Amigos do Fingidor

sexta-feira, 30 de junho de 2023

Antísthenes Pinto, inventor e artesão 2/4

Zemaria Pinto

  

III

Antísthenes de Oliveira Pinto nasceu em Manaus, no dia 28 de novembro de 1929; era uma quinta-feira. O quinto dia da semana tem uma simbologia complexa. Na tradição pagã, é o dia consagrado a Júpiter, o organizador. Para os pitagóricos, por outro lado, é o número “nupcial” por excelência, pois é a soma do princípio celeste masculino, o 3, com o princípio terrestre feminino, o 2 (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1990, p. 241). Isso não explica mas por certo avaliza a dedicação de Antísthenes ao trabalho e à família.

Filho de Antísthenes Nogueira Pinto e Delmira de Oliveira Pinto, Antísthenes foi casado com D. Ruth de Albuquerque Pinto – tendo deixado 5 filhos: Marcos, Antísthenes Filho, Wagner, Rita de Cássia e Márcia Cilene.  Exerceu muitas funções, no aspecto profissional: auxiliar de farmácia, escrivão de polícia, vendedor viajante, corretor de imóveis, corretor de seguros, gerente de rotisseria, empresário de artistas, professor de história e geografia – e, sobretudo, jornalista, militando no Jornal do Brasil, no Correio da Manhã e na Tribuna da Imprensa, no Rio de Janeiro. Depois de mais de 10 anos longe de Manaus, voltou em 1970, onde, em paralelo ao exercício da crônica jornalística, desempenhou as funções de Diretor de Cultura e Promoções da Prefeitura de Manaus; Presidente do Conselho Diretor da Fundação Dr. Thomas; Superintendente Cultural do Amazonas; diretor administrativo da Imprensa Oficial do Estado e diretor do Museu do Porto de Manaus.

Ao longo de 19 anos de convivência, lembro-me de visitá-lo em pelo menos quatro endereços, em Manaus: 10 de Julho, Jardim Paulista, Parque 10 e Joaquim Nabuco. Trabalhando pela sobrevivência até os últimos dias, até onde lhe permitiu sua saúde, jamais teve tempo para se dedicar à sua arte de modo integral, o que não o impediu de nos legar uma extensa e premiada obra: 18 livros distribuídos em vários gêneros, ao longo de 35 anos, entre 1957 e 1992.

Poesia: Sombra e asfalto, Ossuário, Angústia numeral, A rebelião dos bichos, Curvas do tempo, mais a Poesia reunida.

Romances: Terra firme, A solidão e os anjos e Várzea dos afogados.

Novelas: Chavascal, Os agachados e Porão das almas.

Contos: É proibido perturbar os pássaros e Os suicidas.

Crônicas: Quelônios do Carabinani e Os garis das alturas.

Ensaios: Literatura: novos horizontes e Oito poetas amazonenses

Antísthenes Pinto faleceu em Manaus, aos 71 anos, a 03 de dezembro de 2000, um domingo – paradoxalmente, o dia da alegria, o dia do sol, o dia da luz.

 

IV

O modernismo no Brasil é consequência da explosão das vanguardas no resto mundo: impressionismo, expressionismo, cubismo, abstracionismo, futurismo, foram rótulos reunidos sob um título genérico. A preparação foi lenta: a exposição de Anita Malfatti, em 1917, que provocou a manifestação irada de Monteiro Lobato – Paranoia ou mistificação?; a publicação de Carnaval, de Manuel Bandeira, em 1919, de onde saiu o poema-ícone de 22, “Os Sapos”; a divulgação das obras de Brecheret e Di Cavalcanti, em 1920; e o golpe de misericórdia:  a publicação, em 1921, da série Mestres do passado, de Mário de Andrade, que, com reverência e até mesmo carinho, demolia impiedosamente a poesia parnasiana dos “príncipes” Olavo Bilac, Alberto de Oliveira e Raimundo Correia, entre outros menos notáveis. O que aconteceu em fevereiro de 1922 foi apenas um marco – uma festa para registrar a revolução fartamente anunciada.

Vieram, então, as divergências dos grupos de Antas e Antropófagos, que se estendia até a política, com as simpatias relativas a fascistas e comunistas. Apareceram novas gerações de escritores, e novas formas de olhar o mundo, como o romance nordestino, que reeditava o realismo do século XIX, com uma visão mais politizada; a poesia de cunho místico, que reeditava o simbolismo; e a poesia existencialista, que questionava o papel do homem diante de si mesmo e da sociedade, desnudando suas angústias frente às situações extremas da vida, mas também em confronto com a banalidade da vida.  

