Amigos do Fingidor

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

As memórias sociogenéticas amparando outras teorias do conhecimento

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João Bosco Botelho


Sem esquecer Nietzsche: “Não há fatos, somente interpretações”, é possível pensar, sem receio dos exageros da paixão, que o rápido aumento do desvendar da microestrutura humana, em níveis moleculares, nos últimos vinte anos, está aproximando a ciência dos limites ainda poucos conhecidos da memória, fonte majestosa de todo o conhecimento. Sob essa perspectiva, torna-se razoável rever as teorias do conhecimento e aproximá-las do genoma, a origem da vida e da morte.

A abordagem para conceber outra teoria do conhecimento obriga outras ligações, diversas das concebidas, por exemplo, a partir dos saberes de Locke, insistindo na idéia da “tabula rasa”, e dos de Marx, maximizando o coletivo sobre o pessoal.

Torna-se cada vez mais difícil deixar de lado a importância do pessoal. Nas mais conceituadas universidades, onde se produz ciência voltada ao desvendar da matéria, na micro e na macrodimensão, fala-se cada vez menos em Locke e Marx e, cada vez mais, no genoma.

Os estudos de G. K. Beauchamp, K. Yamazaki e E. A. Boyse (Harvard University) estão ajudando a transpor os genes da histocompatibilidade com o social. Sob rígido controle metodológico, os estudos experimentais têm demonstrado que camundongos machos e fêmeas com histocompatibilidades diferentes se mostraram mais dispostos ao acasalamento. Esse fato explicaria uma memória sociogenética para evitar a consanguinidade, pelo menos entre os animais estudados.

Não é mais possível minimizar o valor dos novos saberes, notadamente, a genética, impondo fantásticas mudanças conceituais no modo de compreender as formas e as funções do corpo humano, nas menores dimensões da matéria.

Por outro lado, apesar das muitas interpretações de como o ser humano produz os conhecimentos, como as propostos por Locke e Marx, nada mudou na maneira humana de fugir da dor, ao longo de milhares de anos, gerando padrões comportamentais que impulsionam homens e mulheres, em todas as circunstâncias, na busca do prazer (Botelho, João Bosco. Arqueologia do prazer, 1988).

Na realidade, essa questão – o medo da dor – não é nova na estrutura do pensamento filosófico. Os epicuristas compreendiam a filosofia, a essência do conhecimento, como a perene ambição à felicidade. A “felicidade epicurista” pode ser entendida como a possibilidade de existir condições, no convívio humano, em que o prazer torna-se preponderante sobre a dor.

Mesmo aceitando ser impossível articular as teorias do conhecimento e os saberes em si mesmos, fora do contexto onde são produzidos, não há dúvida quanto à fantástica repetição de atitudes humanas de fuga à dor ou a simples ameaça de situação dolorosa, nos quatro cantos do planeta, desde os primeiros registros.

Seria possível compor teorias dos saberes desconsiderando a arqueologia da dor e do prazer?

Parece claro que esse conjunto comportamental, evidente nas relações sociais, teve forte influência na concepção do jusnaturalismo aristotélico, dominando o ajuizamento de valor do equânime. Dominou o pensamento filosófico até o século XVII, quando a idéia do justo sofreu transformações, nos dois séculos seguintes, sob a influência do historicismo de Hobbes e Rousseau.

A intolerância do contrato social engessado na obediência irrestrita às leis, esquecendo a importância do prazer individual, foi flexibilizado por Locke que admitiu ser justa a ruptura do consentimento coletivo, quando a dor pessoal de muitos, determinada pelo abuso do poder dominador, chegasse a níveis insuportáveis.

Assim, sendo possível à força da ação coletiva fixar valores quanto ao justo e ao injusto, a partir da conjuntura social da época, Hegel admitiu os saberes a partir da construção de uma sociedade planificada, onde os conhecimentos, fortes e indissolúveis em si próprios, seriam capazes de conceber novos saberes aptos a substituir os historicamente acumulados em torno da estrutura da família e dos laços consanguineos.

A antítese do jusnaturalismo aristotélico iria tomar força social, até certo ponto dogmático, com forte tendência destrutiva social, por meio dos escritos de Marx e Engels. As vontades pessoais, base da construção do coletivo, nada representariam, quando colocadas em confronto com os interesses do Estado Planificador Coletivista.

Apesar de Marx ter admitido a dependência entre o vínculo social com as necessidades pessoais, assinalando a produção como societária, sempre reafirmou o domínio do coletivo deslocando o único. A intolerância do marxismo pós-Marx, ao tratar o subjetivo humano, aprofundou a rachadura que contribuiu para desmoronar a ordem marxista, como um castelo de cartas, atingida pela queda do muro de Berlim.

A proposta teórica das memórias sociogenéticas (Os limites da cura, Botelho, João Bosco. 1997) admite certos instrumentos sociais, formados ao longo da filogênese e da ontogênese, por meio dos quais, a ordem genética interage com o social em contínuo processo de aperfeiçoamento com o objetivo de compor atitudes corporais e sociais para fugir da dor e procurar o prazer.

Os instrumentos sociogenéticos mais antigos que conduzem todos os animais multicelulares à fuga da dor – inclusive, e especialmente, os humanos – como adaptação à vida, pertencem ao passado filogenético comum, quando se estabeleceram ligações biológicas entre áreas cerebrais pré-neocorticais e o genoma, e estão essencialmente contidas nas múltiplas manifestações e metáforas da sexualidade, cooperação e territorialidade.

Os instrumentos sociogenéticos mais recentes que compõem o formidável conjunto articulador humano na busca permanente ao prazer e aos seus significantes simbólicos, estabelecendo estreitas conexões entre o genoma e o social, estão atados à origem dos nossos antepassados mais próximos, há poucos milhões de anos: a linguagem, dicotomia do corpo-matéria (ser-tempo) e do corpo-não-matéria (ser-não-tempo), as relações médico-míticas, o dom e a dor-histórica.

Sob a égide dos novos conhecimentos, as teorias do conhecimento serão atualizadas quando for acrescentado o sociogenético aos pressupostos teórico-idealista (Hegel), material (Feuerback), histórico-social (Karl Marx), biológico (Darwin) e comportamental (Freud).

Desta forma, as memórias sociogenéticas são os circuitos biológicos que articulam a herança genética ao social e vice-versa e em torno dela, com a tolerância que caracteriza o conhecimento historicamente acumulado, irão florir outras teorias do conhecimento.