Hiram Lopes
Luiz Bacellar,
nosso poeta,
nascido e falecido em
dois setembros
Certa vez encontrei um
amigo que é muito religioso e na rápida conversa que mantivemos ele mencionou
que estava lendo o livro Cidade Antiga.
Estava entusiasmado com a leitura pois o livro relatava a origem das religiões.
Fiquei interessado, mas não o suficiente para procurar ler o livro e o assunto
caiu no esquecimento.
Alguns meses depois
encontrei em uma sala de espera um juiz direito que havia sido meu colega de
trabalho. Estava lendo justamente o livro Cidade
Antiga e puxei conversa sobre isso. Ele relatou que estava fazendo um
mestrado e o livro fazia parte do programa porque relatava a origem do Direito
relacionado à propriedade privada.
Pronto, claro que fiquei
extremamente interessado nesse livro que possui vieses de diferentes
interesses. Comprei um exemplar e comecei a ler imediatamente. O livro foi
escrito por um historiador francês no final do século XIX e inaugurou um novo
método de estudar a história da Grécia e Roma antigas, baseado na literatura
produzida por essas civilizações.
Em resumo,
restringindo-me aos dois temas de interesses de meus amigos, o que teria
acontecido no início era que os antigos povos que deram origem aos gregos
acreditavam que as pessoas ao morrerem passavam a habitar um mundo espiritual
paralelo de onde poderiam ajudar os que continuavam vivos. Eram considerados santos. Para isso precisavam ser cultuados e
lembrados permanentemente. Os corpos eram enterrados com cerimônias dentro das
terras de propriedade do clã, que eram então consideradas sagradas e não
pertenciam àquela família então vivente, mas sim a todos os ancestrais já
falecidos, os santos.
Eram criados altares
dentro das habitações para cultuar e celebrar esses santos familiares. Uma
chama ficava permanentemente acesa em sinal da dedicação eterna. Bebidas e
alimentos eram oferecidos aos santos. Cada família tinha seus próprios
cânticos, preces e ritos, embora cultuassem crenças comuns relacionadas à
origem do mundo e à moral e costumes.
Aconteceu que o progresso
encontrou obstáculos nessas crenças porque não era possível abrir estradas,
criar prédios, ou dar outro uso para essas terras porque todos as consideravam
sagradas. Logo a situação tornou-se muito incômoda e a inquietação tomou conta
de todos. Mas alguém bastante sábio, vendo a necessidade de mudança, sugeriu a
criação de terras comuns onde os restos mortais dos santos seriam transladados,
dando origem aos cemitérios. Com isso foi possível a venda, a troca, a doação,
a invasão, a desapropriação dessas propriedades. Pode-se imaginar que toda essa
atividade com certeza gerou atritos e injustiças, dando início assim à criação
de leis específicas. Foi esta a origem do Direito relacionado à propriedade
privada.
Por outro lado, com o
distanciamento das famílias das sepulturas dos seus santos, houve
progressivamente uma frouxidão nos laços dessas crenças familiares e uma
predominância das crenças comuns trazendo mais força às religiões universais.
Foi esta então a origem das religiões.
Eu estava entusiasmado
com a leitura do livro. Era como se fosse uma epifania. Comecei a comentar com
os familiares que ficaram inicialmente interessados, mas logo as preocupações
domésticas desviavam a atenção e o interesse desaparecia. Conversava com os
colegas de trabalho, mas eles pareciam estranhar meu interesse por um assunto
tão extemporâneo. Não viam muita conexão com o dia a dia.
Enquanto continuava a
leitura do livro me sentia cada vez mais envolvido naquelas revelações. Ficava
absorto tentando identificar nos dias de hoje vestígios daqueles tempos. Me
lembrei que os jornalistas muitas vezes chamam os cemitérios de Campo Santo.
Quanto mais me envolvia na leitura mais me sentia só. Um tipo de solidão não de
todo ruim, mas que incomodava um pouco.
Aconteceu de ir, na hora
do almoço, a uma agência bancária que fica em um dos shoppings da cidade. Após
resolver o problema na agência, fui até uma lanchonete com ares árabes, sentei
em uma mesa de quatro lugares e pedi dois quibes.
Logo chegou o Bacellar e
sentou na cadeira diametralmente oposta à minha.
– Vou sentar aqui para um
não atrapalhar o outro.
Quem o conheceu pode
imaginar a entonação da frase. Foi como se Sua Majestade não tivesse outra
opção e logo estabelecia as fronteiras entre as partes. Eu já havia conversado
com ele outras vezes, mas sempre acreditei que não se lembrava de mim e nem
sabia meu nome. Ele me parecia sempre inibidor.
Fiquei um pouco atônito e
percebi um tanto envergonhado que tinha perdido a presença de espírito. Então
me lembrei de súbito que meu espírito estava voltado para as leituras e falei:
– Estou lendo o livro Cidade Antiga.
Fiz um breve resumo da
temática e esperei ele falar.
– A Cidade Antiga, de Fustel de Coulanges. Um livro fundamental. Todo
mundo deveria ler. Já li duas vezes. Em francês.
Me senti no momento
aliviado daquele sentimento de solidão, um tanto agradável confesso, que me
acometia. Logo, um orgulho juvenil me encheu o peito: tenho algo em comum com o
poeta.
Hoje quando bebo uma
cachacinha sempre verto um pouco no chão.
– Para o meu santo
Bacellar.
Luiz Bacellar em dois momentos. Fonte: https://www.amazonamazonia.com.br/ |