Amigos do Fingidor

terça-feira, 30 de junho de 2020

Parabéns, Itacoatiara



Pedro Lucas Lindoso


Foi uma imensa alegria e grande privilégio. Atendendo ao convite do nosso presidente do IGHA, Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, Dr. José Braga, participei da instalação do IGHI – Instituto Geográfico e Histórico de Itacoatiara. A cerimônia foi por videoconferência, por meio do sistema google-meet, na noite do dia 25 de junho de 2020.
Foram empossados, Presidente – Claudemilson Nonato Santos de Oliveira; Vice-Presidente – Maria de Castro Gama; Orador Oficial – Salomão Amazonas Barros; Secretária – Ednilce Ferreira Cruz Mendes; Secretária Adjunta – Katiane Campos Nogueira Vieira; Tesoureiro – Ronny Von Medeiros Guimarães Lira. Como membros efetivos – Ignês Tereza Peixoto de Paiva, Thyrso Munoz de Araújo, Zeni Soares Cavalcante e Carlos Eleotério de Moraes.
Já sob a presidência do Dr. Claudemilson Oliveira, a cerimônia contou com a presença do Prefeito Municipal de Itacoatiara, Sr. Antônio Peixoto de Oliveira, do Presidente da Câmara dos Vereadores, Sr. Aluísio Isper Neto, do Dr. José Braga, Dr. Silvio Pulga, reitor da UFAM, Professora Rosa Brito, dentre outros. E também o grande embaixador itacoatiarense em Manaus, Francisco Gomes da Silva.
Uma cidade onde nasceram intelectuais como os irmãos Edson e Elson Farias, Francisco Gomes, e vários outros, não poderia prescindir de ter seu Instituto Geográfico e Histórico.
De parabéns o Dr. José Braga, atual presidente do IGHA – Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, pela excelente iniciativa. Também parabenizo o ilustre itacoatiarense e vice-presidente, Francisco Gomes da Silva pela empreitada de sucesso. Itacoatiara e os itacoatiarenses merecem.
Ao me ser concedida a palavra, aproveitei para homenagear minha tia-avó Helmosa Coutinho Fadoul.  Nascida em Itacoatiara, era filha de Bento Pedro Fadoul e Isabel Coutinho Fadoul. Irmã de minha avó materna Brigitta Fadoul Daou. Meu bisavô Bento Pedro tinha negócios em Borba e em Itacoatiara. Minha avó era de Borba, enquanto Helmosa era natural da Velha Serpa. Poliglota e muito culta, veio menina para Manaus. Estudou no Pará, inclusive sendo a primeira e única mulher a cursar a Faculdade de Química do Pará, instituição pioneira, administrada por químicos vindo da França. Helmosa costumava declamar poemas na sociedade de Manaus. Uma reconhecida “diseuse”, como informa a foto reportagem que anexamos a esta crônica. Em sua memória, presto homenagens a todos os ilustres itacoatiarenses pela instalação do IGHI.




segunda-feira, 29 de junho de 2020

A Cunhã-Poranga e o Levantador de Toadas



Hiram Lopes

Já vivia em isolamento social quando na época das chuvas a pandemia chegou à cidade e acrescentou o medo à minha rotina e o medo trouxe a obediência aos cuidados para a sobrevivência. Passei a regrar ainda mais o contato com outras pessoas. A ameaça de morte nos cobria como uma nuvem invisível, as notícias das mortes de pessoas próximas e distantes chegavam diariamente e eu me sentia em uma fila aguardando a minha vez de encontrar o momento que poderia ser o último de minha vida.
Havia ficado viúvo havia poucos anos e me mudei da capital para a minha terra natal no interior do estado. Encarava minha tristeza como um enredo do qual deveria escapar, mas não sabia como. Via minha vida como um rio cheio de curvas causadas pelos obstáculos que se apresentavam. Algumas vezes algo fazia com que o curso fosse desviado e uma parte do rio se tornava uma lagoa que secava no verão e enchia no período de chuvas. Lagoas de tristeza, eu as via assim.
Passei a ouvir blues, a palavra me intrigava, pois é intraduzível e isso me encantava, como pode um sentimento ser próprio para uns e para outros uma incógnita? Passei a ouvir blues para curar ainda mais a tristeza que me acometia, queria torná-la ainda mais densa, mais palpável, queria vê-la, mergulhar na melancolia.
Certa noite ouvia absorto o blues “Love in vain”, onde o camarada chora a partida da mulher que pega o trem e vai embora:

