Zemaria Pinto
Escrito
a partir da exposição feita no programa Leituras Compartilhadas,
produzido por Dílson Lages Monteiro, sobre o livro A espiral crítica, de
Peron Rios.
Minha
participação centra-se no ensaio “Cecília Meireles: confissão e impostura”, do
livro A espiral crítica, do professor Peron Rios.[1]
Minha proposta é fazer um contraponto ao ensaio citado, mas não de cunho
crítico, divergente; muito pelo contrário: o ensaio de Peron Rios é instigante,
muito vivo em termos de reflexão, e, o que é mais importante, muito bem
fundamentado. Mas, considerando o aspecto pedagógico desta discussão, e
conscientes, todos nós, de que a obra de arte – e a poesia, em particular – tem
múltiplas possibilidades de leituras e mesmo múltiplos significados, farei uma
leitura complementar do poema “Canção”, de Cecília Meireles (1901-1964),
utilizando alguns fundamentos usados no ensaio em contraponto, buscando ampliar
a polifonia crítica da obra da poeta.
O poema
em tela está no livro Viagem, publicado em 1939, vencedor do prêmio de poesia
da Academia Brasileira de Letras, no ano anterior. É o primeiro livro
reconhecido pela autora, posto que cinco livros publicados entre 1919 e 1937
não foram reeditados e nem relacionados pela autora na primeira edição de sua Obra
Poética, em 1958, dirigida por Afrânio Coutinho.[2]
A publicação da Poesia Completa em dois volumes, festejando o centenário
de nascimento da autora, organizada por Antonio Carlos Secchin, traz à luz não
só esses textos esquecidos, mas outros cinco, datados do mesmo intervalo, jamais
publicados antes.[3]
O
primeiro ponto a discutir é a presença da música na poesia de Cecília Meireles.
São muitos os poemas chamados “Canção” ou “Cantiga” – com ou sem adjetivo.
Outros poemas evocam a música, como “Agitato”, “Berceuse”, “Noturno”, “Balada”,
“Serenata”. Um de seus livros anteriores à Viagem chama-se Cânticos
(1927). Outros títulos relacionados à música: Vaga Música (1942), Doze
Noturnos de Holanda (1952), Pequeno Oratório de Santa Clara (1955), Canções
(1956) e Oratório de Santa Maria Egipcíaca (1996, escrito em 1957).
O livro
Viagem é repleto de referências à música. Vejamos alguns títulos de
poemas: “Música”, “Serenata” (dois títulos), “A última cantiga”, “Canção” (três
títulos), “Cantiguinha”, “Guitarra”, “Valsa”, “Noturno” (dois títulos),
“Cantiga” (três títulos) e “Cantar”.
Mas a
música não está só nos títulos, ela está entranhada nos poemas, como podemos
ver nestas amostras:
Pousa
sobre esses espetáculos infatigáveis
uma
sonora ou silenciosa canção:
flor do
espírito, desinteressada e efêmera.
(“Epigrama
n° 1”)
Toca
essa música de seda, frouxa e trêmula,
que apenas embala a noite e balança as
estrelas noutro mar.
(“Anunciação”)
E aqui
estou cantando.
Um
poeta é sempre irmão do vento e da água:
deixa
seu ritmo por onde passa.
(“Discurso”)
Desenrolei
de dentro do tempo a minha canção:
não
tenho inveja às cigarras: também vou morrer de cantar.
(“Aceitação”)
Que música
embala a minha música que te embala?
(“Desamparo”)
Viagem foi publicado em Lisboa e é dedicado
“A meus amigos portugueses”. Peron Rios lembra, no seu ensaio, que “as canções
são uma herança da poesia portuguesa, mais precisamente das cantigas de amigo,
nas quais as mulheres lamentavam clandestinamente suas perdas amorosas” (p.
214).
Está em
Viagem o poema mais popular de Cecília Meireles: “Motivo”, sua poética
pessoal, que é uma reafirmação da música em sua obra.
Eu
canto porque o instante existe
e a
minha vida está completa.
Não sou
alegre nem sou triste:
sou
poeta.
Irmão
das coisas fugidias,
não
sinto gozo nem tormento.
Atravesso
noites e dias
no
vento.
Se
desmorono ou se edifico,
se
permaneço ou me desfaço,
– não
sei, não sei. Não sei se fico
ou
passo.
Sei que
canto. E a canção é tudo.
Tem
sangue eterno a asa ritmada.
E um
dia sei que estarei mudo:
– mais
nada.
Na
sequência, vamos ler o poema “Canção”, objeto da análise de Peron Rios, no
ensaio “Cecília Meireles: confissão e impostura”, lembrando que, como o livro
tem três poemas com o mesmo título, vamos nos referir a ele, considerando a
sequência do livro, como “Canção I”.
Pus o meu
sonho num navio
e o
navio em cima do mar;
–
depois, abri o mar com as mãos,
para o
meu sonho naufragar.
