Amigos do Fingidor

sexta-feira, 9 de junho de 2023

Representações da Amazônia na relação de Carvajal: devaneio e mistificação 7/8

Zemaria Pinto

 

O mito redivivo. O mito das Amazonas remonta a Heródoto, no século VI a.C.:

 

Nas margens do Thermodon, perto do mar Negro, viviam tribos de mulheres guerreiras, as Amazonas, que tinham invadido uma grande parte do Oriente Próximo, apoderando-se de Éfeso, Esmirna, Pafos e outras cidades. (MAGASICH-AIROLA e DE BEER, p. 155)

 

Virgílio, na Eneida, coloca Pentesileia, a rainha das Amazonas, lutando ao lado dos troianos. Um dos doze trabalhos de Hércules foi tomar o cinto de Hipólita, rainha das Amazonas. Alexandre Magno as visita no Thermodon. Marco Polo, no século XIII da nossa era, dá testemunho do reino de Resmacoron, fronteira com a Índia, onde havia uma ilha habitada exclusivamente por mulheres e outra por homens. Colombo anota em seus Diários notícias sobre a existência de ilhas similares na América – que, então, ele pensava ser a Ásia. Na segunda viagem à América, a frota de Colombo chega a ser atacada por uma “nuvem de flechas” lançadas por “um grupo de mulheres”, nas Antilhas. Antonio Pigafetta, cronista da expedição de Magalhães, também escreve sobre uma ilha só de mulheres. Gonzalo de Oviedo, na sua Historia General y Natural de las Indias, menciona a existência, nas terras do Novo Mundo, de regiões onde as mulheres “são senhores absolutos (...) e praticam armas (...) como essa rainha chamada Orocomay.” De Colombo para cá, nenhum narrativa sobre as amazonas é tão extraordinária quanto a de Carvajal – pois ele, somente ele, as viu (MAGASICH-AIROLA e DE BEER, p. 157-170).   

Mas as amazonas, o eldorado e o país da canela são apenas alguns dos mitos transladados para o continente americano: o Paraíso Terrestre era um dos objetivos de Colombo, que acreditou estar muito próximo a ele; os índios da América foram tomados pelas tribos perdidas de Israel; a Fonte da Juventude foi em vão procurada; ilhas fabulosas e seres fantásticos também povoaram a imaginação de viajantes e cronistas. Para aqueles aventureiros, todas as fantasias poderiam se tornar realidade no Novo Mundo. Adaptando-se a classificação de Vico relativa às três idades pelas quais passou a humanidade, inferimos que os europeus já estavam na idade dos homens, mas não se desvencilhavam da memória maravilhosa das aventuras vividas na idade dos heróis – para tanto, precisavam encontrar um lugar onde ainda se vivia na idade dos deuses (VICO, p. 24).

Continuemos nossa viagem.

Na noite do dia 25 junho, as embarcações ancoraram “já fora de qualquer povoação, em um carvalhal, que havia em uma grande planície, perto do rio” (p. 65). Nesse pouso, resolveu o Capitão interrogar o “índio trombeteiro”, capturado durante a refrega com as amazonas, “porque já o entendia por um vocabulário que havia feito”. Em menos de 24 horas, portanto – sem dormir e, talvez, sem se alimentar, verdadeiramente extenuado –, o intrépido Capitão Orellana ainda tivera forças – e tempo! – para aprender novo idioma.

Após explicar que aquelas mulheres residiam no interior, “a umas sete jornadas da costa”, e por ser o senhor daquelas terras súdito delas, por isso “tinham vindo guardar a costa” (p. 65-66), o índio foi submetido a um interrogatório, onde se sobressai um estilo enxuto e conciso, divergente do Carvajal um tanto prolixo e às vezes confuso com o qual nos acostumamos ao longo da narrativa. Infelizmente, o texto é muito extenso – duas páginas – para ser citado na íntegra. A formação discursiva adotada pelo dominicano consiste num empilhamento de frases, seguindo um padrão muito parecido com o que hoje identificaríamos como um interrogatório policial: “Perguntou o Capitão (...) Respondeu o índio (....)” ou “Perguntou o Capitão (...) Disse o índio (...) Disse mais (...)” (p. 66-67). Como resultado, temos um autêntico inventário dos elementos constitutivos do mito das amazonas. Enumeremo-los, na ordem em que aparecem no texto:

 

1 – aquelas mulheres não são casadas;

2 – vivem no interior, longe da costa;

3 – pelos nomes, o informante sabia de setenta aldeias só de mulheres, e os contou diante de todos;

4 – essas aldeias são de pedra e têm portas;

5 – de uma aldeia a outra há caminhos cercados de um e outro lado e de distância em distância, com guardas, para que ninguém entre sem pagar direitos;

6 – elas engravidam e parem;

7 – elas coabitam com índios, de tempos em tempos;

8 – quando lhes vem o desejo, promovem uma guerra e trazem os homens que lhes agradam;

9 – quando emprenham, mandam-nos de volta às suas terras;

10 – se nascer um menino, o matam e o mandam ao pai;

11 – se é menina, a criam com grande solenidade e a educam nas coisas da guerra;