And I followed her to the station, with a suitcase in my hand 
Well, it's hard to tell, it's hard to tell, when all your love's in vain 
All my love's in vain.

A sala estava numa penumbra, uma luz fluorescente vinda da varanda criava sombras na sala e de olhos fechados imaginava a cena da despedida. Numa das mãos um copo de uísque e na outra um cigarro. Subitamente batem à porta e acordo deste quase sonho; lentamente levanto para ver quem é. A luz vermelha vinda de um bar em frente me desperta. É a vizinha que quer saber como eu estava e durante a breve conversa perguntou se eu me recordava da Rita.
– A Cunhã-Poranga! Pois é, faleceu na sexta-feira passada por causa do vírus, acrescentou ela.
Nesse momento começou a chover e ela correu prometendo me contar os detalhes depois.
Claro que a conhecia, foi meu primeiro amor nos últimos anos do colégio, antes da faculdade. Tínhamos vivido um romance ingênuo, mas que encarávamos com seriedade e os laços de compromisso que surgiram eram fortes. Fazíamos planos para o futuro, ela seria professora da rede pública e eu seria policial militar. Animados com esses planos a nossa união era tranquila e serena. Eu seguia determinado em fazê-la feliz. É verdade que antes tinha vontade de mudar para a capital e ser professor universitário, mas o amor prevaleceu, seria feliz com ela, imaginava. A cidade em que morávamos celebrava o folclore dos dois bois-bumbás, o vermelho e o azul. Ela era do boi azul e o meu coração era vermelho. O embate entre os dois era muito acirrado e embora não estivéssemos em Verona essa união não cabia muito bem e me deixava desconfortável. Então decidi, sem muito alarde, passar a celebrar o boi azul, e assim foi.
Noutro dia a vizinha bateu novamente na porta e contou que o marido da Rita havia morrido também do vírus, no domingo seguinte à morte dela.
– O Cesarino que era o Levantador de Toada do boi azul, que coisa! Disse ela.
Foi no último ano do colégio, ela se candidatou e foi escolhida a Cunhã-Poranga do boi azul. Nunca me esqueço daquelas noites, ela parecia um beija-flor dançando na arena, os pés não pareciam tocar no chão, a plateia urrava encantada. Foi o começo do fim. Apaixonou-se pelo Levantador de Toadas que lhe prometeu fazerem carreira juntos na capital e por isso terminamos. No ano seguinte ele viajou para a capital e logo depois ela foi também. Foi minha primeira lagoa de tristeza.
Havia me mudado também para a capital onde fiquei muito anos antes de retornar. As lembranças daquela época agora eram vagas, mas recordo a sua partida para a capital como se fosse uma cena de filme. Uma breve cena carregada de melancolia, parcamente iluminada e um céu oculto pela escuridão.
Naquela noite fui ao porto com uma mala na mão, pretendia também embarcar e tentar reconquistá-la durante a viagem. Faltou-me a coragem. Observei de longe ela se despedir alegremente dos familiares e do convés ela acenava enquanto a embarcação afastava-se e sumia no escuro da noite. Logo somente avistavam-se as duas luzes laterais do barco.
Recordei os últimos versos de “Love in vain”:

Well, the blue light was my blues 
And the red light was my mind 
All my love's in vain.[1]



[1] “Love in vain”, de Robert Johnson.

domingo, 28 de junho de 2020

Manaus, amor e memória CDLXIX


7 de Setembro, na interseção, hoje, com Getúlio Vargas e Floriano Peixoto.
Ao fundo, à direita, o Cine Polytheama. 

sábado, 27 de junho de 2020

Fantasy Art - Galeria


Raluca Vulcan.

quinta-feira, 25 de junho de 2020

A poesia é necessária?



