Amigos do Fingidor

domingo, 31 de janeiro de 2010

Manual do Canalha em nova edição

Era uma tarde domingo. Eu lia a Veja, como faço em todas as entediantes tardes de domingo – não que seja apaixonado; de outro jeito, como falar mal? – quando me deparei com o texto do Millôr, falando sobre o Manual do Canalha. Imediatamente, liguei para o Simão, que, pelo que ele contou depois, achou que eu tava de sacanagem. Eu, de sacanagem, domingo à tarde? Fosse ao menos sábado... Depois do Millôr, todo mundo quis conhecer aquele fenômeno, pelo que a Topbooks relançou o livro, cuja capa está aí ao lado.

Na sequência, uma entrevista publicada em dezembro de 1996, com o título Podem atirar a primeira pedra, por mero acaso, no jornal Tribuna da Imprensa, do jornalista Hélio Fernandes, irmão do Millôr. Então, está tudo em casa.

(Zemaria Pinto)

Escrito por um jornalista e publicitário que é uma verdadeira navalha de irreverência, este “Manual do Canalha” – que bem poderia ter como subtítulo “Guia do politicamente incorreto” – pretende excitar o leitor, irritá-lo às vezes, mas também quer arrancar sonoras gargalhadas, ainda que seguidas por alguma exclamação do tipo “pô, que cara escroto esse Simão Pessoa!”

Mistura tropical de escabrosidade típica de um Marquês de Sade com o humor irreverente do inglês Jonathan Swift? Talvez. Mas ninguém poderá negar que este “Manual” é capaz de proporcionar momentos de divertida leitura e, ao mesmo tempo, provocar uma saudável reflexão – pela prática do livre pensar – a respeito dos muitos mitos e preconceitos enraizados, sobretudo pela mídia, na cabeça do povo.

Simão Pessoa vai dos temas-tabus, como homossexualismo, aids, ejaculação precoce, aos detalhes essenciais para se montar uma perfeita “festinha de embalo”, sem esquecer as dicas para se ganhar uma mulher em diferentes circunstâncias (no cinema, no shopping, em academia de ginástica, no cursinho ou faculdade, no estádio de futebol etc.). E faz verdadeiro tratado sobre posições sexuais, um engraçadíssimo “Kama Sutra” de que constam movimentos tão sofisticados quanto o paso doble de Gardel, a vaca atolada, o saci pererê, o mountain bike, ou ainda o bêbado e a equilibrista.

O diferencial neste livro é que todos os assuntos são tratados com deboche, escracho, irreverência, na contramão do consenso e do lugar-comum, embora abuse por demais do palavreado chulo, usando a torto e a direito palavrões. O autor não teme que o chamem de machista, homófobo, politicamente incorreto: seu compromisso é com a alegria. Também não pede a ninguém que concorde com ele: apenas exerce seu direito de dizer o que quer.

É bom anotar que se, num momento, este “Manual do canalha” trata as mulheres tal e qual um “porco chauvinista” – classificando-as em mocréias, jabiracas, mocorongas e outras estranhas espécies –, logo depois arrasa com os homens ao dar dicas sobre como reconhecer os variados tipos de corno (o galeto, o cego aderaldo, o iô-iô, o besta-fera, o cachorro doido, o cowboy). E um dos capítulos mais divertidos (“Casamento: você ainda vai ter um”) debocha do machão ao mostrar o quanto ele fica frágil e vulnerável ao se apaixonar.

Veja a seguir, as explicações de Pessoa sobre a sua estética machista para o terceiro milênio.

Tribuna Bis: Você é jornalista, poeta e publicitário. A idéia de escrever este “Manual do Canalha” surgiu de conversas com colegas de trabalho? Como e quando?

Simão Pessoa: Na realidade, sou engenheiro eletrônico e pós-graduado em administração pela FGV (SP). Durante 18 anos, fui chefe de engenharia de qualidade de duas das principais fábricas do distrito industrial, Sharp e Philco. Em 1991, resolvi largar tudo e me dedicar à redação publicitária, onde estou até hoje. Quando comecei a trabalhar, em 73, com 17 anos, estava, sem saber, no olho do furacão da revolução sexual que ocorreu na cidade com o advento da Zona Franca. Cada fábrica do distrito, nessa época, tinha em média quatro mil mulheres para pouco mais de quinhentos homens. Como a maioria delas tinha vindo do interior do estado, e eram bastante ingênuas, se transformaram em presas fáceis dos canalhas manauaras. Devo ter transado, nesses dezoito anos, com umas 900 mulheres, o que é uma média baixíssima para os padrões locais. O “Manual do Canalha”, portanto, não é fruto de elucubrações teóricas, mas de quem esgotou, na prática, todas as possibilidades existentes no relacionamento homem-mulher. É o testemunho de uma época de ouro, onde a inocência não era mais possível e onde todas as questões metafísicas se resolviam num quarto de motel. A questão de escrever o texto – que já estava esboçado na minha cabeça – surgiu quando a Danuza Leão lançou um livro de etiquetas e fez um rebuliço no mercado editorial. Pensei em fazer o mesmo do ponto de vista do macho. O título (“Manual do Canalha”) foi sugerido pelo Plínio Augusto, editor da Imaginário, que iria publicar a primeira edição. Como houve alguns problemas financeiros que atrapalharam o projeto, resolvi fazer uma edição independente, financiada por meia dúzia de amigos. Este “Manual do Canalha”, que a Topbooks está lançando agora, é uma edição revista e aumentada, com um tratamento gráfico de alto nível, capa do premiado Victor Burton – enfim, bem diferente daquela ediçãozinha artesanal feita em Manaus.

Como reagiram as pessoas mais próximas – além dos amigos, as amigas, esposa, namoradas, filhos, mãe e pai – com relação ao polêmico texto?

Na noite de autógrafos, no bar do Armando, várias mulheres, gostosíssimas, por sinal, apareceram por lá para protestar – porque as resenhas dos jornais apontavam para o machismo inerente ao livro e as redes de tevê foram lá conferir. As reações foram as mais desencontradas possíveis. Minhas ex-mulheres, amantes, irmãs, filhas e sobrinhas, por exemplo, odiaram as referências implícitas e explícitas ao mau-caratismo das mulheres. Por outro lado, meus amigos de copo, correligionários de canalhice, filhos, sobrinhos e afilhados adoraram a clareza e a leveza do texto. Meu pai, que é sexagenário, e minha madrinha de crisma, que é beata, acharam o livro de uma baixaria inominável. Paciência. Nem Jesus Cristo conseguiu agradar a todo mundo.

Você ficou famoso no Amazonas por causa deste livro? Passou a ganhar mais mulheres ou menos mulheres depois dele?

O livro foi vendido de mão em mão, distribuído entre amigos, colocado em algumas livrarias, e esgotou em menos de três meses. A maioria dos compradores era formada por adolescentes. A mídia televisiva deitou e rolou sobre o assunto porque calhou de, na mesma época, o cantor Falcão estar na cidade lançando seu primeiro disco, “Bonito, lindo e joiado”. Na música “Só é corno quem quer”, ele fazia um tratado ontológico do bicho chifre que orna a caixa craniana de seres passionais. No meu livro, havia um painel didático com todas as modalidades de cornice de que se tem notícias. As comparações foram inevitáveis. Até então, eu era conhecido no Amazonas como introdutor da “poesia marginal” e meus livros de poesia tinham o status de objetos de culto, já que só circulavam entre os bem-pensantes. Eu era uma espécie de Gregório de Matos da nova geração. Com o “Manual do Canalha”, acabei me transformando, involuntariamente, no cafajeste-mor por excelência. O assédio sexual das mulheres aumentou, porque cada uma delas parece ter o sonho secreto de querer me colocar nos eixos. Nenhuma delas, que eu saiba, conseguiu algum progresso nessa questão específica, o que não invalida, em absoluto, o esforço das moças em continuar tentando. Como estou fora de forma, atualmente só deixo prestar vestibular comigo, no máximo, 12 novas mulheres por ano. Mais do que isso, meu perfurador de gabarito não dá conta.

Você se sente psicologicamente preparado para enfrentar os ataques dos caretas, que verão no livro um manual do politicamente incorreto?

Eu sou um pensador libertário e tenho absoluto desprezo pelos caga-regras de qualquer latitude ou quadrante. A maior bobagem desse fim de século é essa onda do “politicamente correto”. Quem tem culpa do sujeito nascer crioulo? Ou de ser viado? Ou de nunca conseguir comer ninguém? Aliás, quase todo sujeito politicamente correto é analfabeto de pai e mãe, donde conclui-se que o risco de ler o “Manual do Canalha” vai ser mínimo. Não vale a pena se preocupar com esses bichos escrotos.

Como é que, apesar da pequena edição artesanal, seu livro passou a ser comentado em vários pontos do país?

Graças ao meu trabalho de poeta, sempre fui bastante conhecido no circuito alternativo do país, trocando figurinhas com Glauco Mattoso, Sebastião Nunes, Uilcon Pereira, Cairo Trindade, Mano Melo, Tanussi Cardoso, Samaral, Moacir Cyrne, J. Cardias, Jorge Domingos, Wilson Bueno e dezenas de outros vagabundos maravilhosos. Eles ajudaram a criar uma espécie de mítica em torno do “Manual do Canalha”, e isso me convenceu de que o livro merecia uma edição maior, de distribuição nacional.

Qual o seu objetivo ao escrever o “Manual”: vender muito e ficar rico; chocar a sociedade reacionária, dizendo tudo que se impôs como indizível; exercitar seu direito de falar o que quiser, mesmo que não seja politicamente correto; divertir-se e divertir os leitores? Ou tudo isso junto?

A idéia básica é divertir os outros, tudo o mais vem por acréscimo. Ele faz parte de uma trilogia fálica, sendo que os outros dois (“Manual do Espada” e “Manual do Garanhão”) já estão virtualmente escritos. No fundo, no fundo, esses livros são uma maneira quixotesca que encontrei para lutar contra a histeria coletiva que grassa no mundo, onde menininhos de cinco anos são tratados como perigosos tarados só porque passaram a mão na bunda da coleguinha de escola. Se não abrirmos os olhos, daqui a pouco até trepar com mulher vai ser considerado crime hediondo.

Você teme algum tipo de agressão verbal ou escrita – seja de um grupo gay, de um movimento de mulheres, ou mesmo de um maluco que venha a se sentir prejudicado pelo seu “Manual do Canalha”?