No Amazonas, temos, em 1922, o poema A Uiara, de Octavio Sarmento, publicado apenas em jornal e semi-inédito por 80 anos, como uma manifestação ainda pré-modernista.[1] O marco inaugural do movimento é a publicação, em 1935, de Ritmos de inquieta alegria, de Violeta Branca. Em 1951, com a publicação de Silêncio e palavra, de Thiago de Mello – e, principalmente, com a repercussão que essa obra viria alcançar, pelas penas dos mais importantes críticos literários da época – numa época em que os grandes críticos, como Tristão de Athayde, Manuel Bandeira, Otto Maria Carpeaux e Cavalcante Proença, por exemplo, escreviam ordinariamente para os jornais... Com a publicação, eu dizia, de Silêncio e palavra, o Amazonas entrava em sintonia com a literatura, e especialmente com a poesia produzida nos “centros culturais mais avançados do país”. Eu explico o porquê desse “entrava em sintonia” com um breve trecho da introdução à Pequena antologia Madrugada, publicada em 1958, escrita por Jorge Tufic.

 

O cenário era a conhecida praça da Polícia Militar do Estado. E estava fundado, assim, o Clube da Madrugada. Seus fundadores tinham fama de boêmios, loucos, maníacos etc. Mas cada um daqueles boêmios, loucos ou maníacos sentia na própria carne o angustiante problema da terra que pisava. Saturados até à medula do academismo cediço e rotineiro, resolviam, ali mesmo, numa bela madrugada amazônica, externar suas ideias, dizendo da necessidade de se reunirem para oferecer resistência – parte que eram desse organismo ameaçado por cruenta enfermidade – aos males que, tão visivelmente, afligiam e perturbavam até o mais indiferente. (TUFIC, p. 8-9)

 

O Clube da Madrugada representava, pois, uma reação ao conservadorismo vigente na literatura feita até então. Mas não era só isso – havia um forte desejo de mudança que implicava em promover uma ruptura para começar do ponto zero, eliminando qualquer ideia de continuísmo. Era uma tomada de posição contra o que se chamava à época de “êxodo anual”, quando as melhores cabeças da terra iam em busca dos tais “centros culturais mais avançados do país”. Mais do que uma reação ao marasmo intelectual, era uma reação ao marasmo político, social e econômico por que passava o Amazonas.[2]

Uma observação interessante: na noite de 22 de novembro de 1954, quando o Clube foi fundado, apenas Farias de Carvalho e Luiz Bacellar representavam os poetas, a literatura de invenção, propriamente – os demais participantes eram de outras áreas do conhecimento, como os professores Saul Benchimol, Teodoro Botinelly e Francisco Batista, que viriam tornar-se notáveis economistas. O Clube da Madrugada representa um marco na história da cultura de Manaus: há um antes e um depois do Clube do Madrugada. Notem que eu falei “história da cultura” e não da literatura – pois além da poesia e da ficção, havia representantes das artes plásticas, como Moacir Andrade, mas também ensaístas cujo espectro de abordagem ia desde a própria literatura até os estudos sociais, políticos, econômicos e antropológicos. Devo ressaltar, como exemplo do que quero dizer, o nome do professor Jefferson Peres, ex-senador da república, um dos mais destacados parlamentares da virada do século, também membro do Clube da Madrugada. 

O papel de Antísthenes Pinto dentro do Clube se consolida com o passar do tempo, quando seu nome se torna referência na poesia, na prosa de ficção e na crônica. Ele se identifica de tal forma com o Clube que se considera o próprio – muitas vezes o ouvi dizendo, quase sempre irritado, “enquanto eu estiver vivo o Clube da Madrugada não morrerá”.  Antísthenes foi presidente do Clube em várias ocasiões e numa delas conduziu à presidência seu filho Wagner Pinto, garantindo a continuidade do Clube.



[1] Para maior aprofundamento, consultar SARMENTO, Octávio. A Uiara & outros poemas. Organização e notas: Zemaria Pinto. Manaus: AAL/Valer: 2007.

[2] Para mais informações, consultar PINTO, Zemaria. Lira da madrugada. Manaus: Coreli e Jiquitaia, 2014.


quinta-feira, 29 de junho de 2023

A poesia é necessária?

 

Aforismo

José Craveirinha (1922-2003)

 

Havia uma formiga

compartilhando comigo o isolamento

e comendo juntos.

 

Estávamos iguais

com duas diferenças:

 

Não era interrogada

e por descuido podiam pisá-la.

 

Mas aos dois intencionalmente

podiam pôr-nos de rastos

mas não podiam

ajoelhar-nos.


terça-feira, 27 de junho de 2023

segunda-feira, 26 de junho de 2023

Os 60 anos de Alameda, por Zemaria Pinto


 Clique sobre a imagem, para ter acesso ao YouTube.

domingo, 25 de junho de 2023

Manaus, amor e memória DCXXIV


Aviaquário Municipal. À direita, a catedral. À esquerda, ao fundo, o prédio do Iapetec.

 

sexta-feira, 23 de junho de 2023

Antísthenes Pinto, inventor e artesão 1/4


Zemaria Pinto

 

I

Para efeito deste trabalho, delimitei a abordagem da obra de Antísthenes Pinto à sua poesia de invenção e ao seu trabalho de ficcionista-artesão, avaliado a partir de romances e novelas, deixando de fora da análise os contos, além de crônicas e ensaios. Esta é a razão do título. E por que os contos ficaram de fora? Porque não se enquadram nessa categoria de “ficção artesanal”, estando mais próximos da invenção, o que exigiria uma análise à parte e um tempo/espaço de que não dispunha. Fico devendo, bem como sobre crônicas e ensaios, gêneros que passam ao largo deste escopo.