Poeta não se define: é um ser à parte

Jorge Tufic (1930-2018)


Poeta não se define: é um ser à parte.
De homem se veste, de animal caminha,
mas algo nele de anjo se avizinha
quando em fatias brancas se reparte.
Cheira o pão de seus versos; faz-se arte
pela dor que humaniza e que espezinha;
não a dor do egoísmo, a dor mesquinha,
mas a dor que se empluma no estandarte.
Pode ser o domingo que se anula,
um galgo que tropeça, o lenço esgarço
que, sendo de Marília, ainda tremula.
Para si mesmo estranho ele se enigma,
avesso ao paletó, caderno esparso,
nada o liberta, nunca, desse estigma.


quarta-feira, 24 de junho de 2020

Fantasy Art - Galeria


Steven Kenny.


terça-feira, 23 de junho de 2020

Ignorância mata



Pedro Lucas Lindoso


Durante esse confinamento que parece não ter fim, converso com meu amigo Chaguinhas, via WhatsApp, sobre vários assuntos, inclusive a pandemia.
Chaguinhas se diz abismado com algumas atitudes deploráveis perpetradas por algumas pessoas durante a pandemia. E reafirma que está, a cada dia que passa, mais desiludido com o ser humano. Considera que a humanidade não tem jeito. Nem uma pandemia dessas conserta as pessoas. Ao contrário, a pandemia expõe a todos nós a sordidez dos homens. A incúria total das pessoas. A total imprevidência, negligência, ausência de inciativa plausível de governos e autoridades. 
Uma médica de São Paulo foi interditada pelo Conselho de Medicina devido a divulgação de um soro anticoronavírus vendido em seu consultório. Outra médica, famosa dermatologista, repita-se dermatologista, houve por bem receitar hidrocloroquina como profilaxia para toda a equipe de sua clínica. Diz ela que é uma forma de prevenção ao COVID-19.
Viralizou um depoimento de uma senhora aloprada que confundia COVID-19, a doença, com o coronavírus, o vírus que causa a COVID-19. Uma aula de insanidade e desconhecimento. Uma loucura!
Em meio a tanta insanidade foram convocados epidemiologistas, médicos, sociólogos, filósofos, intelectuais e cientistas em geral, para se pronunciarem sobre a epidemia. E pronunciamento é o que não falta nas redes sociais.
Chaguinhas diz que, como bom amazônida, tem respeito pelos conhecimentos tradicionais dos povos da floresta.  Foi aconselhado a tomar mastruz para os pulmões. Chá de gengibre ou mangarataia, casca de panacanaúba, além de casca de quina. Tudo como profilaxia para o terrível vírus.
Por que não damos créditos naquilo que nós ouvimos dos povos tradicionais?  Há uma memória biocultural importante que deve ser respeitada. Um conjunto de saberes, de práticas, que eventualmente adquirem significados aos mesmos cientistas, médicos e pesquisadores de prestígio. Mesmo porque a memória biocultural é fonte de pesquisa aos cientistas do mundo inteiro.
O que é lamentável é o desconhecimento formal e escolar do caboclo leso. Ao receber o resultado do teste para coronavírus como positivo, achou que estava tudo bem. Tudo ok. Tudo positivo. E feliz da vida descuidou de qualquer tratamento.
Ignorância mata, concluiu Chaguinhas.

domingo, 21 de junho de 2020

Manaus, amor e memória CDLXVIII

Praça Oswaldo Cruz.

sábado, 20 de junho de 2020

Fantasy Art - Galeria


Lauren K. Cannon.