Das mulheres eu aceito tudo, até maçã envenenada e tapa na cara. Tenho uma verdadeira tara por mulheres violentas e bruxas confessas. Com os gays, audácia do bofe! Os boiolas não têm senso de humor. Desconfio que esse negócio de dar a bunda sem olhar pra trás potencializa a agressividade do ser humano. Dos gays, benza Deus, mas quero distância. E o verdadeiro macho não vai se sentir sacaneado ao ler o livro, a não ser que seja corno. Mas isso são outros quinhentos.

Ninguém precisa passar por uma experiência pra escrever sobre ela, mas não dá pra deixar de perguntar: você teve muitas namoradas? Passou por um divórcio ou dois? Já foi corno? Nunca broxou, como o Ziraldo? Enfim, o que há de autobiográfico no livro?

Eu fui casado quatro vezes. Com a primeira, tive três meninos (os gêmeos Marcelo e Marcel estão com 19 anos, e o caçula, Márcio, tem 16). Com a segunda tive um casal (a menina, Maíra, tem 15 anos, e o menino, Marcus, tem 11). Com a terceira tive uma menina, a minha caçula, Marisa, que tem nove anos. Com a quarta não tive nenhum filho porque fiz vasectomia em 1991. Moramos juntos sete anos e nos separamos este ano, no dia em que completei 40 anos. Atualmente, estou quase casado com uma publicitária e prestando assistência técnica às ex-mulheres. Pago pensão alimentícia a todas que têm filho comigo e, para honrar os compromissos financeiros, mantenho há quinze anos uma jornada tripla de trabalho, incluindo free-lances nos finais de semana. Não tiro férias há cinco anos. Claro que já fui corno e broxei algumas vezes. São experiências tão definitivas quanto necessárias, e quem diz que nunca passou por isso está sendo um grandissíssimo mentiroso.

Você cita, na bibliografia de consulta, “A arte de amar”, de Ovídio, e “Amor, sexo e espiritualismo”, de Robert Linnsen. É sério? O que você tirou desses livros para o seu “Manual do Canalha”? E do “Kama Sutra”?

Apesar de ser, como todo taurino, um sujeito eminentemente prático, tenho boa formação cultural, em termos de leitura. Leio tudo que me cai nas mãos, de bula de remédio a tratado sobre física quântica. Li as obras completas do Ovídio, em edição de bolso, quando tinha 15 anos. O “Kama Sutra” li com 18. O livro de Robert Linnsen apenas folheei numa biblioteca. Deve ter ficado retido alguma coisa, que acabei utilizando, inconscientemente ou não, no “Manual”.

A Internet tem grupos que só discutem sexo. Já pensou em botar seu “Manual” na Internet?

Colocar meus livros na Internet é uma coisa que me fascina. Penso que escrever tem muito a ver com a necessidade de ser lido. Como todo bom anarquista, sou um ardoroso defensor de que as informações são um patrimônio da humanidade e, como tal, devem circular pelo maior número de canais possíveis. Odeio o conceito de “direito autoral”, tanto que nos meus livros alternativos vai sempre escrito “Nenhum direito reservado. Copyright é coisa de viado”. A Internet me parece ser a porta de entrada para esse mundo libertário que trago na cabeça e no coração. Na primeira oportunidade, o “Manual do Canalha” vai entrar num site multilíngue e partir para conquistar o mundo. Quem viver, verá.

Clique sobre a imagem, para ler o texto de Millôr Fernandes.

sábado, 30 de janeiro de 2010

Fantasy Art – Galeria

Frank Frazetta.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Os sinais gráficos a mais vão por conta da Saraiva. Desculpa, querido Zeca, todos entenderam que sua exposição vai de 28 de janeiro a 28 de fevereiro. E quem não for é mulher de padre!...

fiel companheiro

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sorveu o resto de café da caneca, olhou em redor, o louro fora o único que não o abandonara, mas andava nos últimos dias muito triste, não dizia uma palavra. o homem se aproximou e disse, sabe, louro, tomei uma decisão: é hoje, é tudo ou nada. e foi saindo, quando ouviu a voz do melhor amigo, ca-re-ca! ca-re-ca! vai mas volta. ca-re-ca! ca-re-ca!


(Adrino Aragão)

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Assembleia Setorial do Livro, Leitura e Literatura – Convite

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A Câmara Amazonense do Livro e Leitura – CALL, o Conselho Municipal de Cultura, Associação Amazonense de Leitura – Amaler e o Comitê Gestor do FLIFLORESTA – Festival Literário Internacional da Floresta têm a satisfação de convidá-lo(a) para a ASSEMBLEIA ESTADUAL SETORIAL DO LIVRO, LEITURA E LITERATURA, em que discutirá estratégias para o setor de Livro, Leitura e Literatura no Estado do Amazonas e escolha de delegados para a PRÉ-CONFERÊNCIA DO SETOR, e que acontecerá sábado, dia 30 de janeiro de 2010, de 8 às 11h30, no auditório do Espaço Cultural da Livraria Valer – Rua Ramos Ferreira, 1195 – Centro.

Seguindo a orientação da Diretoria de Livro, Leitura e Literatura, do Ministério da Cultura, a Câmara Amazonense do Livro e Leitura, o Conselho Municipal de Cultura, a Associação Amazonense de Leitura e o Flifloresta, estão coordenando a realização da ASSEMBLEIA ESTADUAL SETORIAL DO LIVRO, LEITURA E LITERATURA que ocorrerá no próximo sábado (30/janeiro), das 8 às 11h30, no Auditório do Espaço Cultural da Livraria Valer. O encontro reunirá os segmentos ligados ao Livro, à Leitura e à Literatura, que atuam em âmbito estadual, com o objetivo de discutir os temas que têm norteado os debates sobre essa problemática, bem como as ações para dinamizar e fortalecer o setor. Na ocasião serão escolhidos os delegados que participarão em Brasília, nos dias 26 a 28 de fevereiro, da PRÉ-CONFERÊNCIA SETORIAL DO LIVRO, LEITURA E LITERATURA.

A ASSEMBLEIA é o fórum adequado para refletir caminhos para aprofundar e ampliar o debate sobre a necessidade premente de uma política de governo consistente para o Livro, a Leitura e a Literatura no Brasil, oportunizando dessa forma o acesso da sociedade ao conhecimento, à beleza e ao patrimônio literário nacional. As entidades, os intelectuais, escritores, mediadores de leitura, bibliotecários, livreiros, editores convidados terão a oportunidade de contribuir com esse importante debate e, ao mesmo tempo, propor sugestões para dinamizar, fortalecer e ampliar os serviços e ações que favoreçam a cultura do Livro, a prática da Leitura e a expressão literária no Estado do Amazonas e no País, mediante o incentivo à produção literária, o fortalecimento do mercado editorial, a acessibilidade ao livro, a promoção de iniciativas de leitura, a criação de espaços para o cultivo de práticas que favoreçam o acesso da sociedade a esses bens culturais (como bibliotecas, salas de leitura e centros culturais).

Durante o evento, será feita a avaliação do Plano Nacional de Livro e Leitura – PNLL, do Governo Federal, e a proposição de uma estratégia para o setor, considerando os eixos temáticos da II Conferência Nacional de Cultura. E com ênfase no que estabelece o PNLL (Plano Nacional de Livro e Leitura):

“Essa Política de Estado deverá traduzir-se em amplos programas do governo, com coordenações interministeriais, devidamente articuladas com Estados, Municípios, empresas e instituições do Terceiro Setor, para alcançar sinergia, objetividade e resultados de fôlego quanto às metas que venham a ser estabelecidas. Quatro eixos principais orientam a organização do Plano:

- Democratização do Acesso
- Fomento à Leitura e à Formação de Mediadores
- Valorização do Livro e Comunicação
- Desenvolvimento da Economia do Livro.”


Evento: ASSEMBLEIA ESTADUAL SETORIAL DO LIVRO, LEITURA E LITERATURA
Data: 30 de janeiro 2010 (sábado)
Horário: 8 às 11h30
Local: Auditório do Espaço Cultural da Livraria Valer – Av. Ramos Ferreira, 1195 – Centro
Contatos: 3635-1324 (Editora Valer); 8124-6478 (Tenório Telles); 9160-4541 (Thiago de Mello); (61) 2024-2628/2024-2630 (Ticiane Nascimento – Minc)

As memórias sociogenéticas amparando outras teorias do conhecimento

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João Bosco Botelho


Sem esquecer Nietzsche: “Não há fatos, somente interpretações”, é possível pensar, sem receio dos exageros da paixão, que o rápido aumento do desvendar da microestrutura humana, em níveis moleculares, nos últimos vinte anos, está aproximando a ciência dos limites ainda poucos conhecidos da memória, fonte majestosa de todo o conhecimento. Sob essa perspectiva, torna-se razoável rever as teorias do conhecimento e aproximá-las do genoma, a origem da vida e da morte.

A abordagem para conceber outra teoria do conhecimento obriga outras ligações, diversas das concebidas, por exemplo, a partir dos saberes de Locke, insistindo na idéia da “tabula rasa”, e dos de Marx, maximizando o coletivo sobre o pessoal.

Torna-se cada vez mais difícil deixar de lado a importância do pessoal. Nas mais conceituadas universidades, onde se produz ciência voltada ao desvendar da matéria, na micro e na macrodimensão, fala-se cada vez menos em Locke e Marx e, cada vez mais, no genoma.

Os estudos de G. K. Beauchamp, K. Yamazaki e E. A. Boyse (Harvard University) estão ajudando a transpor os genes da histocompatibilidade com o social. Sob rígido controle metodológico, os estudos experimentais têm demonstrado que camundongos machos e fêmeas com histocompatibilidades diferentes se mostraram mais dispostos ao acasalamento. Esse fato explicaria uma memória sociogenética para evitar a consanguinidade, pelo menos entre os animais estudados.

Não é mais possível minimizar o valor dos novos saberes, notadamente, a genética, impondo fantásticas mudanças conceituais no modo de compreender as formas e as funções do corpo humano, nas menores dimensões da matéria.

Por outro lado, apesar das muitas interpretações de como o ser humano produz os conhecimentos, como as propostos por Locke e Marx, nada mudou na maneira humana de fugir da dor, ao longo de milhares de anos, gerando padrões comportamentais que impulsionam homens e mulheres, em todas as circunstâncias, na busca do prazer (Botelho, João Bosco. Arqueologia do prazer, 1988).