 

II

Ezra Pound classificou os escritores em seis categorias: lançadores de modas, beletristas, bons escritores sem qualidades salientes, diluidores, mestres e inventores. Imagine uma pirâmide. Na base, estão os lançadores de moda, os best-sellers. Os beletristas especializaram-se em reproduzir fórmulas gastas. Os bons escritores sem qualidades salientes destacam-se dos demais, mas não tanto assim: são epígonos, seguidores de uma determinada corrente. Os diluidores especializaram-se em reproduzir a técnica dos grandes mestres. Os mestres são aqueles que estão no penúltimo patamar da pirâmide – sobre eles não há questionamentos. Mas e os inventores, o topo da hipotética pirâmide? Reproduzindo as palavras do próprio Pound: os inventores são escritores que “descobriram um novo processo ou cuja obra nos dá o primeiro exemplo conhecido de um processo” (1977, p. 42). Longe de mim querer classificar os escritores amazonenses pelos parâmetros do norte-americano, até porque eles só se aplicam quando uma literatura – um conjunto significativo de obras – é analisada com o devido distanciamento histórico. A lembrança de Pound, entretanto, tem para mim uma motivação sentimental: foi tema de algumas das primeiras conversas que tive com Antísthenes Pinto – lá pelos idos de 1981, há quase 40 anos. E também porque, para mim, seu livro de poemas Angústia numeral, o primeiro de Antísthenes que li, representava – no âmbito da literatura produzida no Amazonas – aquilo a que Pound chamava de invenção.

 

Eu sou velho porque antes que todos

me chamem de velho eu o sou;

eu sou as paredes das cidades abandonadas,

eu sou a flor que renasceu na terra e no ar,

eu sou os respingos da chuva que o chofer de taxi limpa para ver a estrada,

eu sou a primavera desmaiada no pântano,

(...)

eu sou o rio que esquecido de si mesmo

constrói novas águas e o leito, e as margens

de garças escarlates

e passa e passa como os teus olhos no vazio.

(1976, p. 59)

 

De alguma forma, aqueles poemas de Angústia numeral ecoavam Allen Ginsberg, num dos mais terríveis poemas escritos no século XX.[1]

 

Eu vi os expoentes da minha geração destruídos pela loucura, morrendo de fome, histéricos, nus,

arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada em busca de uma dose violenta de qualquer coisa,

“hipsters” com cabeça de anjo ansiando pelo antigo contato celestial com o dínamo estrelado da maquinaria da noite,

que pobres, esfarrapados e olheiras fundas, viajaram fumando sentados na sobrenatural escuridão dos miseráveis apartamentos sem água quente, flutuando sobre os tetos da cidade contemplando jazz,

que desnudaram seus cérebros ao céu sob o Elevado e viram anjos maometanos cambaleando iluminados nos telhados das casas de cômodos,

que passaram por universidades com olhos frios e radiantes alucinando Arkansas e tragédias à luz de William Blake e entre os estudiosos da guerra,

que foram expulsos das universidades por serem loucos & publicarem odes obscenas nas janelas do crânio (...)

(GINSBERG, p. 41)

 

De alguma forma, aqueles poemas de Angústia numeral dialogavam com Roberto Piva e seus instantâneos de uma São Paulo delirada.

 

A estátua de Álvares de Azevedo é devorada com paciência pela paisagem de morfina

a praça leva pontes aplicadas no centro de seu corpo e crianças brincando na Tarde de esterco

Praça da República dos meus Sonhos

onde tudo se fez febre e pombas crucificadas

onde beatificados vêm agitar as massas

onde Garcia Lorca espera seu dentista

onde conquistamos a imensa desolação dos dias mais doces

(PIVA, p. 11)

 

De alguma forma, aqueles poemas de Angústia numeral eram reflexos da poesia do próprio Ezra Pound.

 

a pantera negra jaz debaixo da roseira

e vêm faunos farejar-lhe os flancos

(1983, p. 113)

 

De alguma forma, Ginsberg, Piva e Pound, estavam presentes na poesia de Antísthenes Pinto.

 

Os guarda-chuvas abertos à rua

vertical e a lepra por baixo num euforismo

de canção.

As janelas caladas deixando o vento túmido

passar as suas patas ciclópicas

e o imenso monociclo levando para nenhuma parte

o homem de cabeça decepada

e as mulheres todas com o sexo

sangrando

cobrindo os olhos congestionados.

Execrável o leporino fala que chegou o tempo

das estátuas se masturbarem

e há o suicídio coletivo lindo, lindo

e me liberto das carcomidas parede e saio à chuva

como o recém-nascido do ventre da mãe morta.

(1976, p. 12)

 

Para mim – crítico incipiente – aquilo era invenção.


(Este ensaio será postado em quatro partes, todas as sextas-feiras, até 14 de julho.) 


[1] O anacronismo entre os poemas citados e a bibliografia é apenas aparente, porque os autores eram amplamente divulgados, em jornais e revistas alternativos, além de circularem em edições clandestinas.


quinta-feira, 22 de junho de 2023

A poesia é necessária?

