Zemaria Pinto*
Vai me perdoar o leitor mais escolado, mas é pensando no neófito que escrevo esta apresentação. Aquele leitor que, atraído pela capa ou pelo título, estranhou o excessivo espaço em branco ou o pouco texto. Haicai, haikai ou haiku: poema cultivado inicialmente no Japão feudal, no período Edo, a partir do século XVII, tem apenas 3 linhas. Os antigos usavam a métrica 5-7-5, mas isso não pode ser uma camisa-de-força. O mais interessante da forma haicai não é exterior: observação da natureza, ou melhor, do meio ambiente, e anulação do eu. Não ao sentimentalismo, à reflexão, ao antropomorfismo, às figuras de linguagem, aos exercícios retóricos. Arte antiintelectual, no dizer de Octavio Paz. Não sobra muita coisa, deve estar pensando o leitor. Pois é exatamente desse universo reduzido, condensado, que o haijin, o cultor do haicai, extrai sua arte.
Flagrante de um momento único, o haicai é um poema tão concentrado, que, por muitas vezes, nem percebemos a poesia nele entranhada. Daí que o desapego da métrica proporciona ainda maior liberdade, podendo resultar em maior concentração. O haicai é isso: uma explosão. Não no sentido literal da palavra: uma explosão de sensações, porque, enquanto o lírico trabalha sentimentos, o haijin trabalha sensações. Veja o exemplo tirado deste Poesia Minimal, de U. Sanches, que você tem em mãos:
Tarde chuvosa –
escondida nos bambus
a orquestra dos sapos
O primeiro verso exprime a melancolia do momento: uma tarde de chuva. Não está dito, mas infere-se, é fim de tarde e os primeiros sapos começam a cantoria. O poeta lírico certamente puxaria pela memória e faria uma relação daquele momento com algum sentimento recôndito. O haijin limita-se a registrar o momento, com os recursos que um fotógrafo ou mesmo um pintor não disporiam. Um cinegrafista, talvez. Mas não conseguiria, contudo, passar a mesma sensação que o poeta, porque ao leitor cabe compor a imagem e imaginar os sons que ela evoca, tornando-se cúmplice na criação. Esse leitor, se tiver alguma intimidade com a paisagem, despertará todos os sentidos: sentirá a chuva molhando sua pele; ouvirá o ruído da chuva e a música da saparia; perceberá o cheiro que emana daquele paul; sentirá na boca o gosto daquelas sensações todas; e sobretudo verá com todas as cores aquela paisagem cinza. Mas há um sexto sentido, que é um atributo do haijin: a percepção do que não é evidente, a intuição de que aquele momento único, que não irá se repetir jamais, é um poema, que ele, com seu poder de concisão, registra em nove palavras.
Sirvo-me ainda do poema de Sanches para ilustrar outra característica do poema-haicai, a estruturação em duas camadas: uma refletindo a condição geral do poema, normalmente identificando o que os japoneses chamam de kigo, isto é, o elemento do poema que define a estação na qual ele foi escrito; e outra refletindo o efêmero, o instante, a experiência jamais sentida: o aguçamento do sexto sentido. Aquela primeira camada anuncia – tarde chuvosa – a condição espacial e/ou temporal do poema. A repetição eterna de que se nutre a natureza. A segunda camada – escondida nos bambus / a orquestra de sapos – traz o inesperado, o estranho, que só subsiste em contato com a primeira camada. É da união das duas que se enforma o haicai.
Chega de conversa, que esta apresentação já vai além da conta. O gaúcho U. Sanches cultiva o haicai com a dignidade de um mestre. Lê-lo é mais instrutivo que qualquer teoria.
*O livro Poesia Minimal, de U. Sanches, permanece inédito.
** O livro foi lançado, em Manaus, dia 4 de Janeiro de 2014, na livraria Valer.
** O livro foi lançado, em Manaus, dia 4 de Janeiro de 2014, na livraria Valer.