Amigos do Fingidor

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Valer – uma história não contada



Tenório Telles


No poema “Morte e vida severina”, João Cabral de Melo Neto escreveu alguns dos versos mais intensos da nossa literatura. Trata-se da parte final de seu célebre texto: “Severino, retirante, / deixe agora que lhe diga: / eu não sei bem a resposta / da pergunta que fazia, / se não vale mais saltar / fora da ponte e da vida; / [...] mas se responder não pude / à pergunta que fazia, / ela, a vida, a respondeu / com sua presença viva. / E não há melhor resposta / que o espetáculo da vida: / vê-la desfiar seu fio, / que também se chama vida, / ver a fábrica que ela mesma, / teimosamente, se fabrica, / vê-la brotar como há pouco / em nova vida explodida...”. Não se passa incólume pela leitura dessa obra-prima do poeta pernambucano. Décadas se passaram do meu encontro com este poema – e ele continua ressoando e relembrando a lição que o funda: tudo se resolve dentro da vida – e não há como fugir aos seus desígnios e nenhuma força é maior que o impulso da vida.
Pensando esses dias sobre o fechamento da Livraria Valer, os versos de João Cabral afloraram em minha lembrança. Um em particular: a vida sempre responde a tudo “com sua presença viva”.  Relembrei tantas vivências dos anos que estive à frente da Editora: tanta luta, tantas incompreensões e tanta maldade que tivemos de enfrentar para nos mantermos de pé e realizar nossa missão. Só o sonho e a convicção de estar comprometido com uma boa causa sustenta um ser humano nos seus embates cotidianos. Ingênuo, em 1996 assumi a coordenação editorial acreditando que os poetas, os intelectuais e os homens que defendiam o discurso da mudança do mundo eram bons e generosos. Não considerei a velha lição de que não são as palavras que definem um homem, mas seus atos. Eu também me iludi com as belas palavras e os belos discursos.
Bastaram os lançamentos dos primeiros livros, das coleções de literatura e história, a realização dos lançamentos e eventos, especialmente a “Quarta Literária”, para que se iniciasse uma torrente de agressões, infâmias e mesquinharias. Foi, então, que aprendi que em Manaus o trabalho incomoda. Desperta inveja, rancor e agressões. Alguns nos acusaram de sermos “laranja” de um ex-governador de estado, com o qual não tínhamos contato. Outros, que fazíamos negócios escusos. Chegaram ao absurdo de afirmar que comandávamos uma lavanderia de dinheiro ilícito. Enfrentei muitos embates desfazendo essas maledicências e tentando explicar que o que nos movia era o desejo de contribuir com o processo cultural de Manaus e ajudar a formar leitores, resgatar as obras importantes da literatura regional e incentivar a publicação de novos escritores. Esses argumentos não convenceram as almas sebosas que vivem de espalhar cizânia e promover dissensões. Essas coisas cansam. E essa era a intenção dos ataques: minar nossa resistência, desconcentrar, dividir e enfraquecer.
Quando uma calúnia se esvaziava, outra era engendrada e disseminada. Durante anos, um grupo de autores se reuniu para maldizer a vida alheia e alimentar essa corrente de intrigas com o objetivo de interditar e sabotar qualquer movimento que pusesse em risco a suposta hegemonia que imaginavam ter no processo cultural. Para atingir seu intento recorriam a ofensas pessoais, preconceito de gênero e à desqualificação intelectual. Chegaram ao cúmulo de eleger um psicopata para uma entidade representativa com o intuito de usá-lo para atacar seus oponentes. Um dos alvos dessa criatura rancorosa e má foi a Editora Valer. Passou anos atacando, maldizendo, forjando dossiês, fazendo acusações infundadas, e que cometíamos o pecado imperdoável de ganharmos dinheiro com a literatura. Bem que esse pecado poderia ter se consumado – teríamos tido condições de fazer muito mais pelo livro e pela leitura no Amazonas.
    Tive dificuldade em entender o porquê de tanta agressividade. Não tinha convivência com essa criatura, nunca lhe fizera mal. A inveja e o ressentimento eram as explicações para tal comportamento. Ele não suportava o fato de uma outra pessoa, e não ele, estar realizando o trabalho de produção de livros e animação cultural que fazíamos. Por isso virei seu alvo. Foi mais de uma década de agressões e intrigas. E assim me tornei um agente do neoliberalismo na cultura amazonense. Um capitalista voraz do mundo editorial. O trágico de tudo isso é que algumas pessoas davam crédito a toda essa insanidade e davam força para que ele continuasse. As coisas descambaram para a violência: tomei posse na Academia de Letras sob ameaça de bomba. Essa experiência me ensinou que precisamos ter cuidado com os ressentidos – são seres frustrados que se comprazem em causar sofrimento aos que personificam aquilo que gostariam de ser.
    A história da Valer me ensinou que todo processo cultural é político – e que na sociedade trava-se um embate pelo controle da cultura. Nesse aspecto, as atividades artísticas realizadas pela Valer foram um incômodo para algumas autoridades públicas que têm uma visão exclusivista e autoritária das ações de cultura. Acreditam que só eles podem empreender e quem ousar fazer algo nessa seara é alvo de interdição, boicotes e ameaças. A cultura, nesta sociedade, não é o espaço da civilização. É na cultura que a barbárie se manifesta de forma cruel, velada. O dramático do embate contra o poder instituído é que a luta é desigual: como enfrentar uma força que detém os meios para destruir quem o ameaça? Que coopta e compra as pessoas da sua conveniência? Essa história foi tão surreal que se chegou ao absurdo de tentar desapropriar o prédio onde funcionava a Valer. Iniciou-se um processo, pasmem, com o parecer favorável de um conhecido jornalista e colunista social, que só não se efetivou porque recorremos a diversas autoridades que intercederam e o documento foi arquivado. Um momento dramático foi quando invadiram o escritório da Editora e furtaram HD’s e “pen drivers” com arquivos de trabalho. Não escapamos igualmente das intrigas palacianas: inúmeras vezes tentaram criar indisposição com o chefe do executivo estadual. O problema é que nos subestimávamos: não acreditávamos que o que fazíamos pudesse incomodar politicamente. Foi mais um dos nossos muitos enganos. O fato é que fomos salvos das possíveis represálias do poder pela interferência de muitos protetores, pessoas solidárias com o nosso trabalho que intercederam e ajudaram a desfazer equívocos e intrigas.

    Essa história é reveladora da ambiguidade de todo processo humano: toda experiência tem um plano visível e outro que se desenrola subliminarmente. E é no segundo que a vida se decide. Um dia talvez essa história seja contada. A Livraria Valer encerrou seu ciclo de forma digna: Isaac Maciel, seu criador, assumiu com coragem a decisão de encerrar essa história. Foi o último a sair, no dia 8 de novembro de 2015, às 18h30. Volto a João Cabral: “E não há melhor resposta / que o espetáculo da vida: [...] / vê-la brotar como há pouco / em nova vida explodida...”.