Amigos do Fingidor

domingo, 25 de outubro de 2009

Voo Noturno
Inácio Oliveira


Quando João acordou a manhã já estava avançada. Ele havia sonhado, porém não se lembrava com o quê sonhara, tinha apenas um gosto estranho na boca, que ele não soube como definir; era preciso que se inventasse uma nova palavra para que João pudesse definir aquele estranho gosto que sentia na boca; por conta disso, João perdeu o apetite e não ingeriu nada o resto do dia. Ele tinha uma sede que não era de água nem de qualquer outro líquido conhecido.

Começava a chover, mas tão suave que nem se percebia; as cortinas estavam fechadas, ainda não amanhecera ali (talvez não amanhecesse nunca mais). João sentou-se pesado no sofá da sala, como se tivesse engordado ou envelhecido muito durante a noite; ele não ousava ligar a televisão.

João estava inquieto. João era um homem urgente, porque ele sabia que o tempo era curto e tudo estava se perdendo, ele tinha a aflição do tempo que passa sem remédio. No círculo de coisas em que sua vida estava envolta, ele compreendia cada vez menos aquele sentido íntimo que tem uma flor quando morre: o ter sido apenas uma flor.

Mesmo sabendo o tempo ser curto, João permanecia sentado no sofá da sala na contemplação da ordenação natural do dia; tudo o aborrecia, ele simplesmente já não compreendia a estupidez de seus modos.

João estava exausto de tudo o que não acontece e aos poucos ele começava a ignorar aquela verdade tão urgente e necessária de que um homem é o mundo inteiro, por isso ele é todo um esforço de se encontrar; havia uma ausência de sentido e desejo em tudo. João havia deixado de desejar e um homem quando não deseja mais nada ele deseja o mal, esse era o princípio de um caminho sem volta.

Como um náufrago em alto-mar, que procura desesperadamente algo sólido que o mantenha à superfície, João também procurava desesperadamente algo “sólido” que o mantivesse à vida. Num golpe de sorte ele conseguiu lembrar-se da última mulher que amara, exatamente naquele preciso momento depois do amor, ela tinha no rosto um sorriso que ia acontecer mas não acontecia, havia adquirido aquela expressão grave que as pessoas têm quando não pensam em nada e João sabia que não pensar em nada era uma das formas mais profundas de pensar, por que ele também agora era um homem profundo que não pensava em nada.

Com aquela mulher ele havia sido como o homem que morou a vida inteira num lugar muito bonito mas nunca se dera por isso até que viesse alguém de fora (e esse alguém de fora era ela) para lhe mostrar como tudo aquilo era muito bonito, como tudo era incrível, mas ela havia partido e ele esquecera como tudo aquilo era muito bonito, como tudo era incrível.

No transcorrer do dia, João foi perdendo a urgência que tinha: ele tinha agora a calma que o mar tem antes que a tempestade comece e aos pouco ele começava a entrar naquela região perigosa em que não havia passado nem futuro; João era como uma coisa que estivesse fora do tempo.

A tarde era azul, em tons escuros; talvez ainda chovesse. João saiu pela primeira vez do apartamento naquele dia, caminhou pela alameda como alguém que não vai a lugar nenhum, mas porque é natural e necessário que um homem ande, ele anda, involuntariamente, sem saber aonde vai.

João não compreendia porque o mundo estava assim, daquele jeito, quem fizera as coisas daquele modo? João viu a tarde se encolher de frio no olhar de um mendigo que se agasalhava num canto da praça; tudo o agredia profundamente; ele tentou, com muita força, pensar mais uma vez no rosto e no corpo da mulher que amara, porém a sua imagem se dissipava entre a tarde e a noite que se confundiam envolvendo a cidade numa névoa imprecisa, que fez com que João por um momento errasse o caminho de volta para casa.

A chuva que era fina e leve mudava de tom caindo severa e indiferente, lavando a cidade que estivera por demais suja; como alguém que estivesse em perigo e assim fugisse, João voltou para o apartamento vazio que estivera esperando que ele voltasse; tudo ali se esforçava para ser aconchegante, no entanto João já não se reconhecia em meio aos móveis e à decoração estúpida como em casa alheia.

João se recostou à janela e naquela noite ele pensou na morte como se pensa num amigo querido, como muita ternura e cuidado e sem qualquer curiosidade ou medo, apenas como alguém que está muito cansado de um longo dia de trabalho e se agasalha num canto para dormir: ele se atirou do quinto andar. Morreu assim na sarjeta numa noite de chuva, tão grotesco e ridículo como um peixe que morre afogado.