sexta-feira, 19 de junho de 2020

O ridículo da vida



Zemaria Pinto


Eu estava às voltas com uma playlist, cujo eixo é a composição “Muito romântico”, de Caetano Veloso. Nunca um tema foi tão aderente: do samba-canção ao iê-iê-iê, da bossa-nova ao sertanejo, do bolero ao tropicalismo, do baião ao rock, do samba ao manguebeat, de Itamar Assumpção a Odair José – cabe de tudo na minha nova lista. Em tempos de isolamento, trocar ideias sobre música é um prazer redescoberto. Mandei à Rubi o link, pedindo-lhe sugestões. Rubi é especialista em fossa, dor-de-cotovelo e gêneros afins. Trabalhou na noite, por muito tempo. Agora, mantém um Salão bem animado, no Zumbi dos Palmares, com um conceito muito atual: enquanto passam horas em minuciosos tratamentos de beleza, as/os clientes vão bebericando e petiscando, sempre ao som de músicas românticas – brasileiras e latinas. O happy hour das sextas e sábados é sempre um acontecimento. O cabaré se inflama, diz Rubi, citando Lupicínio, uma de suas paixões. Por conta da pandemia, o salão está fechado há três meses, com previsão de poder reabrir pelo final de junho. Mas Rubi não parou: atende em domicílio. Delivery de cabelo, ela diz, pronunciando as letras dê e ele com aquela entonação tipicamente cearense. Flor, marido de Rubi, é motorista de Uber. A queda no movimento não o intimidou: trabalha de 12 a 14 horas por dia, para fazer sobrar alguma coisa, além do aluguel do carro e das taxas escorchantes do aplicativo. Os dois são uma pintura: ela, magra, pequena, loura platinada, os olhos azuis; ele, um atarracado índio Baniwa de São Gabriel da Cachoeira, onde Rubi, procurando um Xamã para curá-la de uma tristeza infinda, o encontrou. Arranhando o inglês e o espanhol, Flor era guia turístico numa cidade de raríssimos turistas, quase sempre mochileiros. Florismar, Flor para todo mundo, para ela é Florzinho. Dolores, seu nome de batismo, Rubi quer esquecer. Nome de gente sofredora, ela diz, completando com um cruz-credo. No Salão, Flor a chama respeitosa e carinhosamente de Dona Branca. Nas nossas rodas de conversa, violão e cerveja, comandadas por Mestre Pinheiro, é Branquinha. Não têm filhos. Não quiseram ou não puderam ter. Mas sua casa, lá mesmo no bairro, é um autêntico viveiro: jabutis, pacas, coelhos, marrecos, papagaios, araras, tucanos, além de cães e gatos. Todos em liberdade e convivendo pacificamente, no amplo quintal. Flor diz que são os xerimbabos deles.
Estranhei a demora na resposta de Rubi, sempre tão disposta a conversar fiado. Chequei, ela nem lera. Liguei, não atendeu. Liguei para Flor. Também não atendeu. Diabo. Passava das 10 da noite. Fui até lá. O bairro estava calmo, para um domingo. Na casa, ninguém. Os cachorros latiram, ao perceberem minha presença. Uma vizinha achegou-se e sem muita conversa informou que ambos foram hospitalizados naquela tarde. Caralho. Estão lá no Delphina. Do outro lado da cidade. Eu estava sem máscara. Não iam me deixar entrar. Voltei em casa. Cheguei no hospital quase meia-noite. Movimento intenso, embora menor do que eu imaginara. Depois de algum tempo, consegui localizá-los. Rubi estava respirando artificialmente, na UTI. Flor, na enfermaria, sedado. Se voltasse no dia seguinte, talvez conseguisse falar com ele, me disseram. Cedinho estava lá, de volta. No final da manhã, me deixaram entrar na enfermaria onde estava Flor. Sedado, uma enfermeira me falou por cima dos ombros. Notei a dificuldade dele em respirar. Consegui ver Rubi, pelo vidro da porta. Aparentemente, dormia. Voltei ao hospital no dia seguinte: nenhuma novidade. Na quarta-feira, me informaram que Rubi estava com pneumonia. Tentei interferir, sem saber exatamente o que poderia ser feito. Na quinta-feira, feriado, passamos o dia no hospital, eu e Mestre Pinheiro, impotentes, nada havia a fazer, além de esperar que a medicação fizesse efeito. Conversamos muito. Mestre Pinheiro é uma enciclopédia de música brasileira. Flor agora estava respirando por aparelhos também. Disseram que era por precaução. Saímos do hospital, a noite ia alta, quase sexta-feira.
Em casa, insone, coloquei a playlist, que eu não ouvia desde domingo. Não sei quantas músicas tocaram no modo aleatório. Não estava concentrado, pensando mil coisas ao mesmo tempo. Mas a voz de Dalva de Oliveira me prendeu a atenção. Mandei repetir uma, duas, três, quatro vezes, até que o toque do telefone interrompeu a reprodução. Passava das duas horas. Puta que pariu. Não consegui conter um grito rouco, de dor abafada. Rubi jamais me diria o que achava da lista, nem me daria indicações. Porra. Mil vezes porra. Eu já estava no hospital quando me informaram que Flor também não resistira. Não foram testados. A causa formal de ambos foi pneumonia. E as estatísticas? Li depois que a morte por “problemas respiratórios” aumentou em mais de 1.000% em relação ao mesmo período do ano anterior. Aliás, começou a aumentar na proporção inversa à diminuição da morte causada pela pandemia. Filhos da puta.
Rubi e Flor foram enterrados lado a lado, numa cova só deles. Dia 12 de junho. Rubi, com seu humor amargo, diria que até na morte estiveram sob o signo do amor. Ligo a playlist. O algoritmo inteligente já sabe o que procuro. A voz de Dalva ecoa na sala escura: ...o amor é simplesmente o ridículo da vida.[1]
  