 

Rapariga

Ana Paula Tavares

 

Cresce comigo o boi com que me vão trocar

Amarraram-me já às costas, a tábua Eylekessa

 

Filha de Tembo

organizo o milho

 

Trago nas pernas as pulseiras pesadas

Dos dias que passaram...

 

Sou do clã do boi –

 

Dos meus ancestrais ficou-me a paciência

O sono profundo de deserto,

a falta de limite...

 

Da mistura do boi e da árvore

a efervescência

o desejo

a intranquilidade

a proximidade

do mar

 

Filha de Huco

Com a sua primeira esposa

Uma vaca sagrada,

concedeu-me

o favor das suas tetas úberes

 

terça-feira, 20 de junho de 2023

Bebê poranga

Pedro Lucas Lindoso

 

Tenho quatro netinhas. Maria Luísa, Maria Helena e Catarina. Isadora vai chegar em breve.

Catarina é a mais novinha. Vai completar um ano no próximo mês de julho. As mais velhas já vão para escola. Assim, temos convivido mais com Catarina. Ela é uma gracinha. Engatinha com rapidez e já está quase andando.

Catarina fala poucas palavras, mas é bem fluente na linguagem dos bebês. Para minha alegria já fala vovô. Aliás vovovô. Não sou especialista, mas interesso-me por línguas e sobre aquisição de linguagem. Há muitas pesquisas sobre como bebês aprendem a falar. Uma criança como Catarina, ao chegar aos três anos de vida, já terá escutado milhões de palavras a mais que uma criança de pais analfabetos.

Nesta semana fui acompanhar Catarina e sua mamãe numa atividade lúdica. O local chama-se Sementeira. Os bebês ficam numa sala acompanhados das mamães ou responsáveis. E interagem com a orientação da facilitadora.

Catarina foi logo se soltando e engatinhando pela sala. Ao meu lado havia uma garotinha simpática, da mesma idade de Catarina, com seus pais. Eu estava sentado num banco bem próximo da família da garotinha. De repente, a bebê se apoiou no banco onde eu estava. Minha neta Catarina viu. E de longe, veio engatinhando, bem apressadinha, subindo nas minhas pernas e parecia dizer: “Esse vovô é meu”.

Ciúme me parece ser um sentimento bem básico. Eu ri, orgulhoso daquela situação. No mesmo dia, comprei para Catarina uma bola vermelha com uma molinha de plástico. A bola vermelha fica quicando no chão em razão da mola. Ela adorou e brincamos bastante. Fiquei dois dias sem aparecer. Sua mamãe me disse que ela vê a bola e fica falando “vovovô”.

Catarina já aponta para pessoas e coisas. Atende a alguns comandos como mandar beijo e dar adeus. Bate palmas e levanta o bracinho com alegria. Já entende a palavra não e fica encabulada. Como estou aposentado tenho oportunidade de acompanhar seu desenvolvimento. Como trabalhava o dia todo e dava aulas à noite, não tive essa oportunidade com meus filhos. Isso faz a experiência de ser avô única e muito prazerosa.

Seguro a bola vermelha e Catarina vem logo engatinhando e rindo em minha direção. Será que ela vai torcer para o boi Garantido? O boizinho branco do coração vermelho? Suas primas torcem para o Caprichoso, por influência dos pais. Poranga é vocábulo indígena que significa bonita. Catarina será nossa primeira bebê poranga do boi Garantido.

  

domingo, 18 de junho de 2023

Manaus, amor e memória DCXXIII


Reclames em uma revista, com destaque para o Hotel Cassina.

 

sexta-feira, 16 de junho de 2023

Representações da Amazônia na relação de Carvajal: devaneio e mistificação 8/8

Zemaria Pinto

 

Mito, o nada que é tudo. A narrativa de Carvajal é a semente da qual brotou o mito, envolto em polêmica e mistérios. Há gente séria que acredita poder achar, ainda hoje, as provas de que Carvajal não aumentou em muito a realidade que vivera. Ao longo do tempo, foram várias as tentativas de esclarecer o mito: um século depois de Orellana, Acuña fala das Amazonas com fé inabalável; Walter Raleigh, no século XVI, que descreveu animais fantásticos na Amazônia e anunciou ter descoberto o El Dorado, situou com precisão as terras das Amazonas; La Condamine, em 1745, acreditando que uma mentira tantas vezes repetida torna-se verdade, admite que “todas essas informações tendem a confirmar que houve neste continente uma república de mulheres que viviam sozinhas, não havendo homens entre elas” (LA CONDAMINE, p. 84-85, apud MAGASICH-AIROLA e DE BEER, p. 185); Alexander Von Humboldt, mais cuidadoso, no início do século XIX, observa que:

 

A fascinação pelo maravilhoso e o desejo de embelezar as descrições do novo continente através de alguns traços extraídos da Antiguidade Clássica contribuíram para que se atribuísse uma grande importância aos primeiros relatos de Orellana. Vários autores pensaram encontrar nos povos recentemente descobertos tudo o que os gregos nos ensinaram sobre a primeira idade do mundo e sobre os costumes dos bárbaros. (HUMBOLDT, p. 127-131, apud MAGASICH-AIROLA e DE BEER, p. 187)

