Sonhos com o Bruxo
Inácio Oliveira
Sabe, doutor, eu ando sonhando com o Machado de Assis; não é estranho que eu ande sonhando com o Machado de Assis?
No sonho percebo que nós moramos no mesmo bairro, uma paisagem antiga. É uma rua cheia de árvores, sombreada e tranquila; está entardecendo, eu vou andando pela rua, ele está lá, sentado numa cadeira em frente à um sobrado velho, então ele me chama de Dico.
Só os íntimos me chamam de Dico, doutor, para os outros eu sou sempre o Vadico. Não sei porque o Machado me chama de Dico, acho que é por que com o tempo um escritor que a gente gosta muito acaba ficando íntimo da gente ou a gente dele, vai saber...
Olha, doutor, o bom escritor é aquele que quando a gente acaba de ler dá vontade de ser amigo dele, de morar na mesma rua, ir na casa dele, receber ele na casa da gente, falar das coisas que a gente pensa sabendo que ele vai nos entender, ser amigo mesmo, sabe?
O único escritor que eu teria vontade de ser amigo é o Machado de Assis. O Machado é o meu herói: mulato, pobre, órfão, gago e epilético no Brasil do século XIX; e veja só, ainda hoje ele continua aí, essa sombra indomável.
E há esses otários todos escrevendo e se exibindo, achando que estão vivendo o auge da História. Eles têm mesmo é a obrigação de serem melhores que o Machado de Assis, mas eles não o são, é por isso que eu só leio o Machado.
Em casa tenho todos os livros dele, só não tenho os livros que escreveram sobre ele, são todos uns otários também, não sabem nada do Machado. Eu é que sei, doutor, sonho com ele e conversamos muito, mas não é o Machado irônico-sarcástico dos críticos; é um Machado amigo, humano, chato às vezes, e é por isso que ele é só meu.
Olha, doutor, eu já quis ser todos os personagens machadianos; na verdade eu já fui todos os personagens machadianos, principalmente o Quincas Borba; acho que todo mundo é um pouco Quincas Borba.
O que eu não gosto, doutor, é do Bentinho, um corno indeciso que não tem nem certeza se é corno, o que eu gosto mesmo é o Machado atrás de tudo tocando fogo na alma dele e na nossa também quando a gente lê; é como se o suposto chifre do Bentinho também fosse nosso e cada um de nós também amasse uma Capitu, mas o Bentinho não amava a Capitu, talvez amasse o Escobar, mas não amava a Capitu.
Ser traído, doutor, é uma coisa muito forte, eu já fui traído e se a gente pensa muito nisso acaba ficando muito casmurro mesmo com o tempo. A Elza foi a minha Capitu, o senhor sabe, aquele grande safada, a prostituta sagrada da minha vida. Todo homem tem direito à sua Capitu, doutor, uma mulher que seja mais que uma simples mulher, que seja um acontecimento, que seja aquele preciso instante na vida de um homem em que tudo se explica e ao mesmo tempo nada mais faça sentido. A Elza foi assim na minha vida. Uma mulher é sempre capaz de levar um homem à loucura ou à santidade.
Uma coisa eu sei, doutor, só quem pode nos ferir de verdade são aqueles a quem amamos. Foi assim com a Elza, fizemos tão mal um ao outro, sempre na mesma proporção em que nos amávamos.
Eu esperava que tudo ficasse bem, doutor, sabia que era preciso fazer alguma coisa, mas eu não sabia o que fazer. A gente espera que o amor nos salve, a gente está sempre esperando que alguma coisa nos salve e o amor, às vezes, nos salva mesmo, mas no nosso caso isso não aconteceu.
Ela morreu sozinha num canto esquecido, acho que morrer foi sua vingança contra mim, porque depois que ela morreu tudo ficou assim mal resolvido, pela metade e pela metade, doutor, nada presta e o pior é que a gente se acostuma a fazer as coisas pela metade. A gente trabalha pela metade, a gente tira férias pela metade, a gente faz amor pela metade, a gente se diverte pela metade (às vezes nem isso), a gente vive pela metade, sempre pela metade, doutor.
É por isso que eu amo o Machado, tudo que ele fez foi perfeito, completo, inteiro, nunca bajulou ninguém, ele era o senhor do seu próprio mundo. Não sei porque, doutor, mas eu tenho essa obsessão pelo Machado de Assis e eu não estou sozinho, tenho comigo os livros dele. O senhor acha que eu sou louco?