Amigos do Fingidor

quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Maranhão Sobrinho, cem anos além-depois – 3/3


Zemaria Pinto


São muitas as surpresas que esta coletânea guarda. O inicialmente bilaqueano, pelo que tem de didático, “A Escola”, por exemplo, construído em oito décimas e uma quadra, de repente, adota um inusitado tom castro-alveano:
O livro, amigos, que aos pulsos
Da noite atira grilhões,
Lembra os violentos impulsos
Das águias das vastidões...
Condor – os astros atinge!
Prometeu – derroca a esfinge
Que as sombras erguem nas frontes...
Aves! ao sol feito em brasas!
Vamos molhar nossas asas
Nas tintas dos horizontes!...
Não, nem Bilac nem Castro Alves – é Maranhão Sobrinho, arquiteto de imagens inigualáveis:
A escola, ó almas sonoras!
Almas de moços sem véu!
É um Amazonas de auroras
Que se despeja do céu!
(...)
Os livros, almas libertas,
São águias de asas abertas
Voando no céu da glória...
Voemos, a cheios panos,
No dorso dos oceanos
(...)
Os lábios têm na escola
As hóstias da comunhão...
Poemas de delicada feição sensual, como “Vês?”, “Fausta” e “Soneto (VI)” dão um tom mundano aos acordes românticos e místico-simbolistas da lírica de Maranhão Sobrinho; uma sensualidade que apenas se insinua – sob a renda, ou sob a camada de símbolos com que ele vela os corpos de suas musas. “Teresa”, por exemplo, tem os “pezinhos cor de rosa”, a gravar “sonetos doces” e “estrofes raras” na “suave areia” e é a “casta e meiga flor” da aldeia. Teresa retorna no belíssimo “Necrópole” – em que o poeta descreve um “cemitério antigo”, onde “em cada cova há um bem, que amei, que é morto”:
Neste leito final, sob este ermo cipreste,
Descansa o beijo teu, dorme também, Teresa,
A última promessa azul que me fizeste...
A “promessa azul” frustrada por Teresa é um achado poético sublime, pois, parafraseando Fernando Pessoa, o azul é o nada que é tudo, não fosse o azul a mais imaterial das cores, formada apenas por transparências ou vazios acumulados: de ar, de água, de cristal e até de cor, pois o reflexo natural do negro é o azul. O acúmulo de vazio é exato, casto e frio, mas falso. Ah, Teresa...  
O “Soneto (II)” promove um insólito encontro do poeta com Virgílio. Emulando um Dante tropical, os dois penetram na floresta, mas não no inferno verde, sim “num templo, em místicas oblatas...”:
– Mestre! eu exclamo, em tudo há luz e festa!
Tudo parece amar! O amor palpita
Em tudo! A tudo o amor sua luz empresta?

Virgílio, então, me diz: “Deus grande e mudo
É o amor! Deus é o amor, e em tudo habita;
Logo o sereno amor habita em tudo!”
Outras homenagens aparecem no livro; explícitas, como em “Shakespeare”, ou em “Isabel”, um louvor à princesa “cheia de Deus”; e veladas, como no “Soneto (IX)”, publicado em 1910, que retoma um dos temas principais de seu livro de estreia – a veneração sincera à Virgem Maria, à qual se opõe um literário culto a Satã.[1]
Por tuas próprias mãos, formosas, teces
Os véus da aurora e o céu, que tu dominas...
Vêm de tua boca as perfumadas preces
Que às almas tristes, sem querer, ensinas...
Por demais me alongo neste espaço, que é de Kissyan Castro, mas, sobretudo, de Maranhão Sobrinho. O reencontro com o poeta das Estatuetas – livro que só agora, graças à generosidade de Kissyan, irei conhecer – reavivou-me a crença de que a poesia é, sim, necessária, e que nós, poetas, professores, leitores, temos o dever de continuar a pregar no deserto e ao mar aberto, tornando o sonho possível, como no poema “Tempos idos”, em que “Poetas e cavaleiros só viviam / Por seu Deus, por seu Rei, por sua Dama.” É preciso que nos insurjamos, pela poesia, contra a solidão em que vivemos – individual e coletivamente.   




[1] Ver o ensaio “Maranhão Sobrinho, o místico de Satã”, de Zemaria Pinto, in Papeis velhos... roídos pela traça do símbolo: 2ª edição, Manaus, Valer, 1999.

Bença, Mãe



Paulo Sérgio Medeiros

31 de outubro. Dia das Bruxas. Passava do meio-dia quando saímos de casa. Mamãe foi no meu carro. A conversa fluía naturalmente entre mim, papai e ela. A cirurgia pela qual ela passaria não estava na pauta, fingíamos que estava tudo bem, mas não estava. Mamãe não estava ali com a gente. Algo a incomodava, não acredito que era a cirurgia em si. Ela já havia passado por várias.
Em dez minutos já estávamos no nosso destino. Santa Júlia, ali no Boulevard Álvaro Maia. A deixei lá e fui estacionar o carro. Na volta ela estava sendo atendida na recepção. Meu pai e meu irmão tratavam da papelada para a internação e ela um pouco mais afastada aguardava numa cadeira de rodas. Sua fisionomia era de preocupação. Me aproximei e lembro como se fosse hoje (dois anos e um mês depois) as minhas palavras de apoio a ela. Mãe, tranquilinha que vai dar tudo certo. Então a beijei na testa. Logo eu, o menos carinhoso.
Ela me olhou com a insegurança de uma criança, chorou discretamente e subiu acompanhada do meu pai e meu irmão. Houve um contratempo e eles não conseguiram se despedir dela. Era só mais um contratempo entre tantos outros.
Na sala de espera, a tensão se revelava nos estalar de dedos, nos pés que não paravam de marcar o tempo, no senta e levanta aqui e acolá, nos olhares cabisbaixos, e no silêncio quebrado de quando em quando por um “tá demorando, né?”
A cirurgia complicou. Sete, somente sete horas depois um vulto de notícias nos movimentou. Os médicos anestesiaram a morte e mamãe resistiu a mais uma cirurgia.
O dia seguinte raiou tenso. Estava no trânsito quando meu pai me telefonou. Meu filho, vem pra cá... Essa frase ainda ecoa em minha mente. Não acreditava! Esmurrava o volante do carro enquanto questionava a minha fé. Por quê? Por quê? Por quê?
Chego no hospital e vejo minha mãe ali dentro de um saco como se fosse um tronco de madeira que não servia mais pra nada. Pesadelo... Pesadelo. Só nós em volta dela sabíamos da grande história de luta, de amor, de simplicidade e dedicação daquela mulher.