 

O poeta Gonçalves Dias, que andou pela região em missão oficial, em 1861, escreveu um ensaio – A lenda das amazonas – onde tenta demonstrar matematicamente a impossibilidade da existência das amazonas: de 1.000 mulheres, 800 ficariam grávidas; destas, 200 abortariam, ficando apenas 600 a procriar; a maioria a nascer, especialmente nos primeiros anos, é de homens; logo, nasceriam, se muito, apenas cerca de 150 meninas; considerando que cada mulher só iria procriar de 3 em 3 anos, e como as gêmeas teriam que ser exterminadas e deduzindo-se, ainda, as que morressem até os 15 anos e as adultas que sucumbissem de enfermidade, acidente ou em combate, “antes que as primeiras filhas chegassem à idade de poder encurvar o arco, já deixaria de ter existido semelhante república” (DIAS, apud TOCANTINS, p. 23).

O poeta procura explicar o porquê de o mito haver se expandido, contando com a colaboração dos nativos, afirmando que estes

 

Crédulos e mentirosos, amigos de contos e de maravilhas, como crianças respondem muitas vezes no sentido em que supõem que desejamos a resposta, e prestam facilmente o seu testemunho a coisas que nunca viram. (DIAS, apud TOCANTINS, p. 22)

 

O grande poeta do indianismo brasileiro não confiava nos modelos de suas personagens.

A persistência do mito se dá também por meio dos muiraquitãs – um simpático sapinho esculpido em uma pedra verde, uma espécie de jade, que foi encontradiço na região, sem que haja explicação racional para tal, inclusive porque não existe a jazida que poderia fornecer a matéria-prima. O muiraquitã é um amuleto que, reza a lenda, era presenteado pelas mulheres-guerreiras aos pais de suas filhas. Em pleno século XXI, é moda entre as jovens amazonenses o uso desses talismãs, produzidos em escala industrial. Mas essa é uma história fora do nosso escopo, pós-Carvajal. 

Devaneio ou verdade, mito ou mistificação – a relação de Carvajal é o texto fundador da literatura feita no Amazonas. Os seus possíveis excessos fazem parte da nossa história e da nossa memória. Se não é ficção, também não é história – talvez seja um livro de amor: amor pela aventura; amor por seu Capitão; amor por seu Deus; amor pela sua Ordem, da qual ele foi líder influente.

O Brasil e o Amazonas, em particular, devem à memória de Carvajal uma edição nova, traduzida diretamente dos originais, cotejada com as anotações do próprio Orellana, as crônicas de Oviedo e outras obras de vulto que mantiveram uma relação dialógica com Descobrimento do rio de Orellana. Certamente, pouca novidade trará essa nova edição, mas consolidará uma obra que, gravada no bronze da memória, deve ser eternizada. Como o mito que ela fundamentou. 

 

 

REFERÊNCIAS

 

BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. Tradução: Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

BARLETTI, José. Los pueblos amazônicos em tiempos de la llegada de Orellana. Pontifica Universidad Catolica del Perú.

Disponível em: http://red.pucp.edu.pe/ridei/buscador/files/inter82.PDF  

Acesso em 23/11/2010, às 19h00.

BÍBLIA SAGRADA. Coordenador Geral: L. Garmus. Edição Vozes/Círculo do Livro, 1982.

CARVAJAL, Gaspar de. Descobrimento do Rio de Orellana. In: Descobrimentos do Rio das Amazonas. Tradução: C. de Melo-Leitão. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1941.

CHIAMPI, Irlemar. O realismo maravilhoso: forma e ideologia no romance hispano-americano. São Paulo: Perspectiva, 1980.

COLOMBO, Cristóvão. Diários da descoberta da América. Tradução: Milton Persson. Porto Alegre: L&PM, 2010.

FREIRE, Sério Augusto. Conhecendo Análise de discurso – Linguagem, Sociedade e Ideologia. Manaus: Valer, 2006.

GREENBLATT, Stephen. Possessões maravilhosas: o deslumbramento do Novo Mundo. Tradução: Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo: EDUSP, 1996.

HOLANDA, Sergio Buarque de. Visão do paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo: Brasiliense; Publifolha, 2000.

LE GOFF, Jacques. O maravilhoso e o cotidiano no Ocidente Medieval. Tradução: Antonio José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1990.

MAGASICH-AIROLA, Jorge; DE BEER, Jean-Marc. América mágica: quando a Europa da Renascença pensou estar conquistando o Paraíso. Tradução: Regina Vasconcellos. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

MARTINS, Maria Cristina Bohn. Descobrir e redescobrir o Grande Rio das Amazonas. As Relaciones de Carvajal (1542), Alonso de Rojas (1639) e Christóbal de Acuña (1641). In: Revista de História, n° 156. São Paulo: Portal de Revistas USP, 2007.

Disponível em: http://www.revistasusp.sibi.usp.br/pdf/rh/n156/a03n156.pdf 

Acesso em 21/11/2010, às 11h20min.