Na realidade, essa questão – o medo da dor – não é nova na estrutura do pensamento filosófico. Os epicuristas compreendiam a filosofia, a essência do conhecimento, como a perene ambição à felicidade. A “felicidade epicurista” pode ser entendida como a possibilidade de existir condições, no convívio humano, em que o prazer torna-se preponderante sobre a dor.

Mesmo aceitando ser impossível articular as teorias do conhecimento e os saberes em si mesmos, fora do contexto onde são produzidos, não há dúvida quanto à fantástica repetição de atitudes humanas de fuga à dor ou a simples ameaça de situação dolorosa, nos quatro cantos do planeta, desde os primeiros registros.

Seria possível compor teorias dos saberes desconsiderando a arqueologia da dor e do prazer?

Parece claro que esse conjunto comportamental, evidente nas relações sociais, teve forte influência na concepção do jusnaturalismo aristotélico, dominando o ajuizamento de valor do equânime. Dominou o pensamento filosófico até o século XVII, quando a idéia do justo sofreu transformações, nos dois séculos seguintes, sob a influência do historicismo de Hobbes e Rousseau.

A intolerância do contrato social engessado na obediência irrestrita às leis, esquecendo a importância do prazer individual, foi flexibilizado por Locke que admitiu ser justa a ruptura do consentimento coletivo, quando a dor pessoal de muitos, determinada pelo abuso do poder dominador, chegasse a níveis insuportáveis.

Assim, sendo possível à força da ação coletiva fixar valores quanto ao justo e ao injusto, a partir da conjuntura social da época, Hegel admitiu os saberes a partir da construção de uma sociedade planificada, onde os conhecimentos, fortes e indissolúveis em si próprios, seriam capazes de conceber novos saberes aptos a substituir os historicamente acumulados em torno da estrutura da família e dos laços consanguineos.

A antítese do jusnaturalismo aristotélico iria tomar força social, até certo ponto dogmático, com forte tendência destrutiva social, por meio dos escritos de Marx e Engels. As vontades pessoais, base da construção do coletivo, nada representariam, quando colocadas em confronto com os interesses do Estado Planificador Coletivista.

Apesar de Marx ter admitido a dependência entre o vínculo social com as necessidades pessoais, assinalando a produção como societária, sempre reafirmou o domínio do coletivo deslocando o único. A intolerância do marxismo pós-Marx, ao tratar o subjetivo humano, aprofundou a rachadura que contribuiu para desmoronar a ordem marxista, como um castelo de cartas, atingida pela queda do muro de Berlim.

A proposta teórica das memórias sociogenéticas (Os limites da cura, Botelho, João Bosco. 1997) admite certos instrumentos sociais, formados ao longo da filogênese e da ontogênese, por meio dos quais, a ordem genética interage com o social em contínuo processo de aperfeiçoamento com o objetivo de compor atitudes corporais e sociais para fugir da dor e procurar o prazer.

Os instrumentos sociogenéticos mais antigos que conduzem todos os animais multicelulares à fuga da dor – inclusive, e especialmente, os humanos – como adaptação à vida, pertencem ao passado filogenético comum, quando se estabeleceram ligações biológicas entre áreas cerebrais pré-neocorticais e o genoma, e estão essencialmente contidas nas múltiplas manifestações e metáforas da sexualidade, cooperação e territorialidade.

Os instrumentos sociogenéticos mais recentes que compõem o formidável conjunto articulador humano na busca permanente ao prazer e aos seus significantes simbólicos, estabelecendo estreitas conexões entre o genoma e o social, estão atados à origem dos nossos antepassados mais próximos, há poucos milhões de anos: a linguagem, dicotomia do corpo-matéria (ser-tempo) e do corpo-não-matéria (ser-não-tempo), as relações médico-míticas, o dom e a dor-histórica.

Sob a égide dos novos conhecimentos, as teorias do conhecimento serão atualizadas quando for acrescentado o sociogenético aos pressupostos teórico-idealista (Hegel), material (Feuerback), histórico-social (Karl Marx), biológico (Darwin) e comportamental (Freud).

Desta forma, as memórias sociogenéticas são os circuitos biológicos que articulam a herança genética ao social e vice-versa e em torno dela, com a tolerância que caracteriza o conhecimento historicamente acumulado, irão florir outras teorias do conhecimento.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Fantasy Art – Galeria

Victoria Frances.

drops de pimenta 47

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─ Chá?

─ ...

─ Cidreira, camomila ou erva-doce?

─ Que diabo! Não tem nada mais estimulante?!


(Zemaria Pinto)

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Waldemar Baptista de Salles

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Rogel Samuel*

Faleceu domingo o jornalista Waldemar Baptista de Salles, autor de vários livros.

Nasceu Waldemar Baptista de Salles em 24/09/1913 e faleceu domingo, 24/01/2010.

Ele era um bom escritor. Eu passei minha juventude lendo seus textos, suas crônicas, nos jornais de Manaus.

Infelizmente escrevo longe de casa, numa pousada, em Tiradentes. Não posso consultar os seus livros que tenho.

Mas me lembro de seus artigos, escritos numa linguagem fluida e de fácil leitura, tão diferente de seus pares da Academia Amazonense de Letras de sua época.

Ele era professor, agrônomo, advogado. Foi secretário de Estado da Fazenda.

Escreveu O Amazonas – o meio físico e suas riquezas naturais, Pétalas rubras e outros.

Mas o principal de sua obra está publicado nos jornais de Manaus. Vai ser difícil recuperar.

Ele era, principalmente, um cronista.

(*) Publicado originalmente no blog de Rogel Samuel.

Keats... em Roma

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Marco Adolfs


Saímos de Paris sob uma fina chuva e carregando no coração um pouco de melancolia, já provocada por uma saudade antecipada. Um outro motorista coreano nos levou ao aeroporto Charles De Gaulle e aproveitou para cobrar cinquenta e três euros, levando em consideração os volumes. Pagamos ao motorista acreditando que a Coréia havia invadido a França e ocupado todos os táxis com o único intuito de pegar os euros de turistas. Mas o melhor ainda viria. Quando nos preparamos para partir em direção a Roma, voando pela deficitária Alitalia, tivemos que pagar por um misterioso excesso de bagagem e ainda enfrentar uma paranóica revista de roupas, sapatos, meias e sacolas. E se a gente bobeasse, até as nossas sobrancelhas seriam revistadas. A Dora sofreu mais, pois quase ficou nua, tendo que retirar botas e agasalhos para ver se carregava alguma bomba. Também pudera, com aquela aparência de mulçumana e usando aquele véu na cabeça, nos tempos de hoje, é meio complicado. Mas depois que souberam que éramos brasileiros, relaxaram mais. Talvez seja o efeito Ronaldinhos e Kakás.

O voo foi tranquilo e quando pousamos em Roma já o inverno da Europa havia desaparecido sob um sol de Brasil e um céu azul de Azurra. Taxistas livres disputavam passageiros em diminutos e meio relaxados táxis. Tivemos saudade dos táxis luxuosos dos coreanos de Paris. E, além do mais, o motorista italiano, com a cara do Gianecchini, deu uma volta tão grande pelas colinas de Roma, que até chegarmos ao nosso hotel, distante do centro efervescente da cidade, parecia termos percorrido a mesma distância que a Via Appia, seiscentos quilômetros em linha reta. Mas o hotel era muito bom e lembrava uma vila de casas que alguém inteligentemente havia reformado. O luxo, o silêncio e a privacidade eram totalmente europeus.

No outro dia saímos para conhecer a cidade eterna. Se Lisboa é colorida e Paris é gris, Roma carrega uma cor vermelho-ocre. Talvez devido ao sangue derramado no passado, jogando cristãos aos leões, ou ao fato de gostarem de molho de tomate cobrindo massas e pizzarelas. Não sei. Fomos até a Fontana de Trevi e, após uma passada entre ruínas, monumentos e museus, procurei pela casa onde viveu o poeta romântico Keats. Eu sabia que ficava no final da Via Condotti, bem ao lado da escadaria de flores da Piazza di Spagna.

John Keats, o poeta inglês fascinado pela Grécia antiga, um aluno de medicina que passava seu tempo lendo poesia e história clássica, nasceu em Londres em 1795 e faleceu na sua Roma amada em 1821. Como não poderia deixar de ser, abandonou a carreira médica para dedicar-se totalmente à literatura. E tanto exercitou-se romanticamente que, em 1818, escreveu seu longo poema Endymion que o projetou no meio literário. Mas o que o levou a Roma foi ter contraído tuberculose. Por isso foi para a Itália, onde o clima seria mais ameno. Lá, o poeta John Keats viveu seus últimos anos em um apartamento com vista para a Piazza di Spagna. Quando morreu, alguns de seus admiradores compraram o apartamento e o dedicaram a sua memória. Virou o Keats-Shelley Memorial House, onde o visitante pode encontrar todo o mobiliário original e documentos associados também a um outro poeta romântico, Percy Shelley, este também um amante da Itália. Goethe, Coleridge, Shelley, Byron, Henry James, Oscar Wilde e James Joyce são alguns dos que se sentiram atraídos e inspirados por esse local histórico dos amantes da literatura.

Poucos poetas escreveram obras tão importantes e em tão pouco tempo como Keats. Em 1820 são publicados Lamia, Isabelle, A vigília de Saint Agnés, Hyperion e parte de Odes. Sobre o seu túmulo, em um cemitério de Roma, foi esculpida a inscrição que ele mesmo redigiu: "Here lies one whose name was write in water." Traduzindo: "Aqui descansa um homem cujo nome está escrito sobre a água."

Naquela tarde de Roma, saí um pouco pensativo do local e me dirigi até um condutor de uma romântica charrete estacionada ali perto, e que fumava um belo charuto à espera de algum turista. Perguntei-lhe num sofrível italiano onde ficava uma tabacaria para que eu pudesse comprar também um charuto. Ele me disse que ficava ali perto e resolvi ir até lá. Mais tarde, sentados, eu e Dora, já na Piazza del Popolo, fumei aquele bendito charuto enquanto recitava algumas estrofes lembradas de Keats. A tarde caía lentamente nos braços da noite.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Waldemar Baptista de Salles (24/09/1913-24/01/2010)

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Faleceu ontem o membro da Academia Amazonense de Letras, professor, agrônomo e advogado, ex-secretário de Estado da Fazenda, Waldemar Baptista de Salles, autor, entre outros títulos, de O Amazonas – o meio físico e suas riquezas naturais.