Bença, mãe...

Reconstruções sociais em torno da doença



João Bosco Botelho

As questões sociais em torno da doença e os transtornos causados pela dor não devem ter sido, no passado distante, muito diferentes dos da atualidade. Na realidade, é possível distinguir três circunstâncias envolvidas no processo:
1. A busca de tratamento da pessoa aflita, motivada pela dor e pelo medo da morte;
2. A preocupação coletiva pelo tratamento competente para evitar a dor e a morte, quando a sociedade se entende ameaçada;
3. A busca do recurso curador, envolvendo uma pessoa ou a sociedade, pautada no reconhecimento social de competência.
Pelo menos um dos componentes acima pode estar presente na relação motivadora de trocas entre doente e curador. Dessa forma, cabe efetivar a busca do(s) elemento(s) que antecederam a própria compreensão da doença e interligar ao processo da cura. Para que seja possível organizar esse pensamento, é necessário traçar os parâmetros a partir da consciência da dor ou da doença, como a estrutura mental formadora da arqueologia da cura. Isto é, a dor é a motivação maior para que o ato cooperativo entre curador e doente seja instalado e se interponha com convencimento suficiente para reverter o desconforto doloroso.
De modo claro, esse desafio humano maior – lutar contra a dor e buscar o prazer – reflete um impressionante repetir coletivo, nos quatro cantos do planeta, em todos os tempos, que traduz, em última análise, a vontade humana para ampliar os limites da vida.
Apesar das incontáveis falhas nos resultados, a Medicina representa a esperança no sucesso do tratamento, dando sentido e sustentando a reprodução das práticas de curas. A arqueologia da cura, de pessoas e de sociedades, deve também passar nesse referencial que liga o doente ao curador e vice-versa.
Se, por um lado, nas relações individuais, o enfermo expressa o medo da dor e da morte e o curador apresenta-se figurando a esperança do prazer e da vida, do outro, coletivamente, a sociedade desorganizada e faminta almeja a chegada do líder político atuando como curador, capaz de recolocá-la nos trilhos da fartura.
 Nos barrancos do Solimões, em Paris e em Moscou se a doença é um braço quebrado, ninguém oferece dúvida de que o melhor tratamento é imobilizar a fratura com gesso no hospital mais próximo ou na infecção o doente adere ao tratamento com antibióticos indicado pelo médico.
Nas duas considerações, a concordância de os doentes tratarem o braço quebrado e a infecção, traduz tanto no Amazonas quanto em Paris, o elo de confiança na Medicina, quando oferece bons resultados imediatos.
Todavia, tanto na floresta quanto no asfalto, ao existir dúvida da cura proporcionada pela Medicina, independentes do grupo social, os doentes procuram a ajuda dos curadores populares para diminuir a dor e o medo da morte.
Nas duas circunstâncias, as divindades curadoras são sempre lembradas e podem ser consideradas pelos doentes como as verdadeiras responsáveis pela cura em si mesma.
Por essa razão, inserido nesse componente social da compreensão do sofrimento e da dor, a palavra doença, na língua inglesa, reflete as reconstruções sociais em torno da doença.  Disease: a doença como é apreendida pela Medicina-oficial; Illness: a doença como é compreendida pelo paciente; Sickness: situação em que o paciente identifica o sofrimento em si mesmo, mas ao mesmo tempo é capaz de saber que a situação é temporária e não coloca a vida em risco; por exemplo, a náusea provocada pelo balanço do navio.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Fantasy Art - Galeria


Martina Arend.