NEVES, Auricléa Oliveira das. A Amazônia na visão dos viajantes dos séculos XVI e XVII: percurso e discurso. Manaus: Valer, 2011.

ORLANDI, Eni. Análise de Discurso: Princípios & Procedimentos. Campinas: Pontes, 1999.

TOCANTINS, Leandro. O rio comanda a vida: uma interpretação da Amazônia. 7ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1983.

TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: A questão do outro. Tradução: Beatriz Perrone-Moisés. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

______. Introdução à literatura fantástica. Tradução: Maria Clara Correa Castello. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1992.

VICO, Giambattista. Princípios de uma ciência nova. Tradução: Antonio Lázaro de Almeida Prado. São Paulo: Abril, 1974.

 

quinta-feira, 15 de junho de 2023

A poesia é necessária?

 

Hora grande

Onésimo da Silveira (1935-2021)

 

1

O mar sairá

Das nossas ilhas

Das nossas ruas

Das nossas casas

Das nossas almas...

 

0 mar irá para o mar

E limpos finalmente do lodo das algas

E libertos do sal do nosso sorriso de enteados

Seremos frutos de nós mesmos

Nascendo da barriga negra da terra...

 

2

Os náufragos

Do lago da nossa quietação

Erguerão os seus braços de todas as cores

E as suas mãos se fartarão

Da luz de um poente maduro!

 

O negreiro estará perdido na légua do tempo

Porque a alma das nossas vozes

Não morrerá no fundo dos porões...

 

A fome não se alimentará da fome

E voaremos nas asas do Sol

Com o destino na palma da mão!

 

3

Nas feridas do seu parto

As raízes do nosso umbigo beberão a seiva

E no ventre da "mamã-terra"

 

Germinarão as sementes das nossas certezas

E nos embriagaremos da carne dos seus frutos...

 

As crianças nascerão sem metas nos olhos

E as suas mãos sujar-se-ão

Do mel do nosso olhar...

 

As crianças serão crianças!

Negras e loiras e brancas

Serão pétalas da mesma flor...

 

 

quarta-feira, 14 de junho de 2023

terça-feira, 13 de junho de 2023

Salva pelo aplicativo ou pelo santo?

Pedro Lucas Lindoso

 

Todo início de mês de junho, Leopolda, vamos chamá-la assim, desenvolve uma terrível ansiedade. Algumas vezes chega a beirar o pânico. A garota tem vinte anos de idade e nunca teve namorado.

Sabemos que dia doze é dia dos namorados. Todo ano, desde o Ensino Médio perguntam se ela recebeu algum presente. Ela sempre achou que o problema era seu nome esquisito. Apesar do apelido Leo, ela tinha que dizer aos paqueras que seu nome era Leopolda.

Alguém ensinou para Leopolda uma simpatia bastante eficaz: pegue uma imagem de Santo Antônio e coloque de cabeça para baixo na geladeira. Mentalize a chegada do amor da sua vida. Só tire o santo da geladeira quando você encontrar um amor. Caso passe um tempo sem encontrar, reforce o pedido e coloque a imagem no congelador, novamente.

Leopolda ouviu dizer que a simpatia seria mais eficaz se a imagem do santo fosse roubada. Leopolda então dirigiu-se a uma Lojinha de artigos católicos religiosos localizada no Bairro de Aparecida, aqui em Manaus, onde reside.

Entrou na loja muito nervosa. Nunca havia furtado coisa nenhuma. Resolveu comprar uma imagem de Nossa Senhora Aparecida. Quando o vendedor se distraiu ela conseguiu colocar uma pequena imagem de Santo Antônio na bolsa.

Ao chegar em casa, para evitar gozações de seus irmãos, colocou a pequena imagem do santo dentro de um vidro escuro e etiquetou: “Remédio Leopolda. Não mexa”.

Naquela tarde viu uma mensagem pelo whatsapp de uma amiga da faculdade. A mensagem dizia que havia rompido com o namorado de seis meses. A amiga nunca ficava sem namorar e sempre fazia bullying com ela todo ano. Sentiu um alívio. Pelo menos por essa não seria incomodada.

Ligou imediatamente para a colega. Queria saber detalhes. A amiga lhe disse que o rapaz confessou que estava com passagem comprada para o boi de Parintins. Iria sem ela. Um absurdo. Mas não iria ficar só no dia dos namorados. Hoje existem aplicativos de namoro, mana!

Leopolda, entusiasmada, pediu-a para ajudá-la a arrumar um também. E deu certo. Ambas marcaram encontro no Amazonas Shopping. O “match” parece perfeito para ambas. Os rapazes são da mesma faculdade. No caso da Leo, a dúvida é se foi salva pelo aplicativo ou pelo santo.

