Horn.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

5 haicais franceses – III
Luiz Bacellar


Avec huit huitres
je prend un dejeuné
reglé par Muscadet.


La cigarrette
fait un cercle de feu
quand je le jétte.


Le vol de l’hibou
contre l’hollofotte:
surprise et beauté.


C’ést trés dur de vivre ici…
(et sans être au Sans Souci –
le palais du roi de Prussie).


Cette petite coquillage
rose… (me ressemble à
un bijou de gammine).
transparência do poeta


quando decidiu renunciar ao emprego pela poesia, todos o censuraram,chamaram-no de louco, irresponsável. ainda assim, do quadrado sombrio do esquecimento, ele tecia aurora de eternidade inatingível.

por muito tempo o poeta foi visto apenas ilha, em vez de pássaro.

certo dia, os homens acordaram com o canto do pássaro, no meio da madrugada. e buscaram o poeta. mas não o acharam.

na tarde em que o arco-íris se debruçou sobre a cidade, os homens ouviram novamente o canto do pássaro. e descobriram que o canto vinha do interior de cada um deles. compreenderam que o poeta permanecia mais vivo ainda.

(Adrino Aragão)

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

O alemão que subiu o rio
homenagem aos 85 anos da morte de Theodor Koch-Grünberg
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Crianças macuxi, foto de Koch-Grünberg, 1911.
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O antropólogo alemão Theodor Koch-Grünberg (1872-1924) veio para o Brasil em abril de 1903, enviado pelo Museu de Etnologia de Berlim para fazer pesquisas na região do rio Amazonas. Ele escolheu as áreas de fronteira entre o Brasil, a Colômbia e a Venezuela.

Em junho de 1903, a bordo do vapor Solimões, subiu o rio Negro e perambulou entre os vários povos do alto rio Negro, até dezembro de 1904, numa fantástica aventura.

Além de borboletas, plantas e amostras de pedras, Grünberg trouxe grande quantidade de material etnográfico, todo levado para o Museu, em Berlim, que patrocinara sua expedição. Uma coleção menor foi entregue ao Museu Goeldi, de Belém.
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Meninos taurepang, foto de Koch-Grünberg, 1911.
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Grünberg voltou à Amazônia entre 1911 e 1913 e, em 1924, iria acompanhar a expedição do americano Hamilton Rice ao rio Branco, mas morreu de malária, em Vista Alegre, no dia 8 de outubro, aguardando a expedição chegar naquela localidade às margens do Branco, onde foi enterrado. Anos depois, seus despojos foram transferidos para o cemitério de São João Batista, em Manaus, onde se encontram até hoje.

O IGHA é depositário de um baú com alguns pertences pessoais de Grünberg.
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Koch-Grünberg com os Makuna, rio Apaporis.
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No próximo sábado, 17/10, às 10h00, A EDUA (Editora da Universidade Federal do Amazonas) e o IGHA (Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas), na sede deste, estarão lançando o livro Começos da Arte na Selva, de Theodor Koch-Grünberg, com tradução do padre Casimiro Beksta.

Na ocasião, serão relançados dois outros livros de Koch-Grünberg: A Distribuição dos Povos entre Rio Branco, Orinoco, Rio Negro e Yapurá; e Dois Anos entre os Indígenas.
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Um dos livros que estarão sendo lançados.
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Onde: IGHA, rua Bernardo Ramos, ao lado da antiga prefeitura
Quando: 17 de outubro de 2009 (sábado), às 10h00
Os 79 anos de Alencar e Silva

Alencar e Silva, entre os amigos Jorge Tufic e Astrid Cabral.

Jorge Tufic e Alencar e Silva.
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O poético encontro aconteceu no último dia 21 de setembro, no Rio de Janeiro, onde reside o aniversariante.
Medicina hipocrática
João Bosco Botelho
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Anfiteatro da Escola de Cós.

A consolidação da civilização grega ligada à polis, com forte estrutura político-jurídica, que constituiu o esplendor da nova visão das relações dos homens e das mulheres entre si e com a sociedade, mudou muitos dos antigos valores presentes nas primeiras cidades, particularmente, os das práticas médicas.

De modo mais enfático, com menor dependência dos deuses e deusas, os gregos pré-socráticos procuravam a origem de tudo centrada em elementos da natureza visível e outras categorias, por meio de processos teóricos:
- Tales: água;
- Anaximandro: ilimitado;
- Anaxímenes: ar;
- Pitágoras: números;
- Parmênides: fogo e terra;
- Zenão: se aquilo que existe não possui grandeza (volume) não existe;
- Heráclito: fogo;
- Empédocles: terra, ar, fogo e água;
- Leucito e Demócrito: todas as coisas são ilimitadas e se transformam umas nas outras – átomo.

De modo semelhante, poucos anos depois, no período platônico, os médicos da Escola de Cós procuravam desvendar a natureza humana por meio de três questionamentos:
- Entender, dominar e modificar a multiplicidade dinâmica das formas e funções do corpo;
- Estabelecer os parâmetros do normal e da doença;
- Vencer as limitações impostas pelo determinismo da dor e da morte.
Um dos destaques dessa nova cultura foi Hipócrates, nascido no ano 460 a.C., na ilha de Cós, nessa Grécia plena de movimento nas buscas da racionalidade. O pai da Medicina foi contemporâneo de Sócrates, do sofista Górgias e Demócrito, com quem teria trocado idéias, durante a estada em Abdera.