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Finado Beré



Pedro Lucas Lindoso


Uma das sepulturas que mais recebe visitas no dia dos finados é do Seu Beré. Não é santo nem faz milagres. Mas foi um dos homens mais queridos que já se conheceu em toda a Zona Leste de Manaus. Era um caboco suburucu, como diz Thiago de Mello.
Beré teve onze irmãos. Todos contribuíram muito para aumentar a população de Manaus e do Amazonas. O que não falta na vida de tio Beré são sobrinhos. E ainda há os amigos de seus filhos que o chamam de tio.
Quando alguém queria um conselho era só pedir para o Beré. Ele sempre dizia:
– Se conselho fosse bom a gente vendia, não dava. E logo ia dando sua opinião sobre o questionamento feito. Não opinava na área sentimental. Dizia logo:
– Procure um padre ou um pastor. Ou mãe de santo. Eu não opino nessa área. Também não sou curandeiro. Procure um médico que é melhor.
Os conselhos de Beré eram práticos. Um dos sobrinhos, desempregado, foi pedir ajuda. Ele o aconselhou a vender mingau. O rapaz tornou-se um dos mais prósperos mingauzeiros da cidade.
Outro, cheio de dívidas, veio lhe pedir dinheiro emprestado. Era um verão escaldante. Beré foi enfático;
– Rapaz, vai vender picolé que tu pagas tuas dívidas. Dito e feito.
Um outro tinha um terreno enorme. Valorizado. Uma construtora se interessou pelo imóvel. Em troca de dois apartamentos no Parque Dez. Consultado, tio Beré opinou:
– Eu não troco uma coisa que existe por outras duas que ainda não existem. O rapaz, um verdadeiro estúrdio, perdeu o terreno. A construtora faliu.
Os conselhos de Beré eram famosos. Se alguém não os seguisse, se dava mal.
Zé Macaxeira é motoboy com a prestação da moto atrasada. Sonhou com tio Beré.  Resolveu vender cerveja e refrigerante na porta do Cemitério no Dia de Finados. Com esse calor, se deu bem.  O lucro foi tão bom que colocou as duas prestações da moto em dia.
Salve tio Beré.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Prosa & Panela – 8


Tainá Vieira


Graças a Dionísio ou Baco – deus do vinho e também das festas, e, por que não?, da comida, pois onde já se viu festa e vinho sem comida? – eu não tenho, nunca tive e jamais terei Cibofobia: medo ou aversão a alimento.  O que eu tenho é receio ao modo como os alimentos são preparados; para mim, basta apenas o lugar ser limpo, a pessoa que prepara a comida tem de estar com os cabelos presos e as unhas limpas. E também, na minha comida não pode ter sangue e nem alho cru, de resto está tudo certo e bom apetite! 
Na época da faculdade, que foi um dos momentos mais felizes da minha vida, praticamente todas as noites, no intervalo, eu e meus amigos íamos comer churrasquinho. Era o famoso churrasquinho de gato – que atire a primeira pedra quem nunca comeu um churrasquinho de gato – que ficava a uns metros da faculdade; era um lugar limpo, arrumadinho, a carne era boa, bem macia, custava três reais o espetinho com a farofa que era divina, e a tia do churrasco – que tinha os cabelos bem curtinhos – sempre guardava uma mesa para nós. Éramos mais de cinco pessoas e sempre comíamos mais de um churrasco, por isso a tia do churrasco gostava da gente. Há tempos que não como um churrasquinho de gato, eu acho que desde que saí da faculdade.
Épocas de nossas vidas sempre nos deixam lembranças, seja de lugares, pessoas, músicas, livros e comidas.  Lembro-me da minha infância que foi regada a chá de canela, de uma árvore de canela no quintal da casa dos meus pais-avós. Hoje em dia não gosto nem de sentir o cheiro da canela, a lembrança que tenho da mesma me dói na alma.  Meus pais-avós já fizeram a passagem deste mundo. É assim também com o milho, não o suporto, pelo mesmo motivo da canela.  Nem toda lembrança é boa ou vale a pena lembrar. E por mais que não queiramos lembrar-nos, essas lembranças sempre virão nos perturbar. Tem gente que gosta de voltar ao passado, regredir, somente para sentir tudo novamente, se fosse possível reconstruir a historia, talvez eu também quisesse regredir.
Deixemos a infância guardada na caixinha do tempo e vamos para a vida adulta, onde não temos avó e nem mãe por perto para controlar nossa comida e por isso comemos tudo o que encontramos pela frente.  Não existe coisa melhor do que se deliciar com algumas comidinhas que encontramos pelas ruas.  Além do churrasquinho, tinha o kikão, que era uma delicia e até peguei a receita da senhora que vendia – que vivia com uma touca na cabeça – fiz algumas adaptações e ficou tudo certo: a maioria das pessoas prefere a salsicha inteira no pão junto ao molho, eu prefiro-a toda cortadinha em rodelas, fica algo bem delicado. Para o molho apenas extrato de tomate, cebola, pimentão e creme de leite, nada de milho e ervilha e nem batata palha para enfeitar, e, para o toque final, basta o ketchup, e pronto, temos aí um delicioso lanche para oferecer aos amigos e às crianças. Às vezes quando não tínhamos dinheiro suficiente para comer churrasquinho ou kikão, comíamos apenas pipoca que era mais barato e deliciosa também. E quando nem pipoca dava para comprar, comíamos bombom, tudo é comida mesmo.
Na faculdade fiz grandes amizades, até hoje tenho o contato com algumas pessoas. Quando fui para o terceiro período, mais precisamente na disciplina de Teoria da Literatura, eu conheci uma das pessoas mais extraordinárias deste mundo, uma professora, que eu a denominei como Ada, por ela ser tão especial.  Sempre antes da aula, eu e a Ada sentávamos para tomar café (não, eu não ia para a faculdade só para comer, a comida era apenas uma consequência de tudo o que acontecia por lá). As Universidades sempre têm praça de alimentação, algo similar às cantinas das escolas. E na cantina, digo, na praça de alimentação de onde eu estudava tinha um café muito bom.  O café é bom para deixar o individuo acordado, os alunos assim como os professores precisavam, antes de entrar em sala de aula, de uma boa xícara de café.
Meu Deus, aqueles finais de tardes, a hora do café, eram mais que sagrados para mim, para nós, porque era reciproco o afeto. Ela, a Ada, teve que sair da instituição e eu fiquei ainda dois anos lá, eu chorei sim de saudade e de revolta, perdi algo que fazia parte de mim, não era só uma professora, muito menos só um café, eram muitas vidas em duas vidas, inúmeras histórias, infinitos sorrisos e gargalhadas. Muitos ensinamentos, eu aprendi coisas que levarei por toda a vida. Fomos felizes naquela época, sei que fomos. Hoje os encontros são escassos por conta dessa vida louca, mas a amizade permanece junto às lembranças, boas, daquelas tardes no café da faculdade, assim como permanecem as lembranças, boas, das comilanças com as comidinhas que fazia com os meus companheiros de sala. Conforte-me com café ou comida, tudo isso me traz recordações, até mesmo as que prefiro esquecer.