Waldemar Baptista de Salles foi fundador da cadeira 40, cujo patrono é Paulino de Brito.

domingo, 24 de janeiro de 2010

O sonho é nossa chama

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Jorge Tufic


Este novo livro do grande poeta cearense Francisco Carvalho surpreende pela totalidade poética, liberta afinal de separações estróficas, quando traz de volta aos leitores sonetos já publicados e dez inéditos, miniaturas essas que, por sua vez e pelo simples motivo de que as rimas chegaram ao seu máximo limite toante ou consonante, extrapolam dos cânones tradicionais, sem, com isso, deixarem de inventar e reinventar a utopia de Petrarca, Camões, Jorge de Lima, entre tantos outros, nunca em desnível com os mais ferrenhos cultores desse gênero de arte, tão brasileiro quanto universal. Nota-se aí, por outro ângulo menos visível a quem não acompanha, de perto, a trajetória do autor, que a maioria deles passara pelo crivo de uma releitura crítica, e foram selecionados.

Em Algumas Palavras, nos explica o mestre: “Não adianta citar nomes, mas é sabido que os verdadeiros poetas estão honestamente empenhados na produção de uma arte poética que se distingue pela universalidade da linguagem e pela prática de uma forma mais flexível às exigências da modernidade. Escrevendo sonetos ou poemas em versos livres, revelam qualidades literárias que os consagram à admiração da posteridade. Afinal de contas, se o soneto está realmente fora de moda, ultrapassado na forma e no conteúdo, por que tanta gente continua a escrevê-lo com tamanha convicção? Deve existir alguma explicação para isso. Há quem supunha que a preferência pelo soneto seria uma forma de opção pelo caminho mais fácil. Será?”

A prova em contrário, ou a resposta cabível, nós vamos encontrar ao longo dessas 98 páginas da excelente coletânea de 170 sonetos éditos e 10 inéditos, dando-nos estes a leveza de uma nuvem-personagem que nos encanta e tira o amargor da vida inteira através de uma dança em que vai se detendo, ora como “pombas que voltam do exílio”, ora em diversos lugares da infância do poeta, ora ainda a esperar numa esquina, desdobrando-se e metamorfoseando-se como coisa real ou “engano dos sentidos”. “A nuvem e o pássaro”, aliàs, já foi título de um outro livro de Francisco Carvalho.

Tudo para indicar, se é que deva ser necessário, o que logo sobressai da primeira impressão de leitura, ou seja, a unidade quase palpável do texto, agora tomado na sua totalidade, e mais que isso, a emoção que transmite de um roteiro estético carregado de símbolos e metáforas que também incursionam, mas sem transbordamentos ou evasivas, pelos domínios da metalinguagem. Francisco Carvalho consegue ler a si mesmo do jeito que gostaria de fazê-lo com os outros. E atinge o máximo.

sábado, 23 de janeiro de 2010

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

território noturno

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fechou os olhos. continuava enxergando de igual modo. melhor ainda, porque o olhar trespassava pedras, montanhas, folhas, árvores, tudo que estivesse diante dele.

guardou os olhos no bolso. olhou em volta os meninos jogando bola.

e se foi assobiando, saltitante, feliz como um menino, na direção da clínica de olhos.



(Adrino Aragão)

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Novo movimento mítico da coesão social: do comunismo às drogas

João Bosco Botelho

Durante muito tempo, no Ocidente, o relato mítico foi equivocadamente compreendido como sinônimo de fábula. Ao contrário, em muitas outras sociedades, a mitopoese, plena de sig­nificado metafórico, mantém elos fortes com a coesão social do grupo.

As reflexões em torno do mito remontam à Grécia. O pré‑socrático Xenófanes (570‑528 a.C.), da escola eleata, combateu as representações míticas de Homero e Hesíodo. Dessa forma, é possível que tenha contribuído para que o logos fosse entendido como oposto ao mito.

Durante o processo da cristianização do Ocidente, quando interessava ao poder papal, as autoridades eclesiásticas aumentaram a oposição, forçando o mito como sinônimo de falsidade. Sob esse prisma, a teoria de Lévy‑Bruhn da passagem de um estado humano pré-lógico simbólico e mítico para outro racional e lógico, de certo modo, retrata essa oposição de fundamentação política.

Os trabalhos antropológicos de campo, nos últimos cinquenta anos, compuseram logos e mito profundamente interligados e dependentes, facilitando o entendimento dos mitos como complexas composições das realidades culturais, ligados às histórias de cada sociedade, provocando efeitos mais ou menos impactantes sobre as pessoas, podendo determinar mudanças de comportamento.

Considerando a possibilidade de as ações políticas poderem se apropriar dos efeitos dos mitos para interferir no convencimento coletivo, é possível entender sob essa ótica alguns convencimentos coletivos bem sucedidos, no passado recente e na atualidade, identificando coisas ou pessoas como o “mal” que deve ser aniquilado. Nesse complexo conjunto a grande mídia, amparada pela moderna tecnologia audiovisual e escrita, instrumentalizou os meios para atingir, simultaneamente, milhões de pessoas. Essa força incorporada aos poderes políticos não encontra paralelo no passado da humanidade.

De modo geral, respeitando-se as representações metafóricas, as notícias dos grandes sistemas de comunicações, alinhavadas aos poderes políticos, mantêm o chamamento da milenar luta mítica do BEM contra o MAL, adaptando-se às transformações sociais.

Alguns estudiosos reconheceram que Marx pode ter utilizado um dos grandes mitos da escatologia do mundo asiático‑mediterrâneo: o justo sacrificado (identificado com o proletariado) para justif­icar a mudança ontológica do mundo. A função soteriológica do proletariado, proposta por Marx e Engels, acabou incorporando um significado messiânico, simulando a luta do BEM (comunismo) atacando continuamente o MAL (capitalismo).

Contrariamente, outros historiadores respeitados, como Croce e Gasset, discordaram do “messianismo marxista”, argumentando ser impossível superar todas as contradições nas idéias políticas. A socióloga Marilena Chauí esclarece melhor, no seu livro O que é ideologia: “Por este motivo, cometemos um engano quando imaginamos ser possível substituir uma ideologia falsa (que não diz tudo) por uma ideologia verdadeira (que diz tudo)... Porque uma ideologia que fosse plena ou que não tivesse vazios e brancos, isto é, que dissesse tudo, já não seria ideologia.”

Com a queda do muro de Berlim, para compor novo movimento mítico de coesão social, nos anos noventa, os poderes políticos substituíram o comunismo pelas drogas. Um indicativo forte dessa tendência foi a entrevista do diretor do FBI William Sessions, durante passagem por São Paulo (Folha de São Paulo, 19 jun 91). De acordo com as declarações desse policial, os comunistas deixaram de ser preocupação do governo dos Estados Unidos. A priori­dade atual é o combate às drogas, como numa verdadeira guerra com todos os envolvimentos conceituais, econômicos e estratégicos.

Até pouco tempo, não havia interesse político para reprimir o narcotráfico. Ao contrário, em alguns casos, prevaleceu a proteção descarada do traficante em nome da luta contra o comunismo internacional. Um dos exemplos marcantes foi o ex-ditador do Panamá Manuel Noriega.

O rápido desmonte da ordem comunista, a partir da queda do muro de Berlim, impôs ao vencedor a necessidade de apressar o movimento mítico de coesão social em outra direção. Não foi simples coincidência a cruzada mundial, com amplo espaço na grande mídia, empreendida pelo casal Reagan, contra as drogas, em maio de 1988.

Naquela ocasião, o governo americano divulgou uma grande pesquisa nacional de opinião evidenciando que 63% dos ameri­canos consideravam a droga como o principal problema contra 21% por cento que atribuía o perigo ao comunismo (Folha de São Paulo, 1 mai 88).

Esse rápido processo do movimento mítico da coesão social, do comunismo à droga, foi muito bem percebido pelo dita­dor Fidel Castro. Quando o mundo tomou conhecimento, em 1989, que o general Arnaldo Uchoa, antigo dirigente da revolução cubana e comandante das forças cubanas de ocupação em Angola, era narcotraficante, um "tribunal de ética militar", em processo judicial sumário, o condenou à morte por fuzilamento.

Não é necessário ser muito esperto para concluir que os 300 bilhões de dólares movimentados anualmente pelo narcotráfico, não podem ter sido estruturados da noite para o dia. A gravidade da situação é conhecida, há muito tempo, pelos serviços de segurança dos países do Primeiro Mundo. Só para citar um exemplo, a produção de heroína, no Paquistão, em 1986, foi de 140 toneladas, contra 40 toneladas em 1984 (Jornal do Brasil, 9 abr. 1987).

O estudo realizado pelo poderoso Departamento de Agricul­tura dos Estados Unidos, em 1984, demonstrou que 35% dos exportadores colombianos, naquela época, estavam diretamente relacionados à cocaína (Jornal do Brasil, 19 nov.1989). Naquela época, o volume de dinheiro gerado pelo narcotráfico, em Miami, envolvia uma fortuna próxima do faturamento da Philip Morris, uma das maiores produtores de cigarro do mundo.

Sem penetrar nas indiscutíveis questões das dependências químicas que interferem da ordem social, no momento, as drogas proibidas são as encarnações do MAL que devem ser combatidas e vencidas.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Fantasy Art – Galeria


The Revelation.
Dorian Cleavenger.

drops de pimenta 46

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─ Academia?

─ ...

─ Você já não foi de manhã?

─ Você pensa que é fácil ser gostosa?

(Zemaria Pinto)

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Pessoa, Miller e Keats - parte I

Marco Adolfs


Abril passado estive na Europa em viagem de férias. Viagem programada que finalmente pude realizar. Fui com a minha esposa Dora a Portugal, França e Itália. Mas, não só para filmar e fotografar tudo o que via - os ícones do velho continente -, mas também com o intuito e visitar Fernando Pessoa em Lisboa, Henry Miller na França e o poeta Keats em Roma. Entre outros escritores e também pintores que nos legaram suas obras a partir de uma visão eurocêntrica, muitas vezes romântica, quase sempre clássica ou reveladora. Uma viagem cultural em essência, visitando antes de tudo as ruas dessas capitais, os museus e as homenagens variadas dedicadas ao espírito humano, em forma de esculturas e arquiteturas gigantescas. E, como em uma máquina do tempo acionada pela memória do que já tinha sido lido, senti-me transportado para a história desses intelectuais e de suas existências fundamentais em um velho mundo que se tornou essencial para toda a humanidade.