 

 

domingo, 11 de junho de 2023

Manaus, amor e memória DCXXII

 

Ponte de Ferro Benjamin Constant. E favela...

sexta-feira, 9 de junho de 2023

Representações da Amazônia na relação de Carvajal: devaneio e mistificação 7/8

Zemaria Pinto

 

O mito redivivo. O mito das Amazonas remonta a Heródoto, no século VI a.C.:

 

Nas margens do Thermodon, perto do mar Negro, viviam tribos de mulheres guerreiras, as Amazonas, que tinham invadido uma grande parte do Oriente Próximo, apoderando-se de Éfeso, Esmirna, Pafos e outras cidades. (MAGASICH-AIROLA e DE BEER, p. 155)

 

Virgílio, na Eneida, coloca Pentesileia, a rainha das Amazonas, lutando ao lado dos troianos. Um dos doze trabalhos de Hércules foi tomar o cinto de Hipólita, rainha das Amazonas. Alexandre Magno as visita no Thermodon. Marco Polo, no século XIII da nossa era, dá testemunho do reino de Resmacoron, fronteira com a Índia, onde havia uma ilha habitada exclusivamente por mulheres e outra por homens. Colombo anota em seus Diários notícias sobre a existência de ilhas similares na América – que, então, ele pensava ser a Ásia. Na segunda viagem à América, a frota de Colombo chega a ser atacada por uma “nuvem de flechas” lançadas por “um grupo de mulheres”, nas Antilhas. Antonio Pigafetta, cronista da expedição de Magalhães, também escreve sobre uma ilha só de mulheres. Gonzalo de Oviedo, na sua Historia General y Natural de las Indias, menciona a existência, nas terras do Novo Mundo, de regiões onde as mulheres “são senhores absolutos (...) e praticam armas (...) como essa rainha chamada Orocomay.” De Colombo para cá, nenhum narrativa sobre as amazonas é tão extraordinária quanto a de Carvajal – pois ele, somente ele, as viu (MAGASICH-AIROLA e DE BEER, p. 157-170).   

Mas as amazonas, o eldorado e o país da canela são apenas alguns dos mitos transladados para o continente americano: o Paraíso Terrestre era um dos objetivos de Colombo, que acreditou estar muito próximo a ele; os índios da América foram tomados pelas tribos perdidas de Israel; a Fonte da Juventude foi em vão procurada; ilhas fabulosas e seres fantásticos também povoaram a imaginação de viajantes e cronistas. Para aqueles aventureiros, todas as fantasias poderiam se tornar realidade no Novo Mundo. Adaptando-se a classificação de Vico relativa às três idades pelas quais passou a humanidade, inferimos que os europeus já estavam na idade dos homens, mas não se desvencilhavam da memória maravilhosa das aventuras vividas na idade dos heróis – para tanto, precisavam encontrar um lugar onde ainda se vivia na idade dos deuses (VICO, p. 24).

Continuemos nossa viagem.

Na noite do dia 25 junho, as embarcações ancoraram “já fora de qualquer povoação, em um carvalhal, que havia em uma grande planície, perto do rio” (p. 65). Nesse pouso, resolveu o Capitão interrogar o “índio trombeteiro”, capturado durante a refrega com as amazonas, “porque já o entendia por um vocabulário que havia feito”. Em menos de 24 horas, portanto – sem dormir e, talvez, sem se alimentar, verdadeiramente extenuado –, o intrépido Capitão Orellana ainda tivera forças – e tempo! – para aprender novo idioma.

Após explicar que aquelas mulheres residiam no interior, “a umas sete jornadas da costa”, e por ser o senhor daquelas terras súdito delas, por isso “tinham vindo guardar a costa” (p. 65-66), o índio foi submetido a um interrogatório, onde se sobressai um estilo enxuto e conciso, divergente do Carvajal um tanto prolixo e às vezes confuso com o qual nos acostumamos ao longo da narrativa. Infelizmente, o texto é muito extenso – duas páginas – para ser citado na íntegra. A formação discursiva adotada pelo dominicano consiste num empilhamento de frases, seguindo um padrão muito parecido com o que hoje identificaríamos como um interrogatório policial: “Perguntou o Capitão (...) Respondeu o índio (....)” ou “Perguntou o Capitão (...) Disse o índio (...) Disse mais (...)” (p. 66-67). Como resultado, temos um autêntico inventário dos elementos constitutivos do mito das amazonas. Enumeremo-los, na ordem em que aparecem no texto:

 

1 – aquelas mulheres não são casadas;

2 – vivem no interior, longe da costa;

3 – pelos nomes, o informante sabia de setenta aldeias só de mulheres, e os contou diante de todos;

4 – essas aldeias são de pedra e têm portas;

5 – de uma aldeia a outra há caminhos cercados de um e outro lado e de distância em distância, com guardas, para que ninguém entre sem pagar direitos;

6 – elas engravidam e parem;

7 – elas coabitam com índios, de tempos em tempos;

8 – quando lhes vem o desejo, promovem uma guerra e trazem os homens que lhes agradam;

9 – quando emprenham, mandam-nos de volta às suas terras;

10 – se nascer um menino, o matam e o mandam ao pai;

11 – se é menina, a criam com grande solenidade e a educam nas coisas da guerra;

12 – entre todas as mulheres, há uma que domina e tem todas as demais debaixo da sua mão e jurisdição, a qual se chama Conhori;