domingo, 27 de dezembro de 2015

Manaus, amor e memória CCXLIV


Cachoeira do Tarumã.

sábado, 26 de dezembro de 2015

Fantasy Art - Galeria


Bariaur in the Forest.
Yin Yuming.


quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Maranhão Sobrinho, cem anos além-depois – 2/3


Zemaria Pinto

Maranhão Sobrinho transitava sem traumas entre o Romantismo, o Parnasianismo e o Simbolismo, encontrando-se nos poemas ligados a este movimento as suas principais composições. Nos trabalhos enfeixados neste volume, publicados entre 1896 e 1914 – além de poemas publicados postumamente – encontramos o poeta levando sua poesia desde o berço Barra do Corda, passando por São Luís, Natal, Recife e Maceió, até Curitiba, antes de chegar a Manaus, onde viveu dois períodos de sua vida, de 1905 a 1908 e de 1910 a 1915. Chama a atenção o fato de que após 1911, quando foi publicado Vitórias-régias, não foram encontrados registros de poemas inéditos do autor, em Manaus. Mas com certeza os há, o que poderá ser comprovado em busca aos arquivos do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas e também ao acervo do velho Jornal do Comércio.
Essa alma viajante do poeta se desvela na representação alegórica pássaro/ninho, que atravessa os 105 poemas do livro. O organizador, sabiamente, sem se prender à cronologia, começa o livro (“Ave canora”) e o termina (“Azul final”) com poemas que se enquadram nessa temática. O primeiro é a representação do nascimento do poema – a inspiração –, de cunho romântico:
Sentimos dentro d’alma ternamente
A saudade chorar tão vagamente
E no peito cantar o coração!
Ao fundo, sob a luz e a aragem do crepúsculo, as cotovias cantam, docemente.
O poema que fecha o livro reúne os dois símbolos que se complementam:
Maio! Nas pontas trêmulas dos ramos
Os ninhos choram, de paixão crivados,
Porque te vás, ó mês dos gaturamos!
E dos sonhos de amor nunca sonhados!
O símbolo pássaro – e aqui não distinguimos cotovias e gaturamos – tem vários significados. O pássaro é a metáfora perfeita do ser inquieto, que não se fixa em seu ninho de origem. Mas é também a representação da alma além-do-corpo e dos estados espirituais. O pássaro se opõe à serpente, sendo esta a representação do mundo que rasteja, não-humano, enquanto o pássaro voa livre nos domínios celestiais. Os anjos, humanos alados, nada mais são que pássaros – e vem daí a associação destes com a inteligência e com a sabedoria. Mesmo sob o aspecto mitológico, o pássaro Fênix, de origem talvez egípcia, é a representação da ressurreição e, por consequência, da imortalidade, sendo adotado, na Idade Média, como um símbolo cristão.
O ninho, por sua vez, é uma metáfora da própria casa. Maio se vai, no poema de Maranhão Sobrinho, e
Pela cruel saudade que nos deixas,
Os vales secarão de imensas mágoas
E os ninhos morrerão de imensas queixas!
Nada mais terrível que a morte do lar, que definha pelo abandono de seus ocupantes. Mas o ninho é muito mais que isso: inacessível, para evitar os predadores, torna-se uma metáfora do paraíso, que só poucos alcançam – a morada da alma-pássaro.
Os pássaros e seus ninhos se sucedem, além de cotovias e gaturamos: andorinha, condor, calhandra, chorão, rouxinol, íbis, passando pelos genéricos aves, passarinhos e passaredo, até a metonímica asas. Tanto envolvimento com os substantivos leva o autor a criar um belo verbo onomatopaico: flaflar.
Asas de abril que andais em revoadas
Áureas, flaflando pelos ramos! quando
Doirar-me a luz as faces descoradas,
Vinde, aos meus versos, trêmulas, cantando...
(...)
Canções e risos flaflam-me aos ouvidos...
(“Asas”)
Ouvindo asas flaflar sobre corais de jambos...

(“Salomé”)

