Amigos do Fingidor

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Metamorfoses da vida e da morte


João Bosco Botelho


Existem fortes indicativos de que as muitas práticas curativas/medicinais contribuíram para moldar o pensamento e as ações em torno dos significantes simbólicos da vida e da morte, da saúde e da doença, enfim, do próprio modo com que as civilizações que desenvolveram a escrita.
A partir dos primeiros registros escritos, produzidos nas civilizações que se desenvolveram nas margens dos grandes rios Nilo, Indo, Tigre e Eufrates, a luta para entender os limites da vida identificam, com muita clareza, três tipos de Medicinas:
1. Empírica: nasceu como fruto da milenar relação dos homens e das mulheres com a natureza circundante, em especial, dos saberes empíricos em torno do uso dos vegetais e minerais, mudanças nos corpos com o passar dos anos vividos, a observação dos movimentos dos astros, a importância do Sol na sobrevivência de tudo e de todos, a decomposição dos corpos após a morte e a impressionante vontade coletiva para empurrar os limites da vida. Historicamente, tem sido utilizada por todos, sejam poderosos ou excluídos. Os mistérios e as práticas dessa complexa relação, no início, foram repassados oralmente, e depois pela escrita, contribuindo para que os registros passassem de geração em geração;
2. Divina: permeando a vontade de rejeitar a morte e as buscas das soluções para impedir o avanço das doenças, desde os tempos imemoriais, estão as muitas divindades curadoras, entendidas com poderes sobre-humanos capazes de curar;
3. Oficial: muito mais recente na história humana, o aparecimento está diretamente relacionado com a estruturação social e religiosa, portanto, já claramente identificável nas primeiras civilizações escravistas. Geralmente, interage às anteriores e é a única autorizada pelo poder dominante para curar, de acordo com as regras da dominação muito específicas que incluem a obediência aos deuses dominantes. O conhecimento gerado, tanto no passado quanto no presente, tem sido transmitido em escolas mantidas pela mesma autoridade. Os agentes curadores desfrutam de pouca liberdade de inovação e são obrigados à obediência das normas ditadas pelo conhecimento reconhecido. As atitudes inovadoras, em busca de novas alternativas, obrigatoriamente, devem passar pelo crivo da comunidade fiscalizadora.
O confronto e a cooperação entre os agentes curadores, representantes das três Medicinas, reflete o processo histórico, inserido nas mentalidades e nas culturas, com o objetivo de ampliar os limites da vida e evitar a dor, seja ela coletiva ou pessoal. Nesse sentido, os principais agentes curadores são:
1. Dos curadores empíricos: durante muitos milhares de anos, esses especialistas da cura, semelhantes aos dos dias atuais, eram, provavelmente, membros destacados nas respectivas sociedades, que dominavam o uso empírico de plantas e procedimentos específicos para aliviar a dor. Só recente, receberam denominações: massagistas, benzedeiras, erveiras, padres, pastores, pajés, médiuns, harmonizadores, umbandistas, mães e pais de santo, padres e freiras carismáticas, entre outros;
2. Das divindades taumaturgas: incontáveis deuses e deusas são evocados no processo de cura;
3. Do curador oficial: como fruto da organização social e, principalmente, da absoluta necessidade do Estado organizar e fiscalizar, o médico se impôs como o exclusivo agente da Medicina oficial, a oriunda das universidades.