Amigos do Fingidor

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Pessoa, Miller e Keats - parte I

Marco Adolfs


Abril passado estive na Europa em viagem de férias. Viagem programada que finalmente pude realizar. Fui com a minha esposa Dora a Portugal, França e Itália. Mas, não só para filmar e fotografar tudo o que via - os ícones do velho continente -, mas também com o intuito e visitar Fernando Pessoa em Lisboa, Henry Miller na França e o poeta Keats em Roma. Entre outros escritores e também pintores que nos legaram suas obras a partir de uma visão eurocêntrica, muitas vezes romântica, quase sempre clássica ou reveladora. Uma viagem cultural em essência, visitando antes de tudo as ruas dessas capitais, os museus e as homenagens variadas dedicadas ao espírito humano, em forma de esculturas e arquiteturas gigantescas. E, como em uma máquina do tempo acionada pela memória do que já tinha sido lido, senti-me transportado para a história desses intelectuais e de suas existências fundamentais em um velho mundo que se tornou essencial para toda a humanidade.

Cheguei a Lisboa com o frio do inverno enfrentando a força da primavera que se avizinhava resoluta. Nas ruas e metrôs, os portugueses corriam em busca de recuperar o tempo perdido durante os anos passados de salazarismo. Em seus bolsos, agora tilintava o Euro. Forte e vigoroso incentivo ao desenvolvimento. Salazar era apenas uma página virada de que todos riam ou se lamentavam. Explicando uma parte e justificando outra de Portugal. Mas agora, Salazar e seu mundo pertenciam a um velho e inconcebível Portugal, só visto de relance em revistas de exaltação desse tempo, amarelecidas e esquecidas em uma banca da Feira da Ladra. E que nenhum português, em sã consciência, desejava comprar ou sequer folhear. Não haveria lugar mais justo para Salazar e seu tempo ficarem esquecidos do que na Feira da Ladra. Tempos roubados aos portugueses, esses de Salazar.

Mas, eu estava querendo mesmo era encontrar Fernando Pessoa. Disseram-me, ainda no Brasil, que ele vivia sentado em uma mesa do bar A Brasileira, ali no Largo do Chiado, a tomar os seus aperitivos ou café; e falando com seus heterônimos enquanto escrevia. Ou então, que ele poderia ser encontrado, ou na tabacaria A Havaneza, bem ao lado do bar; ou na Licorista, na Travessa do Arco do Sapateiro, lá pros lados do Rossio. Lugar onde gostava de tomar uns goles de uma bebida alcoólica preparada artesanalmente. Daí ter sido proibida.

Estávamos hospedados no Campo Pequeno, bem perto da Praça dos Toros, e teríamos, segundo informações, que pegar o metrô e nos deslocar até o Rossio. De lá, era só caminhar um pouco pelas charmosas e ladeirosas ruas de Lisboa até o Chiado. Lá, com certeza quase que absoluta, estaria o Fernando pensando ou matutando como escrever algum outro poema ditado pelo Álvaro de Campos.

Lisboa é uma cidade pequena com alma grande. Que tem que ser descoberta perdendo-se em suas ladeiras e praças. Ainda é uma capital bucólica que guarda seu passado distante como se ele já não tivesse passado. Isso é muito bom. Todas as cidades deveriam ser assim. Um provincianismo gostoso, uma personalidade madura e um jeito de quem sabe viver sua vida de todos os tempos. Mas assim é Lisboa. Uma mulher bonita cantando um fado melodioso. Ou então, quase como a casa da gente, com tios e primos diversos circulando ao redor.

Fazia ainda muito frio quando saímos da estação do Rossio, em busca de encontrar o Fernando. Caravanas ridículas de turistas ansiosos, tocados como gados por algum esperto guia, circulavam pela grande praça fotografando e filmando tudo o que encontravam pela frente. Como se quisessem devorar os pedaços de pedras e esculturas da velha Lisboa Pombalina. Eram bárbaros. Os novos bárbaros a invadir a Europa.

Uma excursão de brasileiros passou rente aos meus ouvidos e eu escutei bem uma voz feminina quase a gritar que estava era a fim de beber um vinho, e não de ver essas casas velhas todas. Mais bárbaros ainda. Cruz credo. Afastei-me o mais rápido e independente possível querendo falar com o Pessoa, para inclusive perguntar, em uma conversa de bar, sobre o que achava de tudo isso. Poeta, ficcionista, dramaturgo, filósofo e prosador, além de ocultista seguidor de Aleister Crowley, Fernando Pessoa, com certeza, iria me dizer que já estava providenciando uma magia qualquer para afastar essa gente barulhenta e insensível de perto de sua casa e das redondezas do Chiado.

– Não é possível escrever com toda essa gente circulando e fotografando por aí – iria me dizer. – Vou despachar essa gente para uma temporada no inferno!

Subimos as calçadas, cruzando como bondes saídos do passado e lá estava o Fernando Pessoa sentado em frente ao bar A Brasileira. Aproximei-me lentamente, tentando ver o que ele estaria fazendo naquele frio. Sentei em uma cadeira da mesa vizinha como quem não quer nada e fiquei olhando de esguelha. Ele estava com a perna esquerda apoiada na direita e parecia estar pensando em algum guardador de rebanhos, tal a concentração. Não fumava, nem bebia o Fernando. Parecia que apenas estava realmente pensando. Rígido e resistente como uma estátua de bronze.

Um dos maiores poetas e prosador da nossa Literatura, Pessoa pode ser considerado, sem nenhum erro, universal. Ele sabe que a vida é múltipla. Daí ele saber que tem que se multiplicar para entendê-la. Sabendo-se também múltipla as suas vozes, criou os seus heterônimos: Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis, sem esquecer um outro pouco falado, o Bernardo Soares e um tal de Alexander Search. Esse, procurando se esconder como um simples pseudônimo.

Se o Pessoa não fosse poeta, talvez tivesse se tornado filósofo. Foi o que eu pensei, ao olhar um pouco mais atentamente para ele. Fernando tinha apenas quinze anos e já lia de tudo, inclusive pesados tomos filosóficos. Embora tudo levasse a crer que fosse abraçar o Classicismo puro, sua produção implementou o Sensacionismo, marcando firmemente o modernismo português. Um vanguardista o Pessoa. Que mesmo no silêncio recatado de sua solidão e modéstia aparente, se desdobra em vários e ainda pensava em Orpheu. Provocando seus conhecidos, que se espantavam com palavras tão fortes vindas de um homem tão quieto.

Pensava eu ainda em tudo isso quando uma excursão de turistas se aproximou célere, vinda do Largo do Carmo, carregando suas armas e brasões. Máquinas fotográficas japonesas, francesas e italianas, cercaram o poeta imediatamente e eu não via mais nada. Mas, passados alguns segundos que pareceram durar décadas, vi o Fernando Pessoa levantar-se com certa dificuldade e sair, aborrecido, com tudo aquilo. Pareceu dirigir-se, quase correndo, para sua casa ali perto. O número 16 da Rua Coelho da Rocha.

Respeitei o desejo do poeta de ficar bem longe das pessoas, e parti. Mais alguns dias descobrindo Lisboa e seus poetas, conhecidos ou desconhecidos, e eu estaria embarcando para Paris em busca de Henry Miller. Que estaria a escrever, com certeza, algum livro importante na paz de Clichy.