E no balanço das horas tudo pode mudar


Paulo Sérgio Medeiros


Chego à escola com a pontualidade de um britânico. Pontualidade é um exercício que pratico desde quando descaía para a casa de minha avó nas férias estudantis, lá pelas bandas do Solimões. Chegar no horário marcado é sinal de respeito e educação; embutia vovó Doca tais palavras em seus conselhos apimentados de ensinamentos de vó, e como conselho bom até do diabo a gente aceita, não albergava na cabeça do neto quarentão desapontar aquele baú de experiência.
Minha visita agendada dias antes ruminava meus pensamentos perscrutando cada palavra lida naquele e-mail. Você é de confiança... Terno e gravata... E no balanço das horas tudo pode mudar! Essa exclamação do diretor Ricardo deixou uma interrogação em minha cabeça. Terno e gravata? O que ele queria dizer com isso? Alvejado pela curiosidade, disparei no rumo da escola. De terno e gravata, claro, e discurso na ponta da língua. A direção da escola à espera do meu: sim, aceito!
– Prometo amar e respeitar.
Bato à porta e de cara vejo a nova pedagoga de costas. Baixinha, cintura de cavaquinho e cabelos negros pelo meio das costas. O vestido branco realça a cor da pele. Ali está ela inquieta remexendo um arcaico fichário de alunos.
– Na alegria e na tristeza.
Meus olhos morenos abrem um clarão. Ela vira preguiçosamente e seus cabelos acompanham o movimento do corpo numa dança sensual tal qual um tango argentino.
Meu corpo perfumado de Avon é invadido poro a poro por um francês arrebatador que até hoje não consigo nem pronunciar o nome.
Ela me olha e percebo o baile articulado de seus lábios. As mãos – como as de um maestro – sobem e descem. Tremo, o coração entra em descompasso e se confrange. Espectros se formam diante de meus olhos subitamente apagados. O relógio na parede branco gelo simplesmente congelou, deu branco. Ó meu Deus! Ela é muda. Eu, mudo. É o fim do mundo.
– Na saúde e na doença.
Ricardo chega num silêncio lento e de longe, sem perceber a minha presença, faz um gesto para ela com o polegar direito. Ela olha pra mim e devolve para ele o gesto com o polegar esquerdo. Ricardo desce as escadas saltitando, atravessa a sala de espera a trotes largos e entra na recepção com os braços vestidos e armados para um forte abraço. Nossos olhares se encontram e percebo descaradamente a articulação de seus lábios. Ó meu Deus! Ele está mudo. Eu juro. É o fim do mundo.
– E no balanço das horas tudo pode mudar.
Começa então uma correria, ele me abana, ela traz um copo com água e açúcar. Sento no banco, mas não me sinto. E de onde surgiu aquele homem de preto? Vejo uma pergunta, ouço uma resposta. Sim. Dedos algemados, clics e mais clics, chove arroz. Gente, muita gente. Aqueles dezenove segundos duraram...
– Até que a morte os separe.
Ricardo, ainda apaixonado pela ex-esposa e agora colegas de trabalho, depositara em mim o papel de fazê-la feliz.

Metamorfoses da vida e da morte


João Bosco Botelho


Existem fortes indicativos de que as muitas práticas curativas/medicinais contribuíram para moldar o pensamento e as ações em torno dos significantes simbólicos da vida e da morte, da saúde e da doença, enfim, do próprio modo com que as civilizações que desenvolveram a escrita.
A partir dos primeiros registros escritos, produzidos nas civilizações que se desenvolveram nas margens dos grandes rios Nilo, Indo, Tigre e Eufrates, a luta para entender os limites da vida identificam, com muita clareza, três tipos de Medicinas:
1. Empírica: nasceu como fruto da milenar relação dos homens e das mulheres com a natureza circundante, em especial, dos saberes empíricos em torno do uso dos vegetais e minerais, mudanças nos corpos com o passar dos anos vividos, a observação dos movimentos dos astros, a importância do Sol na sobrevivência de tudo e de todos, a decomposição dos corpos após a morte e a impressionante vontade coletiva para empurrar os limites da vida. Historicamente, tem sido utilizada por todos, sejam poderosos ou excluídos. Os mistérios e as práticas dessa complexa relação, no início, foram repassados oralmente, e depois pela escrita, contribuindo para que os registros passassem de geração em geração;
2. Divina: permeando a vontade de rejeitar a morte e as buscas das soluções para impedir o avanço das doenças, desde os tempos imemoriais, estão as muitas divindades curadoras, entendidas com poderes sobre-humanos capazes de curar;
3. Oficial: muito mais recente na história humana, o aparecimento está diretamente relacionado com a estruturação social e religiosa, portanto, já claramente identificável nas primeiras civilizações escravistas. Geralmente, interage às anteriores e é a única autorizada pelo poder dominante para curar, de acordo com as regras da dominação muito específicas que incluem a obediência aos deuses dominantes. O conhecimento gerado, tanto no passado quanto no presente, tem sido transmitido em escolas mantidas pela mesma autoridade. Os agentes curadores desfrutam de pouca liberdade de inovação e são obrigados à obediência das normas ditadas pelo conhecimento reconhecido. As atitudes inovadoras, em busca de novas alternativas, obrigatoriamente, devem passar pelo crivo da comunidade fiscalizadora.
O confronto e a cooperação entre os agentes curadores, representantes das três Medicinas, reflete o processo histórico, inserido nas mentalidades e nas culturas, com o objetivo de ampliar os limites da vida e evitar a dor, seja ela coletiva ou pessoal. Nesse sentido, os principais agentes curadores são:
1. Dos curadores empíricos: durante muitos milhares de anos, esses especialistas da cura, semelhantes aos dos dias atuais, eram, provavelmente, membros destacados nas respectivas sociedades, que dominavam o uso empírico de plantas e procedimentos específicos para aliviar a dor. Só recente, receberam denominações: massagistas, benzedeiras, erveiras, padres, pastores, pajés, médiuns, harmonizadores, umbandistas, mães e pais de santo, padres e freiras carismáticas, entre outros;
2. Das divindades taumaturgas: incontáveis deuses e deusas são evocados no processo de cura;
3. Do curador oficial: como fruto da organização social e, principalmente, da absoluta necessidade do Estado organizar e fiscalizar, o médico se impôs como o exclusivo agente da Medicina oficial, a oriunda das universidades.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Fantasy Art - Galeria


Creation of Adam.
Michael Satarov.


terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Halloween e o boi da cara preta



