Amigos do Fingidor

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

A poesia é necessária?

 

O poema abaixo foi escrito em 1966, em plena ditadura militar. O voto fora usurpado ao povo. Hoje, tem muita gente com saudades desse tempo. Mas, o voto é nossa arma para que as trevas não voltem, jamais.

 

 

A canção do amor armado

Thiago de Mello (1926-2022)

 

 

 

Vinha a manhã no vento do verão,

e de repente aconteceu.

Melhor

é não contar quem foi nem como foi,

porque outra história vem, que vai ficar.

Foi hoje e foi aqui, no chão da pátria,

onde o voto, secreto como o beijo

no começo do amor, e universal

como o pássaro voando — sempre o voto

era um direito e era um dever sagrado.

 

De repente deixou de ser sagrado,

de repente deixou de ser direito,

de repente deixou de ser, o voto.

Deixou de ser completamente tudo.

Deixou de ser encontro e ser caminho,

deixou de ser dever e de ser cívico,

deixou de ser apaixonado e belo

e deixou de ser arma — de ser a arma,

porque o voto deixou de ser do povo.

 

Deixou de ser do povo e não sucede,

e não sucedeu nada, porém nada?

 

De repente não sucede.

Ninguém sabe nunca o tempo

que o povo tem de cantar.

Mas canta mesmo é no fim.

Só porque não tem mais voto,

o povo não é por isso

que vai deixar de cantar,

nem vai deixar de ser povo.

 

Pode ter perdido o voto,

que era sua arma e poder.

Mas não perdeu seu dever

nem seu direito de povo,

que é o de ter sempre sua arma,

sempre ao alcance da mão.

 

De canto e de paz é o povo,

quando tem arma que guarda

a alegria do seu pão.

Se não é mais a do voto,

que foi tirada à traição,

outra há de ser, e qual seja

não custa o povo a saber,

ninguém nunca sabe o tempo

que o povo tem de chegar.

 

O povo sabe, eu não sei.

Sei somente que é um dever,

somente sei que é um direito.

Agora sim que é sagrado:

cada qual tenha sua arma

para quando a vez chegar

de defender, mais que a vida,

a canção dentro da vida,

para defender a chama

de liberdade acendida

no fundo do coração.

 

Cada qual que tenha a sua,

qualquer arma, nem que seja

algo assim leve e inocente

como este poema em que canta

voz de povo — um simples canto

de amor.

Mas de amor armado.

 

Que é o mesmo amor. Só que agora

que não tem voto, amor canta

no tom que seja preciso

sempre que for na defesa

do seu direito de amar.

 

O povo, não é por isso

que vai deixar de cantar.

 

Rio, 6 de fevereiro, 1966