12 – entre todas as mulheres, há uma que domina e tem todas as demais debaixo da sua mão e jurisdição, a qual se chama Conhori;

13 – há em suas aldeias imensa riqueza de ouro e prata;

14 – as senhoras principais possuem um serviço todo de ouro ou prata, enquanto as plebeias se servem em vasilhas de pau ou de barro;

15 – na capital ou principal cidade, onde reside a senhora Conhori, há cinco casas muito grandes, que são adoratórios e casas dedicadas ao sol, chamadas caranaí;

16 – essas casas são assoalhadas no solo à meia altura e os tetos são forrados de pinturas de diversas cores;

17 – nessas casas, elas têm ídolos de ouro e prata em figura de mulheres, e muitos objetos de ouro e prata para o serviço do sol;

18 – elas andam vestidas de finíssima roupa de lã, porque há nessa terra muitas ovelhas do Peru;

19 – seu trajar é formado por umas mantas apertadas dos seios para baixo, o busto descoberto, e uma espécie de manto, atado na frente por cordões;

20 – usam os cabelos soltos até o chão, e na cabeça, coroas de ouro, da largura de dois dedos;

21– usam como animais de carga uma espécie de camelo e outros animais não identificados, do tamanho de um cavalo, com a pata fendida;

22 – há nos seus domínios duas lagoas de água salgada, de onde tiram sal;

23 – ao pôr do sol, os machos de passagem devem sair da cidade;

24 – as províncias limítrofes lhes são sujeitadas e pagam-lhes tributos;

25 – as nações com as quais fazem guerra – e que lhes garantem a continuidade – são homens altos de corpo e muito brancos;

26 – tudo o que foi referido pelo informante ele viu muitas vezes, como homem vassalo, que ia e vinha diariamente. (p. 66-67)[1]

 

Eximimo-nos de comentar ponto a ponto, por ser ocioso tal detalhamento. Vamos ao que salta aos olhos. As súditas de Conhori dividem-se em setenta aldeias, formadas de casas de pedra, assoalhadas e forradas, onde há muita riqueza de ouro e de prata, metais usados inclusive para a baixela. Todos esses detalhes são índices de civilização. Vestem-se de “finíssima lã”, em modelos muito sensuais – também índices de civilidade, um e outro –, com os cabelos soltos até o chão, sob uma espessa coroa de ouro. Comparando com o que vimos anteriormente, seu figurino de guerra adapta-se em conformidade com a situação: “andam nuas em pelo”, e trazem o cabelo muito comprido “entrançado e enrolado na cabeça”. Outro índice de civilidade, sem o qual um europeu não poderia imaginar poder viver: o sal, que brota de maravilhosas e improváveis lagoas. Finalmente, como poderiam aquelas mulheres tão nobres e formosas procriar com os selvagens acobreados que habitavam as margens do rio de Orellana? O devaneio de Carvajal trata de arranjar-lhes parceiros “altos de corpo e muito brancos”. Mas Carvajal não tirou essas personagens do nada: na segunda parada, quando se construiu o segundo bergantim, ele anotara:

 

Nesse ínterim vieram ver o Capitão quatro índios, tendo de altura um palmo a mais que o mais alto cristão. Eram muito brancos, de cabelos bastos que lhes chegavam até a cintura, com roupa e joias de ouro, e trazendo muita comida. (p. 33)

 

Para o leitor atento, ali se atava mais um fio da trama.

Carvajal, com displicência, parecia não muito entusiasmado com o depoimento do súdito de Conhori:

 

Tudo o que esse índio disse, já nos haviam contado a umas seis léguas de Quito, porque ali falam muito nessas mulheres, e para vê-las vêm muitos índios 1.400 léguas rio abaixo. Assim nos diziam lá em cima os índios, que quem tivesse de descer à terra dessas mulheres tinha de ir rapaz e voltar velho. (p. 67-68)

 

Sergio Buarque de Holanda cita Francisco de Xerez – autor de Verdadera Relación de la Conquista del Perú, impressa em 1534, oito anos antes da aventura liderada por Orellana – que “menciona expressamente as ‘casas do sol’ existentes em toda aquela província”. Algumas dessas casas eram de pedra, chapeadas “não só de prata como de ouro”. Xerez também comenta o farto uso de penas de papagaios como adorno. Holanda completa:

 

Dos caminhos diz também Xerez que eram cercados de taipa dos dois lados e em alguns lugares havia a casa do guarda, encarregado de arrecadar a portagem.[2] Nenhum viajante pode entrar nem sair por outro caminho, levando carga, senão por aquele onde haja guarda, e isso sob pena de morte. Os serviços de prata e ouro seriam frequentes entre a gente principal. (HOLANDA, p. 34)

 

Como autor de um bom enredo, Carvajal usa as histórias ouvidas para dar credibilidade à sua história: o que o índio contava já era sabido de todos; logo, não havia porque duvidar do que ele relata – era apenas uma forma de consolidar, numa única, todas as histórias anteriores. Em outras palavras: o “índio trombeteiro” nem precisava ter falado, para que a história, que o antecede, existisse exatamente como Carvajal a conta.

 

 



[1] Trata-se de um resumo do texto, onde se procurou manter a estrutura frasal e o vocabulário usados pelo autor.

[2] Pedágio.