Pedro Lucas Lindoso

Conversava com meu amigo Dr.Chaguinhas sobre a ingerência cultural que nós brasileiros sofremos dos nossos irmãos estadunidenses. É inegável que a cultura americana nos tem influenciado sobremaneira. Através dos filmes, da TV, do intercâmbio de estudantes brasileiros aos Estados Unidos.  Desde o ensino médio até a faculdade. Além do que o país é destino de primeira opção de brasileiros em férias.
Todo mês de outubro abre-se uma polêmica se os brasileiros devem ou não festejar o Halloween. Disse ao Chaguinhas que o primeiro equívoco é traduzir Halloween como Dia das Bruxas.
Holy” em inglês significa sagrado. Hallow tem a mesma origem e significa sagrado, santo. Surgiu daí a própria palavra Halloween, originada de “all hallows eve”, que em português quer dizer "véspera do dia de Todos os Santos". A Igreja Católica desde sempre se apropriou das festas pagãs e o Halloween é um exemplo.
 A celebração recebeu no século XX diversas influências que deram força ao comércio e aos negócios: distribuição de doces para crianças, filmes de terror, indústria de fantasias e indumentárias movimentam milhões de dólares não só nos EUA como agora em todo o mundo.
Perguntei ao Chaguinhas, que é um nacionalista de primeira, se era politicamente correto ser contra o tal Halloween. Ele me disse que alguns fundamentalistas religiosos são contra. Como também não apoiam o boi-bumbá e o carnaval.
Lembrei a ele que o nosso festival de boi não teve origem na Amazônia. Veio do Maranhão e se modificou adaptando-se aos costumes dos índios e dos caboclos.
A festa junina, que talvez seja a nossa mais emblemática manifestação folclórica, tem a quadrilha como destaque. Da França veio a dança marcada, característica típica das danças nobres e que, no Brasil, influenciou muito as típicas quadrilhas! Anarriê, alavantú, balancê. Tia Idalina só marcava quadrilha em Francês, ou matutês!
Chaguinhas me disse que seu sobrinho Diogo encomendou uma fantasia de “boi da cara preta” para uma festa de Halloween, que será num condomínio cinco estrelas aqui em Manaus. Questionado o rapaz respondeu:
– A coisa que mais me assustava quando menino era um tal “boi da cara preta, pega esse menino que tem medo de careta”. É por isso que ele torce pelo Boi Garantido. É o boi branco do coração vermelho.
A verdade é que desde a mãe África, onde surgiu, os homens se movimentam pelo planeta, mesclando-se, miscigenando-se e trocando culturas e saberes.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Prosa & Panela – 7



Tainá Vieira

Não existe comida mais saudável e deliciosa do que um peixe. Com exceção do pacu, o único peixe de que eu não gosto. Peixe é delicioso, mesmo temperado apenas com sal. Mas existem outros que só ficam bons quando são temperados à base de ervas finas, como o caso o salmão. E vocês acreditam que tem gente que não gosta de peixe? Meu Deus, eu acho que esse povo que não come peixe tem sério problema com a vida. Conheço gente que tem até nojo de peixe, que não suporta o cheiro de peixe. É bem verdade que o cheiro de peixe não é tão aromático assim, e também existem certos peixes bem gordurosos, que enjoam bastante. Os pacus são bem gordurosos, mas não é a gordura que me desagrada, é o cheiro dele que me causa repugnância.
 Deixando os chiliques de lado, os peixes têm uma importância bem significativa na região amazônica, para o seu povo. Era o pirarucu salgado ou o surubim a alimentação dos seringueiros no período da borracha. Os seringueiros eram obrigados a comprar sua alimentação no armazém dos coronéis, principalmente o peixe salgado e a farinha.  Esse peixe salgado, no caso o pirarucu, após ele ser tratado, ter retiradas suas escamas – que são lindas e servem para fazer artesanatos, como brincos, por exemplo –, cortam-no em postas finas, ou nem tão finas, e passam-lhe sal, bastante sal mesmo, e colocam essas postas ao sol, para elas ficam secas e salgadas. Os seringueiros comiam com o chibé, que é a farinha na água, com açaí e farinha, com castanha do brasil. Nossa, isso é muito bom, já comi... Na época dos seringueiros não havia muita receita do peixe salgado; hoje se pode fazer pirarucu de casaca, onde o segundo ingrediente importante para essa receita é a banana; pirarucu à portuguesa, onde o segundo ingrediente é a batata; desfiado de pirarucu nem precisa de receita para fazer; e pirarucu à moda do seringueiro, onde o segundo ingrediente é a castanha do brasil. Tudo isso se pode fazer com as postas de pirarucu seco; só serve se for seco.
 Meu pai-avô fazia isso, essas postas de pirarucu ficavam expostas ao sol, no quintal de casa, perto da cozinha, é claro, e de vez em quando eu ia lá e pegava uma lasquinha e comia cru mesmo. Sempre gostei de comida salgada, era delicioso e eu achava muito divertido fazer isso, é como se pegasse um biscoito do pote, bem normal, você está brincando e de vez quando pega algo pra mordiscar; as crianças de hoje comem biscoitinhos, barrinhas doces, eu comia lasquinhas de pirarucu seco. Há vários tipos, tamanhos e nomes de peixes: pirarucu, tambaqui, jaraqui, tucunaré, que é o meu preferido – tucunaré a caranguejo, vocês conhecem?! Infelizmente não posso passar a receita, pois é algo muito intimo meu. E mais uma infinidade de nomes e peixes que não caberiam aqui.  Às vezes, é bom preparar um peixe bem caprichado, escolher os temperos, os acompanhamentos, até o modo como o peixe é cortado é importante para o preparo e a confecção do prato: tambaqui ao molho de alcaparras; pirarucu a belle meuniere; filé de aruanã ao molho de salsinha e por aí vai. Todos esses são pratos finos, elegantes e divinos, no entanto um jaraqui frito, acompanhado apenas de farinha, limão e pimenta tem o seu valor. E o que dizer de uma caldeirada de sardinha?! Há poucos dias eu fiz, foi a primeira vez que comi caldeirada de sardinha. Há alguns anos atrás eu presenciei o Luiz Bacellar pedir em uma peixaria uma caldeirada de sardinha, eu fiquei apavorada, achava que não se comia sardinha no caldo, ele comeu. Eu lembrei-me dele e fui fazer a tal da caldeirada de sardinha e ficou muito bom; o Bacellar tinha razão, assim como sempre teve bom gosto. Ponto final.