Hipócrates e os médicos da Escola de Cós foram os fundadores das atuais bases da ordem médica. De modo geral, representam para a Medicina valores semelhantes aos conferidos à Filosofia por Platão e seus seguidores.

É grande a produção literária atribuída a Hipócrates e aos médicos de Cós. Sabe-se que muitos desses livros são apócrifos, porém não há dúvida da participação de Hipócrates, direta ou indiretamente, na elaboração dos seguintes textos: Epidemias, O prognóstico, Tratado cirúrgico, Tratado dietético, Tratado nosológico, Tratado ginecológico e Tratado ético, sendo este último, até hoje, o responsável pelo suporte teórico da Medicina no Ocidente.

Na mesma época em que Demócrito lançava as bases do atomismo – tudo é formado por átomos, que são partículas indivisíveis e invisíveis, eternas e imutáveis – dando pela primeira vez a explicação do odor, da cor e do sabor, Políbio, o genro de Hipócrates, no livro Da natureza do homem, lançava a teoria dos Quatro Humores para explicar o aparecimento de doenças: “O corpo humano contém sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra, que estes elementos constituem a natureza do corpo e são responsáveis pelas dores que se sentem e pela saúde que se goza”.

Pela grandeza teórica do enunciado, estruturando a primeira teoria para explicar a saúde e a doença fora do poder das deidades dos panteões, eu entendo esse processo como o primeiro corte epistemológico da Medicina.
Aplicação da teoria dos Quatro Humores.

A frase atribuída a Hipócrates é reveladora do quanto essa teoria dos Quatro Humores foi importante no processo, ainda em curso, para desvincular os saberes médicos das idéias e crença religiosas: “Quanto a doença que chamamos sagrada (epilepsia), eis o que significa: não me parece nem mais divina, nem mais sagrada que as outras, tem a mesma natureza das demais doenças e se origina das mesmas causas que cada uma delas. Os homens atribuíram-lhe natureza e origem divinas por causa da ignorância e do assombro que ela lhes inspira, pois em nada se assemelha às outras.”

Considerando a relação de conquista territorial grega sobre a Índia, seguida das trocas comerciais e conhecimentos, poucos anos antes da teoria dos Quatro Humores, por Políbio, é possível que tenha ocorrido algum tipo de influência da Medicina da Índia antiga na Escola de Cós, já que existe muita semelhança entre as duas posições teóricas que categorizaram a saúde e a doença como dependentes do equilíbrio ou desequilíbrio dos humores: a contida no Susruta Samhita (espírito, bile e fleuma) e a descrita por Políbio (sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra), somente associada aos quatro elementos de Empédocles (fogo, ar, terra e água).

Na ilha de Cós, a Escola de Medicina fundada e liderada por Hipócrates, conseguiu reunir muitos colaboradores, que, sob perspectivas semelhantes, olharam as práticas médicas de modo diferente das predominantes nas primeiras cidades, dando início ao lento processo de separação da Medicina com a religião.

Entre as dezenas de ensinamentos hipocráticos, destacam-se como ainda atuais e pertinentes os conceitos de diagnósticos, prognósticos e tratamento, distinção entre sintoma e doença, os três aforismos: o médico e a sua arte, o doente e a sua natureza individual e a doença.

Os conceitos hipocráticos, apesar de terem absorvido aperfeiçoamentos ao longo dos séculos, continuam válidos, mesmo com toda a tecnologia da moderna Medicina.

A melhor aparência do médico também está nos ensinamentos hipocráticos. No capítulo "Do Médico", do livro Tratado Ético, está claríssimo que o doente gosta do médico desleixado consigo: “A norma do médico deverá ter boa cor e bom aspecto (...) Pois será de grande utilidade para si colocar-se elegantemente e perfumado agradavelmente (...) e tudo isto agradará ao doente”.

Alguns instrumentos cirúrgicos que foram utilizados pelos médicos gregos são semelhantes aos de hoje: sondas, bisturis, trépanos, pinças e afastadores. As observações do corpo humano foram responsáveis pelas descrições minuciosas da anatomia, como as realizadas por Herófilo, contemporâneo de Hipócrates, que distinguiu o cérebro do cerebelo, identificou as membranas meníngeas e o líquido cérebro-raquidiano, as funções motoras e sensitivas dos nervos periféricos.

Quando a Escola de Cós estava no apogeu e Hipócrates era reconhecido como a maior autoridade médica do seu tempo, havia harmoniosa convivência entre a nova Medicina e as práticas exercidas pelos sacerdotes nos templos de Asclépio, o deus da Medicina grega, na mesma ilha de Cós. As escavações arqueológicas recuperaram várias esculturas de mármore como agradecimento a Asclépio pela cura obtida.

Na Grécia Hipocrática, mesmo com todos os avanços dos saberes do corpo humano, as Medicinas divina, empírica e oficial, também conviveram amparadas pelo poder dominante.

Hipócrates examinando um doente.

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quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Os sertões – uma tragédia brasileira (1/8)
Zemaria Pinto
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Estes slides foram utilizados por ocasião da palestra Os sertões - uma tragédia brasileira, apresentada no ICHL, dia 22/09, e na Quarta Literária, dia 07/10. Algumas pessoas me pediram para copiar o original, em powerpoint; prometi que iria postar no Palavra e agora estou cumprindo. Serão 8 postagens, para um total de 72 slides, sempre às quartas.