Amigos do Fingidor

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Novo movimento mítico da coesão social: do comunismo às drogas

João Bosco Botelho

Durante muito tempo, no Ocidente, o relato mítico foi equivocadamente compreendido como sinônimo de fábula. Ao contrário, em muitas outras sociedades, a mitopoese, plena de sig­nificado metafórico, mantém elos fortes com a coesão social do grupo.

As reflexões em torno do mito remontam à Grécia. O pré‑socrático Xenófanes (570‑528 a.C.), da escola eleata, combateu as representações míticas de Homero e Hesíodo. Dessa forma, é possível que tenha contribuído para que o logos fosse entendido como oposto ao mito.

Durante o processo da cristianização do Ocidente, quando interessava ao poder papal, as autoridades eclesiásticas aumentaram a oposição, forçando o mito como sinônimo de falsidade. Sob esse prisma, a teoria de Lévy‑Bruhn da passagem de um estado humano pré-lógico simbólico e mítico para outro racional e lógico, de certo modo, retrata essa oposição de fundamentação política.

Os trabalhos antropológicos de campo, nos últimos cinquenta anos, compuseram logos e mito profundamente interligados e dependentes, facilitando o entendimento dos mitos como complexas composições das realidades culturais, ligados às histórias de cada sociedade, provocando efeitos mais ou menos impactantes sobre as pessoas, podendo determinar mudanças de comportamento.

Considerando a possibilidade de as ações políticas poderem se apropriar dos efeitos dos mitos para interferir no convencimento coletivo, é possível entender sob essa ótica alguns convencimentos coletivos bem sucedidos, no passado recente e na atualidade, identificando coisas ou pessoas como o “mal” que deve ser aniquilado. Nesse complexo conjunto a grande mídia, amparada pela moderna tecnologia audiovisual e escrita, instrumentalizou os meios para atingir, simultaneamente, milhões de pessoas. Essa força incorporada aos poderes políticos não encontra paralelo no passado da humanidade.

De modo geral, respeitando-se as representações metafóricas, as notícias dos grandes sistemas de comunicações, alinhavadas aos poderes políticos, mantêm o chamamento da milenar luta mítica do BEM contra o MAL, adaptando-se às transformações sociais.

Alguns estudiosos reconheceram que Marx pode ter utilizado um dos grandes mitos da escatologia do mundo asiático‑mediterrâneo: o justo sacrificado (identificado com o proletariado) para justif­icar a mudança ontológica do mundo. A função soteriológica do proletariado, proposta por Marx e Engels, acabou incorporando um significado messiânico, simulando a luta do BEM (comunismo) atacando continuamente o MAL (capitalismo).

Contrariamente, outros historiadores respeitados, como Croce e Gasset, discordaram do “messianismo marxista”, argumentando ser impossível superar todas as contradições nas idéias políticas. A socióloga Marilena Chauí esclarece melhor, no seu livro O que é ideologia: “Por este motivo, cometemos um engano quando imaginamos ser possível substituir uma ideologia falsa (que não diz tudo) por uma ideologia verdadeira (que diz tudo)... Porque uma ideologia que fosse plena ou que não tivesse vazios e brancos, isto é, que dissesse tudo, já não seria ideologia.”

Com a queda do muro de Berlim, para compor novo movimento mítico de coesão social, nos anos noventa, os poderes políticos substituíram o comunismo pelas drogas. Um indicativo forte dessa tendência foi a entrevista do diretor do FBI William Sessions, durante passagem por São Paulo (Folha de São Paulo, 19 jun 91). De acordo com as declarações desse policial, os comunistas deixaram de ser preocupação do governo dos Estados Unidos. A priori­dade atual é o combate às drogas, como numa verdadeira guerra com todos os envolvimentos conceituais, econômicos e estratégicos.

Até pouco tempo, não havia interesse político para reprimir o narcotráfico. Ao contrário, em alguns casos, prevaleceu a proteção descarada do traficante em nome da luta contra o comunismo internacional. Um dos exemplos marcantes foi o ex-ditador do Panamá Manuel Noriega.

O rápido desmonte da ordem comunista, a partir da queda do muro de Berlim, impôs ao vencedor a necessidade de apressar o movimento mítico de coesão social em outra direção. Não foi simples coincidência a cruzada mundial, com amplo espaço na grande mídia, empreendida pelo casal Reagan, contra as drogas, em maio de 1988.

Naquela ocasião, o governo americano divulgou uma grande pesquisa nacional de opinião evidenciando que 63% dos ameri­canos consideravam a droga como o principal problema contra 21% por cento que atribuía o perigo ao comunismo (Folha de São Paulo, 1 mai 88).

Esse rápido processo do movimento mítico da coesão social, do comunismo à droga, foi muito bem percebido pelo dita­dor Fidel Castro. Quando o mundo tomou conhecimento, em 1989, que o general Arnaldo Uchoa, antigo dirigente da revolução cubana e comandante das forças cubanas de ocupação em Angola, era narcotraficante, um "tribunal de ética militar", em processo judicial sumário, o condenou à morte por fuzilamento.

Não é necessário ser muito esperto para concluir que os 300 bilhões de dólares movimentados anualmente pelo narcotráfico, não podem ter sido estruturados da noite para o dia. A gravidade da situação é conhecida, há muito tempo, pelos serviços de segurança dos países do Primeiro Mundo. Só para citar um exemplo, a produção de heroína, no Paquistão, em 1986, foi de 140 toneladas, contra 40 toneladas em 1984 (Jornal do Brasil, 9 abr. 1987).

O estudo realizado pelo poderoso Departamento de Agricul­tura dos Estados Unidos, em 1984, demonstrou que 35% dos exportadores colombianos, naquela época, estavam diretamente relacionados à cocaína (Jornal do Brasil, 19 nov.1989). Naquela época, o volume de dinheiro gerado pelo narcotráfico, em Miami, envolvia uma fortuna próxima do faturamento da Philip Morris, uma das maiores produtores de cigarro do mundo.

Sem penetrar nas indiscutíveis questões das dependências químicas que interferem da ordem social, no momento, as drogas proibidas são as encarnações do MAL que devem ser combatidas e vencidas.