domingo, 20 de dezembro de 2015

sábado, 19 de dezembro de 2015

Fantasy Art - Galeria


Melanie Delon.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Maranhão Sobrinho, cem anos além-depois – 1/3


Zemaria Pinto


Maranhão Sobrinho viveu em uma época em que jornais e revistas publicavam poesia regular e naturalmente. Acreditava-se, talvez, que a poesia fosse necessária... Assim, quando Kissyan Castro falou-me de sua intenção de publicar os poemas inéditos em livros do ilustre filho de Barra do Corda tive a certeza de que a poesia brasileira só teria a ganhar. Esta edição deve ser apenas a primeira, porque certamente incompleta; não por falta de esforço do organizador, mas porque o trabalho de garimpagem é insano. Kissyan é jovem, tem muito tempo pela frente, para continuar o seu labor de resgate da obra desse poeta excepcional que é Maranhão Sobrinho.
Quando um trabalho dessa envergadura vem à luz, há sempre as patrulhas estéticas de plantão para questionar o óbvio. Vamos nos antecipar a elas. “Se o autor não publicou esses poemas em livro era porque não os achava dignos disso”. Um livro, mesmo de poemas líricos, como é o caso do nosso autor, caracteriza-se por uma unidade, um fio condutor. Na hora de selecionar a produção disponível, muita coisa ficará de fora, por não se encaixar na proposta do livro. “Ah, e esses poemas de circunstância? O autor não aprovaria a sua publicação”. Talvez não. Mas nós temos, e o Kissyan mais do que ninguém tem consciência disso, a responsabilidade histórica de fazer o resgate da obra dos grandes autores, mesmo da parte mais ínfima, menor mesmo, como uma forma de melhor conhecer os procedimentos do autor. Manuel Bandeira, por exemplo, fez isso em vida, com o delicioso Mafuá do Malungo, editado por João Cabral de Melo Neto, com introdução de Carlos Drummond de Andrade. Mais precioso que isso é impossível em língua portuguesa. Já sem argumentos, as patrulhas estéticas partem para a agressão: “esses poemas não estão no mesmo nível dos poemas publicados em livro”. Maranhão Sobrinho morreu aos 36 anos. Não teve tempo de organizar sua obra. Nem sabemos se, peregrino como era, tinha controle sobre essa obra dispersa em jornais e revistas de vários pontos do Brasil. Tivesse tido tempo e estivesse organizado, poderia ter trabalhado melhor seus poemas, muitos deles publicados sob a emoção imediata da escrita. Para trás, patrulhas, para trás!
O material que tenho em mãos é tão rico que gostaria de ter alguns meses, pelo menos, para cotejar com os três livros do autor, buscar semelhanças e afinidades, investigar a alma poética de Maranhão Sobrinho, brincar de inventar teorias e descobrir conexões inusitadas com poetas de além-antes e de aquém-depois. Mas tenho apenas alguns dias, pois a efeméride dos 100 anos se aproxima e é a data perfeita para dar um novo e simbólico alento à poesia do autor de Papeis velhos... roídos pela traça do símbolo. Então, vou procurar ler esses poemas como se fossem um livro inédito, o que não é inexato, investigando suas inter-relações e buscando situá-los historicamente no corpus da literatura brasileira.


Obs: apresentação do livro Poesia Esparsa, de Maranhão Sobrinho, organizado por Kissyan Castro, reunião de 105 poemas do autor maranhense, jamais publicados em livro. Edição alusiva ao centenário de morte do poeta, ocorrida em Manaus, no dia 25 de dezembro de 1915.  

Para saber mais sobre Maranhão Sobrinho, clique aqui.

