Amigos do Fingidor

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Vitrines


Paulo Sérgio Medeiros


Braços cruzados para trás, passos curtos, queixo no peito, balbucio na ponta dos lábios típico dos insanos e a companhia itinerante de dois vira-latas. O desvario do cabelo prateado endossava a suspeita de mais um órfão da sanidade mental vitimado pela finitude terrena.
Assim perambulava em meio à multidão pelas ruas do centro da cidade um dos moradores mais antigos da av. Eduardo Ribeiro, seu Platão. Depois que ficou viúvo a casa tornara-se quase que inóspita. Só pisava naquele assoalho para descansar as pálpebras. A fachada da casa retratava fielmente as fraturas que a morte da esposa causara em sua vida.
A solidão fermenta a loucura quando a viagem aos porões da alma se dá no pós-encontro da vida com a morte. Sem mais os ouvidos atentos de sua amada, não era possível agora ouvi-lo cantando todo santo domingo:
 Na galeria, cada clarão
É como um dia depois de outro dia
Abrindo um salão
Passas em exposição
Passas sem ver teu vigia
Catando a poesia
Que entornas no chão...
“As vitrines”, de Chico Buarque, era a música favorita dela. Platão perdera a poesia que galopava em suas veias e se isolou como alguns falaram, ou se libertou como falaram outros, em um mundo sem vaidades e sem as fatias do tempo. Completamente raptado pelo desapego às coisas materiais, respirava dor, porém buscava na transparência das vidraças a certeza de encontrar o esplendor da verdade sem o absolutismo pregado pelo casal de filhos que tentou, sem sucesso, interná-lo em um sanatório.
Eles são todos loucos! Mais cedo ou mais tarde vou encontrá-la. Ela foi às compras, só isso. Esse era seu mantra.  Platão dava mais ouvido aos dois cachorros que aos próprios filhos que vez por outra o ironizavam ao dizer-lhe da proximidade de tal encontro. De fato pai, o senhor está prestes a encontrar a mamãe, mas não nesse plano terreno. Alimentar-se só de esperança encherá seu peito de terra e seu corpo de pebas. Cravou a filha.
Retornar para casa à noite não mitigava a saudade dos quarenta anos dedicados àquela mulher de um homem só. E sem a companhia dos vira-latas a atmosfera era ainda mais lúgubre, musicada pelos pingos da torneira da pia metaforizando o choro dos amantes.
Isaura, a filha mais velha, percebera a ausência dos cachorros naquela semana e os reconheceu dormindo em frente à Mesbla sob o sereno de março. A loja ganhara dois cães de guarda, enquanto Platão, enfim, gozara da tranquilidade de noites bem-dormidas. E a filha estranhara a súbita mudança de ares.
Domingo, oito de março amanheceu e seu Platão acordou cantarolando, sacou do guarda-roupa a sua melhor roupa, reconciliou-se com o chuveiro, preparou um bom café da manhã e foi ao encontro dos seus fiéis escudeiros, que durante uma semana fizeram vigília na porta da loja de departamentos. Antes, porém, passou em uma floricultura, comprou um buquê de flores e com um sorriso esticado no rosto chegou ao seu destino. Os cães fizeram a festa e sem cerimônias diante da vitrine ele entregou seu sorriso àquele manequim e bailou cantando:
Na galeria, cada clarão
É como um dia depois de outro dia
Abrindo um salão
Passas em exposição
Passas sem ver teu vigia
Catando a poesia
Que entornas no chão...