Cheguei a Lisboa com o frio do inverno enfrentando a força da primavera que se avizinhava resoluta. Nas ruas e metrôs, os portugueses corriam em busca de recuperar o tempo perdido durante os anos passados de salazarismo. Em seus bolsos, agora tilintava o Euro. Forte e vigoroso incentivo ao desenvolvimento. Salazar era apenas uma página virada de que todos riam ou se lamentavam. Explicando uma parte e justificando outra de Portugal. Mas agora, Salazar e seu mundo pertenciam a um velho e inconcebível Portugal, só visto de relance em revistas de exaltação desse tempo, amarelecidas e esquecidas em uma banca da Feira da Ladra. E que nenhum português, em sã consciência, desejava comprar ou sequer folhear. Não haveria lugar mais justo para Salazar e seu tempo ficarem esquecidos do que na Feira da Ladra. Tempos roubados aos portugueses, esses de Salazar.

Mas, eu estava querendo mesmo era encontrar Fernando Pessoa. Disseram-me, ainda no Brasil, que ele vivia sentado em uma mesa do bar A Brasileira, ali no Largo do Chiado, a tomar os seus aperitivos ou café; e falando com seus heterônimos enquanto escrevia. Ou então, que ele poderia ser encontrado, ou na tabacaria A Havaneza, bem ao lado do bar; ou na Licorista, na Travessa do Arco do Sapateiro, lá pros lados do Rossio. Lugar onde gostava de tomar uns goles de uma bebida alcoólica preparada artesanalmente. Daí ter sido proibida.

Estávamos hospedados no Campo Pequeno, bem perto da Praça dos Toros, e teríamos, segundo informações, que pegar o metrô e nos deslocar até o Rossio. De lá, era só caminhar um pouco pelas charmosas e ladeirosas ruas de Lisboa até o Chiado. Lá, com certeza quase que absoluta, estaria o Fernando pensando ou matutando como escrever algum outro poema ditado pelo Álvaro de Campos.

Lisboa é uma cidade pequena com alma grande. Que tem que ser descoberta perdendo-se em suas ladeiras e praças. Ainda é uma capital bucólica que guarda seu passado distante como se ele já não tivesse passado. Isso é muito bom. Todas as cidades deveriam ser assim. Um provincianismo gostoso, uma personalidade madura e um jeito de quem sabe viver sua vida de todos os tempos. Mas assim é Lisboa. Uma mulher bonita cantando um fado melodioso. Ou então, quase como a casa da gente, com tios e primos diversos circulando ao redor.

Fazia ainda muito frio quando saímos da estação do Rossio, em busca de encontrar o Fernando. Caravanas ridículas de turistas ansiosos, tocados como gados por algum esperto guia, circulavam pela grande praça fotografando e filmando tudo o que encontravam pela frente. Como se quisessem devorar os pedaços de pedras e esculturas da velha Lisboa Pombalina. Eram bárbaros. Os novos bárbaros a invadir a Europa.

Uma excursão de brasileiros passou rente aos meus ouvidos e eu escutei bem uma voz feminina quase a gritar que estava era a fim de beber um vinho, e não de ver essas casas velhas todas. Mais bárbaros ainda. Cruz credo. Afastei-me o mais rápido e independente possível querendo falar com o Pessoa, para inclusive perguntar, em uma conversa de bar, sobre o que achava de tudo isso. Poeta, ficcionista, dramaturgo, filósofo e prosador, além de ocultista seguidor de Aleister Crowley, Fernando Pessoa, com certeza, iria me dizer que já estava providenciando uma magia qualquer para afastar essa gente barulhenta e insensível de perto de sua casa e das redondezas do Chiado.

– Não é possível escrever com toda essa gente circulando e fotografando por aí – iria me dizer. – Vou despachar essa gente para uma temporada no inferno!

Subimos as calçadas, cruzando como bondes saídos do passado e lá estava o Fernando Pessoa sentado em frente ao bar A Brasileira. Aproximei-me lentamente, tentando ver o que ele estaria fazendo naquele frio. Sentei em uma cadeira da mesa vizinha como quem não quer nada e fiquei olhando de esguelha. Ele estava com a perna esquerda apoiada na direita e parecia estar pensando em algum guardador de rebanhos, tal a concentração. Não fumava, nem bebia o Fernando. Parecia que apenas estava realmente pensando. Rígido e resistente como uma estátua de bronze.

Um dos maiores poetas e prosador da nossa Literatura, Pessoa pode ser considerado, sem nenhum erro, universal. Ele sabe que a vida é múltipla. Daí ele saber que tem que se multiplicar para entendê-la. Sabendo-se também múltipla as suas vozes, criou os seus heterônimos: Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis, sem esquecer um outro pouco falado, o Bernardo Soares e um tal de Alexander Search. Esse, procurando se esconder como um simples pseudônimo.

Se o Pessoa não fosse poeta, talvez tivesse se tornado filósofo. Foi o que eu pensei, ao olhar um pouco mais atentamente para ele. Fernando tinha apenas quinze anos e já lia de tudo, inclusive pesados tomos filosóficos. Embora tudo levasse a crer que fosse abraçar o Classicismo puro, sua produção implementou o Sensacionismo, marcando firmemente o modernismo português. Um vanguardista o Pessoa. Que mesmo no silêncio recatado de sua solidão e modéstia aparente, se desdobra em vários e ainda pensava em Orpheu. Provocando seus conhecidos, que se espantavam com palavras tão fortes vindas de um homem tão quieto.

Pensava eu ainda em tudo isso quando uma excursão de turistas se aproximou célere, vinda do Largo do Carmo, carregando suas armas e brasões. Máquinas fotográficas japonesas, francesas e italianas, cercaram o poeta imediatamente e eu não via mais nada. Mas, passados alguns segundos que pareceram durar décadas, vi o Fernando Pessoa levantar-se com certa dificuldade e sair, aborrecido, com tudo aquilo. Pareceu dirigir-se, quase correndo, para sua casa ali perto. O número 16 da Rua Coelho da Rocha.

Respeitei o desejo do poeta de ficar bem longe das pessoas, e parti. Mais alguns dias descobrindo Lisboa e seus poetas, conhecidos ou desconhecidos, e eu estaria embarcando para Paris em busca de Henry Miller. Que estaria a escrever, com certeza, algum livro importante na paz de Clichy.

domingo, 17 de janeiro de 2010

Poesia Minimal, de U. Sanches - apresentação

Zemaria Pinto*

Vai me perdoar o leitor mais escolado, mas é pensando no neófito que escrevo esta apresentação. Aquele leitor que, atraído pela capa ou pelo título, estranhou o excessivo espaço em branco ou o pouco texto. Haicai, haikai ou haiku: poema cultivado inicialmente no Japão feudal, no período Edo, a partir do século XVII, tem apenas 3 linhas. Os antigos usavam a métrica 5-7-5, mas isso não pode ser uma camisa-de-força. O mais interessante da forma haicai não é exterior: observação da natureza, ou melhor, do meio ambiente, e anulação do eu. Não ao sentimentalismo, à reflexão, ao antropomorfismo, às figuras de linguagem, aos exercícios retóricos. Arte antiintelectual, no dizer de Octavio Paz. Não sobra muita coisa, deve estar pensando o leitor. Pois é exatamente desse universo reduzido, condensado, que o haijin, o cultor do haicai, extrai sua arte.

Flagrante de um momento único, o haicai é um poema tão concentrado, que, por muitas vezes, nem percebemos a poesia nele entranhada. Daí que o desapego da métrica proporciona ainda maior liberdade, podendo resultar em maior concentração. O haicai é isso: uma explosão. Não no sentido literal da palavra: uma explosão de sensações, porque, enquanto o lírico trabalha sentimentos, o haijin trabalha sensações. Veja o exemplo tirado deste Poesia Minimal, de U. Sanches, que você tem em mãos:

Tarde chuvosa –
escondida nos bambus
a orquestra dos sapos

O primeiro verso exprime a melancolia do momento: uma tarde de chuva. Não está dito, mas infere-se, é fim de tarde e os primeiros sapos começam a cantoria. O poeta lírico certamente puxaria pela memória e faria uma relação daquele momento com algum sentimento recôndito. O haijin limita-se a registrar o momento, com os recursos que um fotógrafo ou mesmo um pintor não disporiam. Um cinegrafista, talvez. Mas não conseguiria, contudo, passar a mesma sensação que o poeta, porque ao leitor cabe compor a imagem e imaginar os sons que ela evoca, tornando-se cúmplice na criação. Esse leitor, se tiver alguma intimidade com a paisagem, despertará todos os sentidos: sentirá a chuva molhando sua pele; ouvirá o ruído da chuva e a música da saparia; perceberá o cheiro que emana daquele paul; sentirá na boca o gosto daquelas sensações todas; e sobretudo verá com todas as cores aquela paisagem cinza. Mas há um sexto sentido, que é um atributo do haijin: a percepção do que não é evidente, a intuição de que aquele momento único, que não irá se repetir jamais, é um poema, que ele, com seu poder de concisão, registra em nove palavras.

Sirvo-me ainda do poema de Sanches para ilustrar outra característica do poema-haicai, a estruturação em duas camadas: uma refletindo a condição geral do poema, normalmente identificando o que os japoneses chamam de kigo, isto é, o elemento do poema que define a estação na qual ele foi escrito; e outra refletindo o efêmero, o instante, a experiência jamais sentida: o aguçamento do sexto sentido. Aquela primeira camada anuncia – tarde chuvosa – a condição espacial e/ou temporal do poema. A repetição eterna de que se nutre a natureza. A segunda camada – escondida nos bambus / a orquestra de sapos – traz o inesperado, o estranho, que só subsiste em contato com a primeira camada. É da união das duas que se enforma o haicai.

Chega de conversa, que esta apresentação já vai além da conta. O gaúcho U. Sanches cultiva o haicai com a dignidade de um mestre. Lê-lo é mais instrutivo que qualquer teoria.

*O livro Poesia Minimal, de U. Sanches, permanece inédito.
** O livro foi lançado, em Manaus, dia 4 de Janeiro de 2014, na livraria Valer.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Fantasy Art – Galeria

Ephemeral Miracle.
Yannick Bouchard.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

os habitantes da chuva

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o velho, os peixes prateados, a rã verde. eram sempre os mesmos, e chegavam com a chuva.

o que pretendiam? de onde vinham?

nunca se soube. chegavam silenciosos. partiam mais silenciosos.

num desses temporais memoráveis, só a rã decidiu permanecer no vilarejo.

ainda hoje coaxa, solitária, no escuro brejo. coaxa, coaxa, coaxa; talvez à espera de novos temporais.


