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quinta-feira, 7 de novembro de 2024

A poesia é necessária?

 

O chão do mundo

Thiago de Mello (1926-2022)

 

Rumo nenhum persigo. É quando sigo

as vias do mais trôpego sonhar

ou de fundos e rijos pensamentos,

chego sempre a mim mesmo; o clamor áspero

que me atraiçoa o límpido silêncio,

após ressoar em vão pelas paredes

da gasta e surda concha do infinito,

retorna, feito mágoa, à minha boca.

Não sei dar-me o que busco, se o não tenho.

 

A erva do tempo cresce, suavemente,

não tarda e o chão do mundo me devora.

Por isso quando em mim se faz mais noite,

minha face despida de seus medos

em sua própria treva se contempla,

onde lhe esplende a rude finitude.

 

Em meu ser, resignado, permaneço,

pois se tento fugir-me, eis que me vem

à boca o travo frio do negrume

que existe além de mim, e que me espera.

 


quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

A poesia é necessária?

 

Aprendizagem

Juan Carlos Galeano


 

Com os primeiros estrondos da guerra e buracos

nas paredes, meus pais correram para a floresta.

 

Para me salvar me pintaram com as cores de uma arara

e me deixaram vivendo entre os índios.

 

Meu irmão cresceu na cidade estudando a vida interior

das pedras assoviando música clássica.

 

Quando me trouxeram de volta, meus pais liam os jornais

e a casa brilhava nos espelhos.

 

De minha parte, eu era feliz olhando os informes meteorológicos.



(Tradução: Thiago de Mello)



sexta-feira, 20 de outubro de 2023

Lira da Madrugada – Thiago de Mello 1/15

Zemaria Pinto


 Ficha biobibliográfica

 

Autor: Thiago de Mello

Nome completo: Amadeu Thiago de Mello

Naturalidade: Barreirinha – AM

Nascimento: 30 de março de 1926

Falecimento: 14 de janeiro de 2022

 

Obra poética:

·       Silêncio e palavra (1951)

·       Narciso cego (1952)

·       A lenda da rosa (1983)

·       Vento geral (1960)

·       Faz escuro mas eu canto (1965)

·       A canção do amor armado (1966)

·       Poesia comprometida com a minha e a tua vida (1975)

·       Os estatutos do Homem (1977)

·       Vento geral – poesia 1951/1981 (1981)

·       Horóscopo para os que estão vivos (1984)

·       Mormaço na floresta (1984)

·       Num campo de margaridas (1986)

·       De uma vez por todas (1996)

·       Campo de milagres (1998)

·       Acerto de contas (2015) 


O TESTEMUNHO

Thiago de Mello (1926-2022) 

III – AMAR

                      

 

No campo de silêncio

onde, existindo, sou,

não me retardo. Tardo

 

a ser, e quando sou

– sou pouco. O muito é a dor.

As têmporas estalam.

 

O tempo que ficou,

e, aquém de mim, me espera,

reclama o existir turvo.

 

Então, perdido, torno;

a caminho transbordo,

transvio-me de mim:

 

quando chego, sou pouco.

Crestam-me a vida vã

saudades de ter sido.

 

A dor é eco longínquo

de grito soterrado.

O ser é estrela extinta,

 

lua de treva em céu

já desabado, pedra

lavada pela chuva.

 

Permaneço, contudo,

e comigo a amargura,

quando o amor é o caminho

 

que em mim se faz e faz-me

correr ao campo branco

onde alvoradas sonham,

 

onde me espera o pasto

onde a fome fareja

a dor antiga, eterna:

 

dor esplêndida e dura

dor de ser e de amar.

Porque de amar, perdura.

 

 

E trago dessa viagem

uma treva mais doce

para a noite do mundo.

 

Às vezes é uma aurora

que me aclara também:

e vejo em amargor

 

a face que me coube,

a face dessa noite

noite tão noite e fria

 

que é minha e de meu mundo,

ai, mundo meu não mundo,

perdido, em pranto, e pouco.

 

O muito em mim, e grande,

e sofredor grandioso

mesmo o coração:

        pois nele cabe Deus.

 

Na história da literatura amazonense Thiago de Mello ocupa uma posição singular: seu livro Silêncio e Palavra, de 1951, saudado pela nata da crítica brasileira como a mais grata revelação da Geração de 45, coloca a literatura amazonense no mapa da literatura brasileira. Mesmo morando no Rio de Janeiro, nunca perdeu contato com sua terra e, a despeito de realizar uma literatura universal, sua condição de jovem cabocloum jungle boy da poesia – despertava o interesse de mestres como Manuel Bandeira, Otto Maria Carpeaux, Tristão de Athayde e Gilberto Freyre, entre outros. O pessoal que, três anos depois, iria fundar o Clube da Madrugada ainda ensaiava seus primeiros passos quando Thiago obtinha reconhecimento nacional. Até que ponto isso estimulou os que aqui ficaram? No mínimo, abriu-lhes a perspectiva do aeroporto, incutindo-lhes a confiança de que também eles poderiam voar alto. Foi o que fizeram os participantes da “caravana”, que em 1951 e 1953 empreenderam viagens procurando saber o que afinal se produzia no restante do país.

