Amigos do Fingidor

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Um ponto em comum com o Bacellar

Hiram Lopes 


Luiz Bacellar,

nosso poeta,

nascido e falecido em

 dois setembros

 

 A curiosidade com certeza é um dos motivos que movem a humanidade na construção das civilizações. Diariamente somos instigados por eventos que nos aguçam o interesse em conhecer melhor o que ocorre no mundo.

Certa vez encontrei um amigo que é muito religioso e na rápida conversa que mantivemos ele mencionou que estava lendo o livro Cidade Antiga. Estava entusiasmado com a leitura pois o livro relatava a origem das religiões. Fiquei interessado, mas não o suficiente para procurar ler o livro e o assunto caiu no esquecimento.

Alguns meses depois encontrei em uma sala de espera um juiz direito que havia sido meu colega de trabalho. Estava lendo justamente o livro Cidade Antiga e puxei conversa sobre isso. Ele relatou que estava fazendo um mestrado e o livro fazia parte do programa porque relatava a origem do Direito relacionado à propriedade privada.

Pronto, claro que fiquei extremamente interessado nesse livro que possui vieses de diferentes interesses. Comprei um exemplar e comecei a ler imediatamente. O livro foi escrito por um historiador francês no final do século XIX e inaugurou um novo método de estudar a história da Grécia e Roma antigas, baseado na literatura produzida por essas civilizações.

Em resumo, restringindo-me aos dois temas de interesses de meus amigos, o que teria acontecido no início era que os antigos povos que deram origem aos gregos acreditavam que as pessoas ao morrerem passavam a habitar um mundo espiritual paralelo de onde poderiam ajudar os que continuavam vivos. Eram considerados santos.  Para isso precisavam ser cultuados e lembrados permanentemente. Os corpos eram enterrados com cerimônias dentro das terras de propriedade do clã, que eram então consideradas sagradas e não pertenciam àquela família então vivente, mas sim a todos os ancestrais já falecidos, os santos.

Eram criados altares dentro das habitações para cultuar e celebrar esses santos familiares. Uma chama ficava permanentemente acesa em sinal da dedicação eterna. Bebidas e alimentos eram oferecidos aos santos. Cada família tinha seus próprios cânticos, preces e ritos, embora cultuassem crenças comuns relacionadas à origem do mundo e à moral e costumes.

Aconteceu que o progresso encontrou obstáculos nessas crenças porque não era possível abrir estradas, criar prédios, ou dar outro uso para essas terras porque todos as consideravam sagradas. Logo a situação tornou-se muito incômoda e a inquietação tomou conta de todos. Mas alguém bastante sábio, vendo a necessidade de mudança, sugeriu a criação de terras comuns onde os restos mortais dos santos seriam transladados, dando origem aos cemitérios. Com isso foi possível a venda, a troca, a doação, a invasão, a desapropriação dessas propriedades. Pode-se imaginar que toda essa atividade com certeza gerou atritos e injustiças, dando início assim à criação de leis específicas. Foi esta a origem do Direito relacionado à propriedade privada.

Por outro lado, com o distanciamento das famílias das sepulturas dos seus santos, houve progressivamente uma frouxidão nos laços dessas crenças familiares e uma predominância das crenças comuns trazendo mais força às religiões universais. Foi esta então a origem das religiões.

Eu estava entusiasmado com a leitura do livro. Era como se fosse uma epifania. Comecei a comentar com os familiares que ficaram inicialmente interessados, mas logo as preocupações domésticas desviavam a atenção e o interesse desaparecia. Conversava com os colegas de trabalho, mas eles pareciam estranhar meu interesse por um assunto tão extemporâneo. Não viam muita conexão com o dia a dia.

Enquanto continuava a leitura do livro me sentia cada vez mais envolvido naquelas revelações. Ficava absorto tentando identificar nos dias de hoje vestígios daqueles tempos. Me lembrei que os jornalistas muitas vezes chamam os cemitérios de Campo Santo. Quanto mais me envolvia na leitura mais me sentia só. Um tipo de solidão não de todo ruim, mas que incomodava um pouco.

Aconteceu de ir, na hora do almoço, a uma agência bancária que fica em um dos shoppings da cidade. Após resolver o problema na agência, fui até uma lanchonete com ares árabes, sentei em uma mesa de quatro lugares e pedi dois quibes.

Logo chegou o Bacellar e sentou na cadeira diametralmente oposta à minha.

– Vou sentar aqui para um não atrapalhar o outro.

Quem o conheceu pode imaginar a entonação da frase. Foi como se Sua Majestade não tivesse outra opção e logo estabelecia as fronteiras entre as partes. Eu já havia conversado com ele outras vezes, mas sempre acreditei que não se lembrava de mim e nem sabia meu nome. Ele me parecia sempre inibidor.

Fiquei um pouco atônito e percebi um tanto envergonhado que tinha perdido a presença de espírito. Então me lembrei de súbito que meu espírito estava voltado para as leituras e falei:

– Estou lendo o livro Cidade Antiga.

Fiz um breve resumo da temática e esperei ele falar.

A Cidade Antiga, de Fustel de Coulanges. Um livro fundamental. Todo mundo deveria ler. Já li duas vezes. Em francês.

Me senti no momento aliviado daquele sentimento de solidão, um tanto agradável confesso, que me acometia. Logo, um orgulho juvenil me encheu o peito: tenho algo em comum com o poeta.

Hoje quando bebo uma cachacinha sempre verto um pouco no chão.

– Para o meu santo Bacellar.

Luiz Bacellar em dois momentos.
Fonte: https://www.amazonamazonia.com.br/