(Adrino Aragão)

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

5º Concurso Internacional de Minicontos Mulheres Emergentes

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O 5o. Concurso Internacional de Minicontos ME* comemora o vigésimo ano (2009) de existência do mural poético Mulheres Emergenpes, o sensual em cartaz. Idealizado pela escritora Tânia Diniz, e agora editado por ela e a escritora Ana Carol Diniz, em Belo Horizonte – MG – Brasil, é uma publicação trimestral, em formato de pôster, que enfatiza o feminino e o sensual nas artes. Circula no país e exterior.

Regulamento:
Para homens e mulheres

1. Trabalhos inéditos recebidos em português ou espanhol.

2. a. Máximo de 03 minicontos inéditos, com máximo de uma lauda (26/28 linhas), digitados ou datilografados em papel ofício, espaço dois, em 01 (uma) via, sob pseudônimo, além de enviados para o email: 5concursoME@gmail.com

b.Dados pessoais (nome, endereço, e.mail, telefax, profissão, RG, pequena biografia etc.) em envelope lacrado, externo, apenas pseudônimo e nome da obra, e em outro e.mail em anexo.

3. Tema livre.

4. Inscrições abertas de 11 de janeiro a 31 de março de 2010, valendo a data do carimbo postal. Encaminhar para a redação do ME junto com a taxa de inscrição de R$20,00 ou US$10, ou Euros, para estrangeiros.

Aceita-se mais de uma obra inscrita por autor desde que sob pseudônimo e taxa diferentes (do mesmo valor). Ou depositados na conta no. 39522-6/Banco do Brasil/ agencia 3032-5, desde que enviada cópia do comprovante do banco.

Redação: R. José Viola, 88 CEP 30411-370 Belo Horizonte- MG -Brasil -Telefax (31) 3332-2111

5. A premiação constará de três (3) primeiros lugares, que receberão troféu e livros, além da exemplares da publicação em Edição Especial do mural ME com os dez finalistas classificados.

6. A Comissão Julgadora será composta de 3 a 5 membros altamente qualificados e suas decisões são definitivas e irrecorríveis.

7. Os originais não serão devolvidos. A inscrição vale pela aceitação de todos os itens deste regulamento e cessão de direitos para eventual publicação.

8. O resultado será anunciado em junho/10, pela imprensa e em e-mails e cartas aos participantes. A data e local de entrega dos prêmios serão determinados na ocasião.


(*) O ME chama de microconto o que aqui chamamos de nanoconto.
(Nota do editor)

A queda do muro de Berlim, a grande roda e o pranto do médico albanês


João Bosco Botelho


Durante o pós-doutorado, em algum dia do inverno de 1992, entre janeiro e fevereiro, conheci na salle de garde, da Universidade de Paris VII, o médico albanês Halrian Plavcz. Pelo crachá de identificação atado à bata branca, todos podem saber os nomes e os países de origem dos que circulam no hospital. Durante o almoço, o nosso diálogo começou em consequência da notícia, no jornal Le Monde, analisando a alta inflação brasileira.

As salles des gardes são as salas de refeições somente dos médicos. A tradição de os médicos comerem em lugares separados dos da administração hospitalar remonta à Revolução Francesa.

Não me lembro como a conversa avançou na direção da ruína da ordem socialista-comunista, no leste europeu. Nesse momento, o médico albanês, com certa emoção, disse que estava, naquele momento e naquele lugar, porque o muro tinha sido derrubado. Em seguida, explicou que a intolerância à liberdade, antes da queda do muro, seria facilmente compreendida por meio da peça teatral A grande roda, do teatrólogo Vaclav Havel, na época, presidente da Tchecoslováquia, que estava sendo encenada no Teatro de la Ville, um dos mais de trezentos teatros parisienses em funcionamento.

A peça é essencialmente voltada à forte crítica do modelo socialismo-comunismo (ou comunismo-socialismo), que enclausurou a liberdade às ordens dos partidos comunistas.

Aos que estavam próximos, era visível o aumento da tensão emocional do Halrian, ao dizer que nunca compreendeu como os membros dos partidos comunistas, uma porção minoritária em relação à população, conseguiram se manter tanto tempo no poder. Durante alguns instantes, fitando a fumaça do cigarro entre os dedos amarelados, perguntou como as pessoas puderam ter se encantado com um partido político que, essencialmente, baniu as mais elementares noções de liberdade.

Naquele momento, relembrei para ele a viagem realizada ao leste europeu, no inverno de 1976, quando visitei vários países. É difícil esquecer o entardecer gelado do domingo, em Sofia, na Bulgária, quando fotografei os dois policiais na porta da magnífica catedral, fiscalizando os papéis de autorização para as pessoas entrarem e assistirem a missa.

O médico albanês afastou o prato de comida e ajeitou os cabelos precocemente embranquecidos. Acendendo outro cigarro, perguntou se eu era cristão. Sem esperar a resposta, elevando o tom da voz, disse que o pai dele era pastor metodista e que, inconformado com a miséria dos camponeses, acreditou nas propostas do socialismo-comunismo. Não muito tempo depois, viu os amigos que contestavam a autoridade do partido comunista serem julgados e condenados. Por ter discordado publicamente de um desses “julgamentos”, foi preso e a família nunca mais teve notícia dele. Em poucos dias, a igreja foi transformada em viveiro de galinhas e patos.

Nesse instante, vi que o médico chorava sem ruído; as lágrimas escorriam pela face muito branca. Foi quando se levantou e sem importar-se com os médicos que interromperam a refeição, a maior parte sem saber do que se passava, com a voz visivelmente alterada pela emoção, disse que a mãe dele, antes de morrer, dois anos após o desaparecimento do pai, fez ele e o irmão jurarem que tentariam fugir em direção ao oeste.

O refeitório estava em silêncio; todos ouviam e viam o pranto do médico quando ele aumentou ainda mais o tom da voz para dizer que tivera mais sorte. Seu irmão Glawcav morreu de frio e de fome antes de alcançar a fronteira italiana. Halrian soluçava e alguns médicos perguntavam o que se passava.

Vários colegas franceses e eu tentávamos dizer que toda aquela agonia havia passado. Uma médica búlgara afagava a face dele molhada pelas lágrimas. Halrian sentou-se e com a cabeça baixa continuou o pranto de dor.

Não me lembro quanto tempo passou; o grupo se dissolveu pouco a pouco, com os médicos retornando às enfermarias.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Fantasy Art – Galeria

Shi.
Julie Bell.

drops de pimenta 45

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─ Pronto, meu bem; seu frango assado, no ponto!

─ Demorou tanto que até passou a vontade...



(Zemaria Pinto)

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Livraria é templo

Marco Adolfs

O cronista, em frente à Shakespeare and Company.

Preciso escrever alguma coisa sobre as livrarias, esses lugares inventados para vender livros. Sempre penso, quando entro em uma, que na livraria estão todos os santos consagrados pela sabedoria humana.

Se para o escritor argentino Jorge Luiz Borges uma livraria era como se fosse uma espécie de paraíso, para mim qualquer livraria é sempre um campo repleto de árvores, frutos e flores.

Sou um rato de livrarias. Desses que fuçam os livros sabendo que ali existe sempre um odor característico que nos faz desejar comê-los. Mas se não posso comê-los – pelo menos literalmente falando –, levo-os para casa. Lá, os degusto como devem ser degustados. Pelo menos alguns desses.

Se livrarias são templos consagrados, existem algumas catedrais espalhadas pelas capitais do mundo. Recentemente estive em uma dessas catedrais, a Shakespeare and Company, localizada em Paris. Mas aqui vale uma observação: essas “catedrais” não são catedrais por causa do seu espaço físico, mas sim pelas suas especificidades. Não passam de portinhas atulhadas de livros espalhados quase que de forma caótica. São livrarias para você fuçar e não se perder.

A história da Shakespeare and Company é de se visitar em rápidas pinceladas. Tirei um dia, no intervalo desta escrita, só para respirá-la. Ela é uma dessas livrarias que viraram ponto de romaria.

A Shakespeare and Company começou a existir naquela Paris dos anos 20 do século passado. Por ali passaram Gide, Valéry, Picasso, Pound, Joyce e Hemingway, entre outros. Sua história daria um romance ou um filme. Para se ter idéia de seu peso, foi nessa livraria que o Ulysses, o livro famoso de James Joyce, foi editado pela primeira vez.

Na verdade existiram três Shakespeare and Company. As duas primeiras, criadas pela americana Sylvia Beach. Uma, a primeira, aberta na rue Dupuytren em 1919, e que durou apenas vinte meses, e a segunda, localizada na rue l`Odeon, 12, e que durou até 1941. A terceira e definitiva é uma imitação, usando a franquia do nome, criada em 1951 por George Whitmam, e que até os nossos dias continua na Rive Gauche, no número 37 da rue de la Bucherie. Ainda hoje, uma livraria especializada em literatura de língua inglesa.

Dois fatos notáveis sobre essa livraria merecem ser relatados rapidamente aqui. Um deles foi a edição dramática e dificultosa, pela própria livraria, como já disse, do romance Ulysses, de James Joyce, entre 1921 e 1922. E o outro caso se deu em 1941, quando um oficial alemão fez pressão para que Sylvia Beach lhe vendesse a cópia do Finnegans Wake e ela se recusou. O oficial, revoltado, ameaçou-lhe confiscar todos os bens. Sylvia imediatamente chamou seus amigos e transferiu todo o estoque da loja para um outro lugar, ludibriando o oficial nazista. Mas esse fato selou o fechamento da sua livraria.

Quanto à edição de Ulysses, além de Sylvia resolver editá-lo sem experiência alguma, houve uma verdadeira guerra de bastidores no que diz respeito a censuras prévias vindas de setores conservadores da sociedade e quanto ao serviço de datilografia e revisão exaustivos, já que Joyce mudava constantemente o texto e sua caligrafia era de difícil entendimento.

Um verdadeiro périplo, repleto de situações negativas, permeou toda a pré-edição da obra: com manuscritos de partes do livro jogados ao fogo por um ciumento marido de uma das datilógrafas, pressões de assinantes impacientes em prol da obra que haviam pago antecipadamente, e o problema crônico em um dos olhos de Joyce, que teve que ser operado às pressas, ainda com o livro sendo revisado.