A poesia de Thiago de Mello tem três fases distintas: a primeira, marcadamente lírica e existencialista; a segunda, de cunho social e político; a terceira, reunindo características das duas anteriores, traz à tona a preocupação com a saúde do planeta. Em resumo, uma poesia que começa intimista, voltada ao interior do poeta, evolui para uma poesia de interesse coletivoinicialmente, com relação ao país, que passou mais de 20 anos em regime de exceção, e, na fase atual, com relação a todo o planeta. Nesta, além da abordagem sobre o meio ambiente, quando o poeta se transforma em guerreiro defensor da floresta, persiste a inquietação política e social.

O poema “O testemunho” está inserido na primeira fase, como parte da coleção de poemas O andarilho e a manhã (1953-1955), inserido em Vento Geral, volume que reúne 30 anos da poesia de Thiago de Mello, de 1951 a 1981. O poema, na verdade, divide-se em três partes: “Ser”, “Ter” e “Amar”. Vamos analisar com mais detalhes a última, mas, para sua melhor compreensão, façamos um breve relato sobre as primeiras. O poema relaciona o fazer poético com uma predestinação divina: o poeta não escolhe, é escolhido. Mas isso é dito por palavras formando imagens nem sempre claras ao leitor menos atento. EmSer”, ele ouve o chamamento e sua reação é de recusa, mas é inútil: o poeta alimenta-se de “dor e silêncio”, no campoonde pastam manhãs” – ele mesmo. Thiago de Mello dá uma conotação metafísica para explicar o que o vulgarmente chamamos inspiração. A segunda parte do poema, “Ter”, mostra, sob alta tensão poética, a recompensa por essa escolha: “dor sofrida é salário”; mais adiante: “com essa dor se cunha / a moeda em cuja efígie / vê-se o perfil dos anjos”. O ofício do poeta é construir a manhã – “envolta em cânticos” – para se contrapor à “noite do mundo”.

Amar” é a síntese dialética desse movimento entre o ser e o ter. O poeta inicia falando da dificuldade para criar: “no campo de silêncio... / tardo / a ser, e quando sou / – sou pouco. O muito é a dor”. As estrofes seguintes metaforizam essa dor da criação: “lua de treva em céu / desabado, pedra / lavada pela chuva”. Mas a luta não é de todo vã, “pois a dor antiga, eterna... / dor de ser e de amar” permite ao poeta trazer dessa viagem ao âmago de si “uma treva mais doce / para a noite do mundo” – e às vezes uma aurora que o aclara também. ele percebe – humilde, mas amargurado – que pouco avançara na construção da manhã. Consola-o, no entanto, saber que o que há de grande em si, inclusive de grandioso sofrer, é seu coração, “pois nele cabe Deus”.

Essa conclusão pode parecer decepcionante, do ponto de vista estético, mas devemos analisá-la sob a perspectiva do homem e não do artista, pois é este que, desde a primeira parte do poema, se nos apresenta, ao tentar fugir do chamado da poesia. A um poema frustrado, o poeta-artista reagiria como Drummond: “Lutar com palavras / é a luta mais vã. / Entanto lutamos / mal rompe a manhã”. O poeta-homem, contudo, se recolhe piedosamente em suas orações, pedindo forças renovadas – para continuar tentando, ou quem sabe, parar, de uma vez por todas. As preces de Thiago de Mello, ao que parece, foram para continuar construindo manhãs – o que ele faz com maestria há mais de 60 anos.

                                          *******************

Este é o primeiro de uma série de 15 textos de breves análise de poemas, extraídos do livro Lira da Madrugada, que comemorou os 60 anos do Clube da Madrugada. Junto com o livro, saiu um CD, com as músicas que Mauri Mrq compôs para os poemas e que hoje podem ser ouvidas no YouTube: 


Clique sobre a figura, para ter acesso ao YouTube.



quinta-feira, 30 de março de 2023

A poesia é necessária?

 

Silêncio e palavra

Thiago de Mello (1926-2022)

 

I

A couraça das palavras

protege nosso silêncio

e esconde aquilo que somos.

 

Que importa falarmos tanto?

Apenas repetiremos.

 

Ademais, nem são palavras.

Sons vazios de mensagem,

são como a fria mortalha

do cotidiano morto.

Como pássaros cansados,

que não encontraram pouso

certamente tombarão.

 

Muitos verões se sucedem:

o tempo madura os frutos,

branqueia nossos cabelos.

Mas o homem noturno espera

a aurora de nossa boca.

 

II

Se mãos estranhas romperem

a veste que nos esconde,

acharão uma verdade

em forma não revelável.

(E os homens têm olhos sujos,

não podem ver através.)

 

Mas um dia chegará

em que a oferenda dos deuses,

dada em forma de silêncio,

em palavra transfaremos.

 

E se porventura a dermos

ao mundo, tal como a flor

que se oferta – humilde e pura –

teremos então cumprido

a missão que é dada ao poeta.