Arte, Rock & Putaria, a 7a. edição





Vitrines


Paulo Sérgio Medeiros


Braços cruzados para trás, passos curtos, queixo no peito, balbucio na ponta dos lábios típico dos insanos e a companhia itinerante de dois vira-latas. O desvario do cabelo prateado endossava a suspeita de mais um órfão da sanidade mental vitimado pela finitude terrena.
Assim perambulava em meio à multidão pelas ruas do centro da cidade um dos moradores mais antigos da av. Eduardo Ribeiro, seu Platão. Depois que ficou viúvo a casa tornara-se quase que inóspita. Só pisava naquele assoalho para descansar as pálpebras. A fachada da casa retratava fielmente as fraturas que a morte da esposa causara em sua vida.
A solidão fermenta a loucura quando a viagem aos porões da alma se dá no pós-encontro da vida com a morte. Sem mais os ouvidos atentos de sua amada, não era possível agora ouvi-lo cantando todo santo domingo:
 Na galeria, cada clarão
É como um dia depois de outro dia
Abrindo um salão
Passas em exposição
Passas sem ver teu vigia
Catando a poesia
Que entornas no chão...
“As vitrines”, de Chico Buarque, era a música favorita dela. Platão perdera a poesia que galopava em suas veias e se isolou como alguns falaram, ou se libertou como falaram outros, em um mundo sem vaidades e sem as fatias do tempo. Completamente raptado pelo desapego às coisas materiais, respirava dor, porém buscava na transparência das vidraças a certeza de encontrar o esplendor da verdade sem o absolutismo pregado pelo casal de filhos que tentou, sem sucesso, interná-lo em um sanatório.
Eles são todos loucos! Mais cedo ou mais tarde vou encontrá-la. Ela foi às compras, só isso. Esse era seu mantra.  Platão dava mais ouvido aos dois cachorros que aos próprios filhos que vez por outra o ironizavam ao dizer-lhe da proximidade de tal encontro. De fato pai, o senhor está prestes a encontrar a mamãe, mas não nesse plano terreno. Alimentar-se só de esperança encherá seu peito de terra e seu corpo de pebas. Cravou a filha.
Retornar para casa à noite não mitigava a saudade dos quarenta anos dedicados àquela mulher de um homem só. E sem a companhia dos vira-latas a atmosfera era ainda mais lúgubre, musicada pelos pingos da torneira da pia metaforizando o choro dos amantes.
Isaura, a filha mais velha, percebera a ausência dos cachorros naquela semana e os reconheceu dormindo em frente à Mesbla sob o sereno de março. A loja ganhara dois cães de guarda, enquanto Platão, enfim, gozara da tranquilidade de noites bem-dormidas. E a filha estranhara a súbita mudança de ares.
Domingo, oito de março amanheceu e seu Platão acordou cantarolando, sacou do guarda-roupa a sua melhor roupa, reconciliou-se com o chuveiro, preparou um bom café da manhã e foi ao encontro dos seus fiéis escudeiros, que durante uma semana fizeram vigília na porta da loja de departamentos. Antes, porém, passou em uma floricultura, comprou um buquê de flores e com um sorriso esticado no rosto chegou ao seu destino. Os cães fizeram a festa e sem cerimônias diante da vitrine ele entregou seu sorriso àquele manequim e bailou cantando:
Na galeria, cada clarão
É como um dia depois de outro dia
Abrindo um salão
Passas em exposição
Passas sem ver teu vigia
Catando a poesia
Que entornas no chão...


Relações da medicina com ideias e crenças religiosas



João Bosco Botelho

Fica impossível separar a História da Medicina do conjunto dos saberes, desde os tempos mais distantes, das crenças e ideias religiosas que englobam as concepções míticas em torno da cura ou, na maior parte das vezes, somente a esperança de cura, como o permanente fio condutor para vencer a dor e empurrar os limites da vida.
Sob essa perspectiva, as técnicas da Medicina compõem instrumentos também para desvendar os efeitos pessoais e coletivos causados pela dor ou, simplesmente, pela ameaça dolorosa. Assim, os recursos e as variantes simbólicas para enfrentar a dor e buscar o prazer, em qualquer cultura-linguagem, tanto no espaço sagrado quanto no profano das relações sociais, também compõem a História da Medicina
De igual modo, não há como separar a contínua e ancestral luta contra a dor presente nas idéias e crenças religiosas, já que em determinados momentos, não se sabe onde começa a Medicina e terminam as religiões.
Em última análise, essa condição ontogenética da luta contra a dor e a permanente busca do prazer possibilitou a sobrevivência e a reprodução da espécie humana, compondo a organização social prevalente no planeta.
A saúde significa não-dor e o contrário também é verdadeiro: a doença está associada à dor ou à ameaça dolorosa e à morte prematura. Logo, o normal pode ser compreendido como um parâmetro da saúde onde o indivíduo vive sem dor ou sem a ameaça dolorosa e, assim, estaria livre da morte prematura. Essa sensação de segurança pessoal e coletiva contra a morte inevitável constitui um dos principais alicerces da organização social.
As linguagens-culturas têm sido os principais instrumentos para consolidar essa característica comportamental humana. A linguagem, em si mesma, foi estruturada para dar realidade à expressão da dor e do prazer, respectivamente, concretizando a compreensão da doença e do normal.
É por meio da linguagem que o normal e a doença se expõem pessoal e coletivamente. Por essas razões, os instrumentos biológicos da linguagem interagem e codificam a cooperação, a territorialidade e a sexualidade para vencer a dor e empurrar os limites da vida. A doença, sempre real para quem a sente, é verbalizada em torno da dor ou do medo da morte.
A eliminação da dor e a substituição pelo prazer, interligando a cooperação, a sexualidade e a territorialidade, tornaram-se o determinismo genético, garantindo a sobrevivência da espécie.
O reducionismo cientificista tem projetado a Medicina, aquela oriunda das antigas escolas médicas, como a única responsável por esse processo de luta contra a dor. Contudo, repetindo, em muitos momentos, não é possível distinguir onde começa essa Medicina, e os conhecimentos historicamente acumulados, e onde terminam as ideias e crenças religiosas.
Os historiadores que desvendam os períodos ágrafos se esforçam para elaborar estruturas teóricas capazes de explicar como os nossos antepassados distantes entendiam e modelavam a saúde e a doença, a vida e a morte, de modo semelhante, durante os milhares de anos que antecederam o aparecimento da escrita.

Muitos aspectos dessa construção estão contidos nos estudos dos fósseis, por meio da paleopatologia e os recursos da arqueologia, e constituem alternativas capazes de oferecer aspectos importantes para continuar elucidando as incontáveis dúvidas de como a espécie se relacionou com a dor e a morte: pinturas rupestres, vestígios do uso do fogo nas paredes das cavernas, as sepulturas rituais, os fragmentos ósseos pintados com ocra vermelha, ferramentas e utensílios de caça e pesca e vestígios fósseis da ação do homem sobre o homem.