Mas, com pressões de todo o tipo, o livro finalmente foi lançado em fevereiro de 1922. Já a sua comercialização posterior nos países de língua inglesa foi mais uma aventura à parte, com intervenções até de contrabandistas voluntários, que passavam a obra por guardas de fronteira, escondida entre suas roupas. Imaginem então, milhares de livros grossos, passando um por um e todos os dias, na travessia de uma inocente balsa.

Essa é uma apenas uma parte, que resolvi contar, desse nosso mundo de textos, livros e livrarias. O que devemos notar sempre é o serviço que essas livrarias – sejam elas quais forem –, prestam à iluminação, quase que de fundo religioso, à humanidade. São templos onde a intolerância e a barbárie – como diz o nosso amigo Tenório Telles, coordenador editorial da nossa livraria Valer – não podem entrar.

sábado, 9 de janeiro de 2010

Crime de lesa-patrimônio

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O que restou dos casarões geminados.
Ao fundo, o Palácio Rio Negro.
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O que assistimos nos últimos dias foi de embrulhar os estômagos mais insensíveis: um festival de mentiras sobre, afinal, de quem é a responsabilidade pela demolição das casas situadas ao lado do Palácio Rio Negro, reformadas há não mais que 10 anos. As autoridades responsáveis jogaram a culpa na construtora, contumaz financiadora de prefeitos e governadores do Amazonas, nos últimos 28 anos.
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Mentira 1: a demolição foi manual. Como se isso fizesse alguma diferença. A sequência de fotos da nossa querida Clara Nihil – a melhor fotógrafa do Jardim Brasil – escancara a mentira.
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Mentira 2: nenhuma autoridade sabia o que estava acontecendo. Os casarões ficam ao lado da Secretaria de Cultura – que, como ninguém ignora, funciona num anexo do Palácio Rio Negro –, e a 500 metros da UGPI, gestora do Prosamin, cujo nome de remédio esconde o maior crime ambiental cometido contra esta infeliz cidade de Manaus: o aterramento dos igarapés que cortavam a cidade. Estavam todos de férias?
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Mentira 3: a construtora vai refazer os casarões, sem ônus para o Estado. Então, tá. E certamente ainda sobrará um trocado para a campanha deste ano.
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É o caso de se perguntar: destruíram os igarapés que estavam aí desde os tempos míticos de Yabá Buró, a Avó do Mundo, por que nós estamos reclamando de umas casinhas de pouco mais de 100 anos?
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Que a maldição de Iurupari se abata sobre a canalha!










Texto: João Sebastião, o arrasa-quarteirão.
Fotos: Clara Nihil, a inefável.

Crime de lesa-poesia

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O que restou da casa do Seu Genaro, cantada por Astrid Cabral.


Geografia provinciana
Astrid Cabral


Manaus um ponto perdido
no mapa. Ali, desgarrada
entre paredes de verde.
Mas iam e vinham navios
trazendo franjas do mundo.
Europa e Península Ibérica
surgiam das próprias pedras
das avenidas e esquinas:

a Itália na taberna
de seu Vicenzo Arenaro.
Também no livro de Dante
que o sapateiro traduzia
rodeado de crianças
a mostrar-lhes céus e infernos
toda a celeste geografia.

Seu Genaro, já grisalho
fundava o reino de Espanha
atrás de barris de vinho
tinas mantas de banha
vinagres azeites doces
réstias de alho e cebola.

Seu Carvalho, o português
vendia bolos e broas
à vontade do freguês
mais rala-rala e refrescos
de guaraná e groselha.
Síria China e Argentina
vinham na gorda maleta
do turco mais seus bigodes:
damascos crepes Chambleys.

A França era ali na Madame
Marie
e no Aux Cent Mille Paletots
a moda do dernier cri.

E passavam barbadianas
sob chapelões de palha
ao sol dos dias em brasa.
E um fugitivo das Guianas
testemunhava a Ilha do Diabo!

O mundo estava em Manaus
Manaus estava no mundo.
Foto: Clara Nihil.

Fantasy Art – Galeria

A jamais.
Séverine Pineaux.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

o grito

a cidade acordara com o espocar dos foguetões. nas ruas e avenidas, as faixas e bandeirinhas. no céu sem nuvens, o aeroplano fazia acrobacias incríveis, deixando para trás mensagens de fumaça.

súbito, os acordes da banda anunciaram a chegada do carro oficial. os aplausos e foguetórios explodiram frenéticos, ao aceno do imperador.

da multidão, veio o único grito não-ensaiado.

– morra o imperador!

foi então decretada a caça às últimas bruxas.

(Adrino Aragão)

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Craniotomia pré-histórica

João Bosco Botelho


Quaisquer que tenham sidos os motivos que levaram o homem pré-histórico a praticar a craniotomia ─ abertura dos ossos do crânio como ação intencional do homem sobre outro homem ─, no Neolítico, há mais ou menos 10.000 anos, não podem estar dissociados da imemorial luta contra o sofrimento, onde a solidariedade estabeleceu as bases da sobrevivência.

Muitos achados confirmam atitudes solidárias entre os nossos ancestrais distantes. Uma das mais destacadas, envolvendo a intenção cooperativa, é a representada pelos ossos achados na caverna La Lave, na França, de um homem pré-histórico, que sofreu ferimento perfurante de uma lança com ponta de pedra, pela frente, no osso sacro, no final da coluna. Esse hominídeo sobreviveu muito tempo após a ajuda de alguém que arrancou parte externa do objeto perfurante, cuidou do ferido e o alimentou. O tempo que a vítima viveu, depois do ferimento, pode ser calculado, com aproximação, a partir da regeneração óssea em torno da lesão no osso.

Permanece como um marco nas atitudes cooperativas, entre os nossos ancestrais, na busca dos mistérios do corpo, os crânios trepanados na pré-história. Os crânios foram abertos intencionalmente, sem intenção de matar, com meticuloso cuidado, em vários lugares da Europa, da Ásia e da África, diferenciando peremptoriamente dos outros crânios dilacerados pelo trauma com intenção de matar.

Muitos indivíduos submetidos às trepanações cranianas sobreviveram vários anos após a cirurgia, o suficiente para que as bordas do osso cortado se regenerassem parcialmente, crescendo de modo centrípeto, comprovados pela microscopia revelando osteogênese, só possível no organismo vivo.

Os locais escolhidos no crânio pelos curadores pré-históricos no acesso para cortar os espessos ossos parecem ter significações específicas. Alguns fizeram as craniotomias nos ossos temporais, outros nos parietais ou no frontal, retirando fragmentos ósseos com formas geométricas diferentes, de poucos centímetros, até grandes aberturas, como a do crânio achado em Collombey‑Muraz, na Suíça, da qual o doente não sobreviveu.

A extensão territorial e a diversidade de onde e como as craniotomias foram realizadas contribuíram para supor que eram muito difundidas e fizeram parte de um conjunto maior de intervenções do homem no homem, assinalando um momento específico na luta contra a dor e o sofrimento dos entes queridos. O “médico”, naquele momento, deixou de ser mero espectador para tentar mudar, com a sua ação, o curso de um acontecimento na saúde.

Não importa qual tenha sido o motivo para que houvesse a concordância do “médico” e do “doente”, respectivamente, para aceitar e executar a intervenção como necessária. O fato é que elas foram realizadas em grande número e é pouco provável que todas tenham sido sob violência coercitiva.

A frequência das craniotomias, nos esqueletos estudados, surpreende ainda mais. No sítio neolítico de Saint‑Martin‑la-Rivière, na Áustria, após a exumação de sessenta crânios pré-históricos, cinco deles (8%) foram trepanados.

Essas cirurgias, numerosas, executadas em torno de há 10 mil anos, encontraram a força necessária à reprodução a partir do momento em que o homem desejou mudar o curso da vida, depois de reconhecer a importância das funções vitais abrigadas na intimidade do cérebro. O cotidiano e, em seguida, o conhecimento historicamente acumulado, tornaram transparente aos ancestrais que o trauma intencional ou não no crânio poderia determinar a morte imediata, portanto diverso dos outros traumas.

Mesmo com esses pressupostos, não há como saber as razões pelas quais as craniotomias foram realizadas, de modo muito semelhante, por diferentes povos da Europa, Ásia, África, há 10.000 anos, e, mais recentemente, pelas civilizações da América pré‑colombiana, sem que os grupos humanos tenham tido contato interétnico. Na cultura pré‑incaica de Tiawanaku e na incaica, as escavações arqueológicas não param de revelar as múmias, magnificamente conservadas, que foram submetidas à trepanação em vida.

Talvez seja possível unir alguns elos para teorizar o entendimento de como atuaram certas associações simbólicas no aparecimento da trepanação pré‑histórica. O culto do crânio é um das mais importantes. O conhecimento empírico historicamente acumulado já era suficiente para dar ao homem neolítico a importância do conteúdo do crânio. Essa observação forneceu a sedução para que os nossos ancestrais iniciassem a compreensão do crânio com o seu conteúdo como parte sagrada do corpo.

O professor Leroi Gurhan, já falecido, um dos mais respeitados estudiosos da pré-história, a partir do achado de um altar primitivo composto com um crânio humano na porção central, sugere a possibilidade de ter existido cultos específicos ao crânio.

O valor da cabeça na vida de relação pode ter sido suficiente para justificar o culto da estrutura protetora ─ o crânio ─ e a intencionalidade para abrir, por meio das craniotomias, para conhecer e tomar posse das qualidades.

Craniotomia de 10 mil anos, com sobrevivência.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Fantasy Art – Galeria

Luis Royo.

drops de pimenta 44

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─ Cerveja ou chope?

─ Posso pedir um vinho?

─ A quem você está querendo impressionar?

(Zemaria Pinto)

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Os mistérios de uma fotografia

Rogel Samuel*


Como se pôde obter essa fotografia?

Fileto Pires Ferreira concluiu as obras do Teatro Amazonas, que estavam paradas, e o inaugurou em 31 de dezembro de 1896. Mesmo assim, no dia da inauguração, neste dia, os andaimes da construção do teatro ainda estavam lá, talvez, porque o teatro não estava inteiramente concluído. Inaugurou-se o teatro naquele dia com La Gioconda, de Amilcare Ponchielli, sob a regência do maestro brasileiro Joaquim de Carvalho Franco, que foi diretor da Academia Amazonense de Belas Artes.

