Amigos do Fingidor

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Renovação


Tenório Telles


Se a primavera é a estação da alegria, das cores e da beleza, o inverno é a renovação, a chegada das águas que umedecerão a terra, saciarão as plantas e farão germinar as sementes. Com o ciclo das águas a vida se renova, reafirmando a promessa de continuidade da existência, de superação de nossas fragilidades e de reencontro com o que de melhor se perdeu em nós. Metáfora dessa renovação, expressa na impermanência do tempo e no caráter cíclico da natureza, é o nosso existir – que se cumpre como as estações, em que cada momento, com suas circunstâncias e sentidos, acrescenta-se ao que somos: e, assim, de semente nos tornamos planta, florescemos, legamos ou não nossos feitos e nos perpetuamos nas sementes que geramos, e que engendrarão novas árvores, propiciando o milagre da colheita e da reatualização do existir dos seres e das coisas.

E assim “floresce ao longe o vale mais sombrio”. O verso do poeta alemão Ludwig Uhland é expressivo da natureza renovadora da “máquina do mundo” – essa grande e misteriosa engrenagem que gera a bruteza da pedra, o indomável oceano, o furor dos ventos, mas nos brinda igualmente com a delicadeza das flores, a alegria dos passarinhos e o sorriso das crianças. Se a natureza é capaz de criar coisas tão grandiosas e belas – que tornam a vida uma promessa de felicidade permanente, não é impossível que faça florescer “o vale mais sombrio” do humano coração, em que se refugiam os espectros da ambição, da mesquinhez e da crueldade. Que as águas e a luz cheguem a essa paragem do Ser e esse vale de sombras e de morte se transforme num jardim, onde germinem as sementes do bem, da tolerância e da compaixão.

Renovação é a palavra que melhor traduz este momento da existência. Que melhor expressa o anseio de uma humanidade cansada de guerras, injustiças e incompreensões. Renovação é a metáfora viva desse desejo recalcado, sem face e sem voz, que habita nosso Ser – esse anseio de transcendência, de diálogo com o inefável e de reencontro com a essência que nos faz humanos e que jaz soterrada sob os escombros de uma época banalizada pela maldade, cinismo e indiferença. De um tempo inglório, em que a covardia triunfa sobre a coragem e a nobreza. Em que os maus assumiram o governo do mundo e implantaram o reinado da mentira, da pilhagem e da covardia.

A vida, entretanto, é maior. É maior que a força das armas; é superior ao poder dos tiranos; é luz que ofusca e dilui a mentira; é dignidade que envergonha a covardia, fazendo-a fenecer. A vida, com sua nobreza e sua lei, é a espada que pune os injustos, os que causam a ruína do povo e fazem sofrer as crianças, os velhos e os deserdados da sorte. Apesar dos desacertos do mundo, o dia continua nascendo, os passarinhos cantando, as flores colorindo e perfumando nossa existência. Os poetas seguem alegrando nosso espírito com seus versos mágicos. Os homens de boa vontade e os que sonham a utopia tecem, com os fios da esperança e da verdade, as malhas do novo tempo que refulge no horizonte. Talvez seja o momento de sairmos “em busca do coração perdido, do espírito de compaixão” que está adormecido em cada um de nós e também nos bichos, nas pedras, nas flores, nas águas, nas estrelas, no sol, nos passarinhos. E também em ti, caro leitor.