Minhas
mãos ainda estão molhadas
do azul
das ondas entreabertas,
e a cor
que escorre de meus dedos
colore
as areias desertas.
O vento
vem vindo de longe,
a noite
se curva de frio;
debaixo
da água vai morrendo
meu
sonho, dentro de um navio...
Chorarei
quanto for preciso,
para
fazer com que o mar cresça,
e o meu
navio chegue ao fundo
e o meu
sonho desapareça.
Depois,
tudo estará perfeito:
praia
lisa, águas ordenadas,
meus
olhos secos como pedras
e as
minhas duas mãos quebradas.
A
classificação mais comum à poesia de Cecília Meireles tem sido um vago
Neossimbolismo, inserido no Modernismo. A sua Poética, “Motivo”, é uma
afirmação do domínio que o eu empírico tem sobre sua poesia: a poesia do
instante tornado em canção – e até emudecer, ele assevera que “não sou alegre
nem sou triste; (...) não sinto gozo nem tormento; (...) não sei se fico ou
passo”. Se o poeta cabe nessa definição, concluímos pela racionalidade de sua
criação. Isso é um patamar acima do Simbolismo, mesmo pespegado do prefixo
“neo” – inclusive com relação à musicalidade: sua harmonia é dissonante. Peron
Rios explica isso, referindo-se ao poema “Canção I”:
Nessa canção, apesar do metro fixar-se em oito
unidades silábicas, o ritmo oscila, pois a cadência se alterna entre as várias
sílabas do verso. Essa constância ondulatória, somada aos sons de maciez em
todo o texto, não destoa do barco ao balanço do mar, ou do que ele, mar,
significa. A música não contradiz a imagem. E nem o pensamento: afinal, a
melancolia é essa calma aparente, como o azul do mar é ardiloso. A placidez da
superfície esconde uma turbulência discreta, um mundo de criaturas por debaixo
se rivalizando sem cessar. (p. 216)
Se a
música é dissonante, o que dizer das imagens produzidas pelo poema? Abstraindo-se
que a estrutura do poema é a soma de ritmo e melodia, mais imagens e ideias (“a
dança do intelecto entre as palavras”, como pregava Pound), Peron Rios,
referindo-se à “Canção I”, diz que “existe no poema uma afinidade subliminar
entre o eu e o sonho” (p. 217). E, de fato, na “Canção III” há um paralelo
intertextual com a primeira canção:
No desequilíbrio dos mares,
as proas giraram sozinhas...
(...)
Quando as ondas te carregaram,
meus olhos, entre águas e areias,
cegaram como os das estátuas,
a tudo quanto existe alheias.
Minhas mãos pararam sobre o ar
e endureceram junto ao vento,
e perderam a cor que tinham
e a lembrança do movimento.
O
primeiro poema começa com o mar em desequilíbrio (“– depois, abri o mar com as
mãos”), situação análoga à do terceiro poema. Por outra, os dois últimos versos
do primeiro poema (“meus olhos secos como pedras / e as minhas duas mãos
quebradas”) são detalhados nas estrofes três e quatro do terceiro poema,
reproduzidas acima.
O
devaneio é uma expressão do inconsciente. O poeta registra essa expressão, sem
censuras, ensinam os manuais especializados. Mas, ao poeta é facultado
construir seus devaneios, não fosse ele um fingidor – é disso que trata o poema
“Motivo”. E o que temos na “Canção I”, complementada, em paralelo, na “Canção
III” é uma sucessão de quadros surrealistas criados pelo eu lírico, que busca esquecer
seus sonhos (de juventude, talvez), valendo-se da imagem de um navio que
naufraga num desequilíbrio provocado pelas suas próprias mãos, metáfora de
decisões equivocadas. O naufrágio não é, portanto, obra do acaso ou do destino,
mas uma decisão consciente do eu lírico.
A
hipérbole “chorarei quanto for preciso, / para fazer com que o mar cresça”,
confirma que a decisão é sim consciente e que o devaneio é uma construção
estética. O resultado dessa construção, entretanto, tem uma consequência
trágica: apesar dos olhos secos de lágrimas (como pedras), as mãos (a metonímia
perfeita para colocar o sonho no navio e o navio em cima do mar – e depois
abrir o mar) as mãos, eu dizia, se quebram (como pedras) e deixam o eu lírico
impotente, o que leva à hipérbole da segunda estrofe, na “Canção III”:
Eu te esperei todos os séculos,
sem desespero e sem desgosto,
e morri de infinitas mortes,
guardando sempre o mesmo rosto.
A
espiral surrealista de Cecília nos remete, dialogicamente, a outro poema de Viagem,
“Retrato”, em que os elementos “olhos” e “mãos” são os mesmos das duas canções
antes referidas, para concluir:
– Em que espelho ficou perdida
a minha face?
O eu
lírico posta-se diante de espelhos duplos que se multiplicam em outros
espelhos, indefinidamente, mas onde ele não se identifica porque esse devaneio
não lhe pertence: cabe ao leitor tentar se reconhecer.