Como se pôde obter aquela fotografia aérea?

A foto deve ser da época da inauguração. Governo Fileto Pires Ferreira.

Como não havia helicóptero, a foto só pôde ter sido tomada de um balão!

Mas como fotografar de um balão com as câmeras fotográficas da época?

Quem foi o autor da foto? Foi George Huebner (1862-1935), um fotógrafo alemão que se estabeleceu em Manaus, onde viveu cerca de 50 anos, e onde faleceu.

Diz Mário Ypiranga que a foto é da edição de George Huebner, de Dresden, Alemanha. O livro está publicado hoje: George Huebner 1862-1935: um Fotógrafo em Manaus, de Daniel Schoepf.

Sobre George Huebner, leia-se de Andreas Valentin:

http://www.studium.iar.unicamp.br/17/02.html?studium=index.html

Observando bem, se vê em primeiro plano os fortes muros de contenção que foram construídos e que existem até hoje como o que hoje aparece na Rua Simão Bolívar e serviriam para conter o arrimo do Palácio do Governo, a maior obra de Eduardo Ribeiro, maior do que o Teatro Amazonas. O Palácio nunca foi finalizado, e sobre suas fundações Álvaro Maia construiu a escola normal tal como existe até hoje. Os muros estão lá, para confirmar. O Palácio seria, se construído, a maior construção do Brasil de sua época!

Naquele espaço depois do muro há umas casas que deviam abrigar operários ou materiais e muito mato. Ali hoje estão ruas e casas.

Atrás, à direita da foto, a observação é mais curiosa: onde está o Palácio da Justiça? Está ali, ainda quase no chão, está em obras. As obras podem ser vistas se ampliar a foto.O que se vê é a estrada tosca do que viria a ser a Avenida Eduardo Ribeiro e a Matriz, no canto superior direito. Dá para ver os postes de iluminação no meio da Avenida, um luxo para época. São postes com várias lâmpadas cada um, cada um tem três fileiras de lâmpadas, contei 30 lâmpadas em cada poste.

Mas atrás da igreja Matriz há uma construção enorme. Que será aquilo? Perto do quarto poste se pode distinguir a casa de Eduardo Ribeiro, talvez. Observe no primeiro plano que o terreno desce e aquilo devia dar num lago ou pântano e essa depressão existe até hoje, atrás da Academia de Letras. Aquele terreno era um pântano.

É uma foto aérea, rara para a época.

Foto extraordinária.

*Publicado no blog de Rogel Samuel.

Manaus, amor e memória VIII

Teatro Amazonas, em construção, meados dos anos 1890, visto da atual Ramos Ferreira.
A rua que passa à direita é a que viria a ser a Eduardo Ribeiro. As torres ao fundo são da Matriz.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Renovação


Tenório Telles


Se a primavera é a estação da alegria, das cores e da beleza, o inverno é a renovação, a chegada das águas que umedecerão a terra, saciarão as plantas e farão germinar as sementes. Com o ciclo das águas a vida se renova, reafirmando a promessa de continuidade da existência, de superação de nossas fragilidades e de reencontro com o que de melhor se perdeu em nós. Metáfora dessa renovação, expressa na impermanência do tempo e no caráter cíclico da natureza, é o nosso existir – que se cumpre como as estações, em que cada momento, com suas circunstâncias e sentidos, acrescenta-se ao que somos: e, assim, de semente nos tornamos planta, florescemos, legamos ou não nossos feitos e nos perpetuamos nas sementes que geramos, e que engendrarão novas árvores, propiciando o milagre da colheita e da reatualização do existir dos seres e das coisas.

E assim “floresce ao longe o vale mais sombrio”. O verso do poeta alemão Ludwig Uhland é expressivo da natureza renovadora da “máquina do mundo” – essa grande e misteriosa engrenagem que gera a bruteza da pedra, o indomável oceano, o furor dos ventos, mas nos brinda igualmente com a delicadeza das flores, a alegria dos passarinhos e o sorriso das crianças. Se a natureza é capaz de criar coisas tão grandiosas e belas – que tornam a vida uma promessa de felicidade permanente, não é impossível que faça florescer “o vale mais sombrio” do humano coração, em que se refugiam os espectros da ambição, da mesquinhez e da crueldade. Que as águas e a luz cheguem a essa paragem do Ser e esse vale de sombras e de morte se transforme num jardim, onde germinem as sementes do bem, da tolerância e da compaixão.

Renovação é a palavra que melhor traduz este momento da existência. Que melhor expressa o anseio de uma humanidade cansada de guerras, injustiças e incompreensões. Renovação é a metáfora viva desse desejo recalcado, sem face e sem voz, que habita nosso Ser – esse anseio de transcendência, de diálogo com o inefável e de reencontro com a essência que nos faz humanos e que jaz soterrada sob os escombros de uma época banalizada pela maldade, cinismo e indiferença. De um tempo inglório, em que a covardia triunfa sobre a coragem e a nobreza. Em que os maus assumiram o governo do mundo e implantaram o reinado da mentira, da pilhagem e da covardia.

A vida, entretanto, é maior. É maior que a força das armas; é superior ao poder dos tiranos; é luz que ofusca e dilui a mentira; é dignidade que envergonha a covardia, fazendo-a fenecer. A vida, com sua nobreza e sua lei, é a espada que pune os injustos, os que causam a ruína do povo e fazem sofrer as crianças, os velhos e os deserdados da sorte. Apesar dos desacertos do mundo, o dia continua nascendo, os passarinhos cantando, as flores colorindo e perfumando nossa existência. Os poetas seguem alegrando nosso espírito com seus versos mágicos. Os homens de boa vontade e os que sonham a utopia tecem, com os fios da esperança e da verdade, as malhas do novo tempo que refulge no horizonte. Talvez seja o momento de sairmos “em busca do coração perdido, do espírito de compaixão” que está adormecido em cada um de nós e também nos bichos, nas pedras, nas flores, nas águas, nas estrelas, no sol, nos passarinhos. E também em ti, caro leitor.

domingo, 3 de janeiro de 2010

Lirismo, sensualidade e humor na poesia de Cândida Alves

Zemaria Pinto*


A poesia lírica tem três mil anos, e em que pesem as mudanças de forma, nem tantas, mantém-se rigorosamente fiel ao seu conteúdo: reflexo(e)s do ego do poeta. Talvez isso explique a dificuldade de se vendê-la: é uma arte essencialmente solitária, resultante de um trabalho de (auto)contemplação do mundo, o que implica, na relação escritor x leitor, na existência de uma predisposição cúmplice, por parte deste.

A poesia lírica não objetiva divertir ou educar. Como se trata da exposição de uma postura particular, única, diante da realidade, só será plenamente apreciada se o leitor-receptor estiver em perfeita sintonia com o poeta. Daí que o momento mágico do poeta só se revela integralmente ao leitor-poeta, aquele que, desarmado das defesas do óbvio, vê o poema por dentro, muito além da palavra impressa.

Seria pedante e ocioso desfilar aqui as razões que filósofos, críticos literários e até mesmo alguns tímidos poetas, enumeram para explicar o intimismo e a solidão do lírico, que, poetizando para si, tem como história as próprias lembranças recontadas e como geografia, o limite que se lhe impõem os olhos, reinventando-a.

A poeta Cândida Alves é herdeira legítima dessa tradição milenar. Sua poesia é simples sem ser banal e sensual sem ser vulgar. O humor de Cândida é amargo – afinal, dói rir de si mesma. Feminina, sua poesia é uma delícia de incorreção política. Por outro lado, a linguagem de Cândida é viva, pulsante, mas econômica, essencial:

               Bate à porta
               come, dorme, sai e
               bate a porta

Este poema ilustra quase todas as qualidades acima listadas. Releia-o. Repare na sutil diferença entre o primeiro e o terceiro versos. O segundo verso, por sua vez, em três palavras, realiza uma interação precisa entre tempo e circunstância, ao mesmo tempo em que registra, na sequência de movimentos entre as imagens congeladas da porta, a entediante rotina da mulher solitária.

Aliás, é fundamental frisar essa dicção feminina na poesia de Cândida Alves. Não há meio termo. O eu lírico que fala para si mesmo os poemas de Todo corpo é feminino – às vezes mulherzinha, como em “Ele sempre me fode”:

               acorda cansado, azedo
               mas ainda me fode
               acabando se manda
               e não diz nem se volta
               e definitivamente
               me fode

Às vezes revoltada, como em “É quase de manhã”, onde depois de lamentar-se da velha rotina de cama e mesa, ela proclama:

               de agora em diante
               eu que vou te comer

Às vezes apaixonada e feliz, mas nunca fútil, com recursos técnicos complexos inseridos na musicalidade do poema, tirando de letra o fio de navalha que separa a grande poesia da simples pieguice, como neste “Eu te amo”:

               Teu beijo
               me escorre na cara
               escancaras na boca
               um bocejo (...)


               Vou à geladeira
               encontro uma pera
               e como
               sentada na pia


               Um gato que mia lá fora
               me lembra na hora
               meu gato sozinho na cama

O humor e o amor são fichinhas marcadas do lirismo. E, na poesia de Cândida, eles se realizam por inteiro, mesmo quando o eu lírico ultrapassou o estágio da revolta, chegando à resignação. O sofrimento provoca um sorriso cruel, sem dentes, sem lábios, que explode no peito da poeta, como em “Alívio final”:

                Acho que estou morta
                sinto-me toda torta
                nessa carcaça de pele (...)


                devo estar mesmo morta
                toda torta nessa farofa
                em que se tornou a vida
                pra onde olho não vejo saída
                sem ter que voltar atrás

Penso que é bobagem a distinção entre poesia masculina e feminina. Há que ser de qualidade para ficar. Se for ruim o tempo será seu coveiro. Mas quando se chama a atenção para o fato é para notar a reduzida participação feminina na literatura amazonense de qualidade. Há mais de dez anos publicou-se uma Antologia poética da mulher amazonense. Candoca, menina, não está lá. Pontificavam, então – a linguagem de apresentação é rebuscada e vazia, eivada de adjetivos vãos –, as poetas Violeta Branca e Astrid Cabral. Duas gerações que se encontravam para determinar o fazer poético da mulher amazonense. Cândida, vórtice voraz da feminil paixão, é o vértice que faltava para completar a figura perfeita – e encerrar o século. Que assim seja.


(*) Apresentaqção do livro Todo Corpo, de Cândida Alves, Edições Governo do Amazonas, 2000.