Amigos do Fingidor

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

E no balanço das horas tudo pode mudar


Paulo Sérgio Medeiros


Chego à escola com a pontualidade de um britânico. Pontualidade é um exercício que pratico desde quando descaía para a casa de minha avó nas férias estudantis, lá pelas bandas do Solimões. Chegar no horário marcado é sinal de respeito e educação; embutia vovó Doca tais palavras em seus conselhos apimentados de ensinamentos de vó, e como conselho bom até do diabo a gente aceita, não albergava na cabeça do neto quarentão desapontar aquele baú de experiência.
Minha visita agendada dias antes ruminava meus pensamentos perscrutando cada palavra lida naquele e-mail. Você é de confiança... Terno e gravata... E no balanço das horas tudo pode mudar! Essa exclamação do diretor Ricardo deixou uma interrogação em minha cabeça. Terno e gravata? O que ele queria dizer com isso? Alvejado pela curiosidade, disparei no rumo da escola. De terno e gravata, claro, e discurso na ponta da língua. A direção da escola à espera do meu: sim, aceito!
– Prometo amar e respeitar.
Bato à porta e de cara vejo a nova pedagoga de costas. Baixinha, cintura de cavaquinho e cabelos negros pelo meio das costas. O vestido branco realça a cor da pele. Ali está ela inquieta remexendo um arcaico fichário de alunos.
– Na alegria e na tristeza.
Meus olhos morenos abrem um clarão. Ela vira preguiçosamente e seus cabelos acompanham o movimento do corpo numa dança sensual tal qual um tango argentino.
Meu corpo perfumado de Avon é invadido poro a poro por um francês arrebatador que até hoje não consigo nem pronunciar o nome.
Ela me olha e percebo o baile articulado de seus lábios. As mãos – como as de um maestro – sobem e descem. Tremo, o coração entra em descompasso e se confrange. Espectros se formam diante de meus olhos subitamente apagados. O relógio na parede branco gelo simplesmente congelou, deu branco. Ó meu Deus! Ela é muda. Eu, mudo. É o fim do mundo.
– Na saúde e na doença.
Ricardo chega num silêncio lento e de longe, sem perceber a minha presença, faz um gesto para ela com o polegar direito. Ela olha pra mim e devolve para ele o gesto com o polegar esquerdo. Ricardo desce as escadas saltitando, atravessa a sala de espera a trotes largos e entra na recepção com os braços vestidos e armados para um forte abraço. Nossos olhares se encontram e percebo descaradamente a articulação de seus lábios. Ó meu Deus! Ele está mudo. Eu juro. É o fim do mundo.
– E no balanço das horas tudo pode mudar.
Começa então uma correria, ele me abana, ela traz um copo com água e açúcar. Sento no banco, mas não me sinto. E de onde surgiu aquele homem de preto? Vejo uma pergunta, ouço uma resposta. Sim. Dedos algemados, clics e mais clics, chove arroz. Gente, muita gente. Aqueles dezenove segundos duraram...
– Até que a morte os separe.
Ricardo, ainda apaixonado pela ex-esposa e agora colegas de trabalho, depositara em mim o papel de fazê-la feliz.