13 – há em suas aldeias imensa riqueza de ouro e prata;

14 – as senhoras principais possuem um serviço todo de ouro ou prata, enquanto as plebeias se servem em vasilhas de pau ou de barro;

15 – na capital ou principal cidade, onde reside a senhora Conhori, há cinco casas muito grandes, que são adoratórios e casas dedicadas ao sol, chamadas caranaí;

16 – essas casas são assoalhadas no solo à meia altura e os tetos são forrados de pinturas de diversas cores;

17 – nessas casas, elas têm ídolos de ouro e prata em figura de mulheres, e muitos objetos de ouro e prata para o serviço do sol;

18 – elas andam vestidas de finíssima roupa de lã, porque há nessa terra muitas ovelhas do Peru;

19 – seu trajar é formado por umas mantas apertadas dos seios para baixo, o busto descoberto, e uma espécie de manto, atado na frente por cordões;

20 – usam os cabelos soltos até o chão, e na cabeça, coroas de ouro, da largura de dois dedos;

21– usam como animais de carga uma espécie de camelo e outros animais não identificados, do tamanho de um cavalo, com a pata fendida;

22 – há nos seus domínios duas lagoas de água salgada, de onde tiram sal;

23 – ao pôr do sol, os machos de passagem devem sair da cidade;

24 – as províncias limítrofes lhes são sujeitadas e pagam-lhes tributos;

25 – as nações com as quais fazem guerra – e que lhes garantem a continuidade – são homens altos de corpo e muito brancos;

26 – tudo o que foi referido pelo informante ele viu muitas vezes, como homem vassalo, que ia e vinha diariamente. (p. 66-67)[1]

 

Eximimo-nos de comentar ponto a ponto, por ser ocioso tal detalhamento. Vamos ao que salta aos olhos. As súditas de Conhori dividem-se em setenta aldeias, formadas de casas de pedra, assoalhadas e forradas, onde há muita riqueza de ouro e de prata, metais usados inclusive para a baixela. Todos esses detalhes são índices de civilização. Vestem-se de “finíssima lã”, em modelos muito sensuais – também índices de civilidade, um e outro –, com os cabelos soltos até o chão, sob uma espessa coroa de ouro. Comparando com o que vimos anteriormente, seu figurino de guerra adapta-se em conformidade com a situação: “andam nuas em pelo”, e trazem o cabelo muito comprido “entrançado e enrolado na cabeça”. Outro índice de civilidade, sem o qual um europeu não poderia imaginar poder viver: o sal, que brota de maravilhosas e improváveis lagoas. Finalmente, como poderiam aquelas mulheres tão nobres e formosas procriar com os selvagens acobreados que habitavam as margens do rio de Orellana? O devaneio de Carvajal trata de arranjar-lhes parceiros “altos de corpo e muito brancos”. Mas Carvajal não tirou essas personagens do nada: na segunda parada, quando se construiu o segundo bergantim, ele anotara:

 

Nesse ínterim vieram ver o Capitão quatro índios, tendo de altura um palmo a mais que o mais alto cristão. Eram muito brancos, de cabelos bastos que lhes chegavam até a cintura, com roupa e joias de ouro, e trazendo muita comida. (p. 33)

 

Para o leitor atento, ali se atava mais um fio da trama.

Carvajal, com displicência, parecia não muito entusiasmado com o depoimento do súdito de Conhori:

 

Tudo o que esse índio disse, já nos haviam contado a umas seis léguas de Quito, porque ali falam muito nessas mulheres, e para vê-las vêm muitos índios 1.400 léguas rio abaixo. Assim nos diziam lá em cima os índios, que quem tivesse de descer à terra dessas mulheres tinha de ir rapaz e voltar velho. (p. 67-68)

 

Sergio Buarque de Holanda cita Francisco de Xerez – autor de Verdadera Relación de la Conquista del Perú, impressa em 1534, oito anos antes da aventura liderada por Orellana – que “menciona expressamente as ‘casas do sol’ existentes em toda aquela província”. Algumas dessas casas eram de pedra, chapeadas “não só de prata como de ouro”. Xerez também comenta o farto uso de penas de papagaios como adorno. Holanda completa:

 

Dos caminhos diz também Xerez que eram cercados de taipa dos dois lados e em alguns lugares havia a casa do guarda, encarregado de arrecadar a portagem.[2] Nenhum viajante pode entrar nem sair por outro caminho, levando carga, senão por aquele onde haja guarda, e isso sob pena de morte. Os serviços de prata e ouro seriam frequentes entre a gente principal. (HOLANDA, p. 34)

 

Como autor de um bom enredo, Carvajal usa as histórias ouvidas para dar credibilidade à sua história: o que o índio contava já era sabido de todos; logo, não havia porque duvidar do que ele relata – era apenas uma forma de consolidar, numa única, todas as histórias anteriores. Em outras palavras: o “índio trombeteiro” nem precisava ter falado, para que a história, que o antecede, existisse exatamente como Carvajal a conta.

 

 



[1] Trata-se de um resumo do texto, onde se procurou manter a estrutura frasal e o vocabulário usados pelo autor.

[2] Pedágio.