E como são onda e mar,

seremos palavra e homem.


Hoje, 30 de março, Thiago de Mello estaria completando 97 anos.

 

domingo, 15 de janeiro de 2023

Manaus, amor e memória DCI

 

Thiago de Mello, em 20.01.1955, toma posse na Cadeira 29 da
Academia Amazonense de Letras.

O nome desta seção  Manaus, amor e memória  
toma emprestado o título de um dos livros de Thiago de Mello.

 

sábado, 14 de janeiro de 2023

Um ano sem Thiago de Mello

 

Thiago de Mello (30/03/1926 – 14/01/2022).
À margem do rio Andirá. Foto de Alberto César Araújo. 


quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

A poesia é necessária?

 

Lição de escuridão

Thiago de Mello (1926-2022)

 

 

Caboclo companheiro meu de várzea,

contigo cada dia um pouco aprendo

as ciências desta selva que nos une.

 

Contigo, que me ensinas o caminho dos ventos,

me levas a ler, nas lonjuras do céu,

os recados escritos pelas nuvens,

me avisas do perigo dos remansos

e quando devo desviar de viés a proa da canoa

para varar as ondas de perfil.

 

Sabes o nome e o segredo de todas as árvores,

a paragem calada que os peixes preferem

quando as águas começam a crescer.

Pelo canto, a cor do bico, o jeito de voar,

identificas todos os pássaros da selva.

Sozinho (eu mais Deus, tu me explicas).

atravessas a noite no centro da mata,

corajoso e paciente na tocaia da caça.

a traição dos felinos não te vence.

 

Contigo aprendo as leis da escuridão,

quando me apontas na distância da margem,

viajando na noite sem estrelas,

a boca (ainda não consigo ver) do Lago Grande

de onde me fui pequenino e te deixei.

 

De novo no chão da infância,

contigo aprendo também

que ainda não tens olhos para ver

as raízes de tua vida escura,

não sabes quais são os dentes que te devoram

nem os cipós que te amarram à servidão.

 

Nos teus olhos opacos

aprendo o que nos distingue.

Já repartes comigo a ciência e a paciência.

Quero contigo repartir a esperança,

estrela vigilante em minha fronte

e em teu olhar apenas um tição

encharcado de engano e cativeiro.

 

Barreirinha, 1981.



quinta-feira, 29 de setembro de 2022

A poesia é necessária?

 

O poema abaixo foi escrito em 1966, em plena ditadura militar. O voto fora usurpado ao povo. Hoje, tem muita gente com saudades desse tempo. Mas, o voto é nossa arma para que as trevas não voltem, jamais.

 

 

A canção do amor armado

Thiago de Mello (1926-2022)

 

 

 

Vinha a manhã no vento do verão,

e de repente aconteceu.

Melhor

é não contar quem foi nem como foi,

porque outra história vem, que vai ficar.

Foi hoje e foi aqui, no chão da pátria,

onde o voto, secreto como o beijo

no começo do amor, e universal

como o pássaro voando — sempre o voto

era um direito e era um dever sagrado.

 

De repente deixou de ser sagrado,

de repente deixou de ser direito,

de repente deixou de ser, o voto.

Deixou de ser completamente tudo.

Deixou de ser encontro e ser caminho,

deixou de ser dever e de ser cívico,

deixou de ser apaixonado e belo

e deixou de ser arma — de ser a arma,

porque o voto deixou de ser do povo.

 

Deixou de ser do povo e não sucede,

e não sucedeu nada, porém nada?

 

De repente não sucede.

Ninguém sabe nunca o tempo

que o povo tem de cantar.

Mas canta mesmo é no fim.

Só porque não tem mais voto,

o povo não é por isso

que vai deixar de cantar,

nem vai deixar de ser povo.

 

Pode ter perdido o voto,

que era sua arma e poder.

Mas não perdeu seu dever

nem seu direito de povo,

que é o de ter sempre sua arma,

sempre ao alcance da mão.

 

De canto e de paz é o povo,

quando tem arma que guarda

a alegria do seu pão.

Se não é mais a do voto,

que foi tirada à traição,

outra há de ser, e qual seja

não custa o povo a saber,

ninguém nunca sabe o tempo

que o povo tem de chegar.

 

O povo sabe, eu não sei.

Sei somente que é um dever,

somente sei que é um direito.

Agora sim que é sagrado:

cada qual tenha sua arma

para quando a vez chegar

de defender, mais que a vida,

a canção dentro da vida,

para defender a chama

de liberdade acendida

no fundo do coração.

 

Cada qual que tenha a sua,

qualquer arma, nem que seja

algo assim leve e inocente

como este poema em que canta

voz de povo — um simples canto

de amor.

Mas de amor armado.

 

Que é o mesmo amor. Só que agora

que não tem voto, amor canta

no tom que seja preciso

sempre que for na defesa

do seu direito de amar.

 

O povo, não é por isso

que vai deixar de cantar.

 

Rio, 6 de fevereiro, 1966