[1] Fragmento da canção “Bom dia”, de Herivelto Martins e Aldo Cabral, gravada pela primeira vez por Linda Batista, no início da década de 1940. Mais de 20 anos depois, Dalva de Oliveira, que fora esposa de Herivelto, daria à canção sua interpretação definitiva. (Colaboração: Mestre Pinheiro)

quinta-feira, 18 de junho de 2020

A poesia é necessária?




O poeta lava louça
Donaldo Mello
Eu queria mostrar a mais secreta das suspeitas humanas – a da sua inutilidade.
(Julio Cortázar)

Lava a alma:
da ação do isolamento, um animal ocupado no exercício da mastigação

De viver no mundo:
da razão na “sociedade do cansaço”, vivendo o tédio profundo

No ninho do descanso, polindo
o repouso do pássaro onírico
Quando tece mas não se fia todo dia ...

Até porque, a última espuma breve, já ida, escorria feito a Vida!



quarta-feira, 17 de junho de 2020

Fantasy Art - Galeria


Monika Luniak.

terça-feira, 16 de junho de 2020

Eu não esqueci



Pedro Lucas Lindoso


Um americano de cor branca ajoelhou-se no pescoço de George Floyd, outro americano, de cor preta. O branco sufocou o preto, matando-o. Milhares de pessoas da raça humana, a qual ambos pertencem, se indignaram e promoveram protestos em todos os cantos do planeta Terra. Não era sem tempo. Muitas minorias são diariamente sufocadas mundo afora. E precisamos dar um basta nisso.  
Aprendi com meu pai que devemos respeitar os seres humanos, independentemente da cor, do gênero, da opção sexual, da religião, da ocupação, da altura ou do peso. Não gosto da expressão “politicamente correto”. As pessoas têm a obrigação de ser humanamente corretas. Em todos os sentidos. Meu pai desaconselhava o uso de palavras como denegrir ou judiar. Eram ofensivas aos negros e aos judeus.
Meu tio padre Moisés me disse que discriminação de pessoas é pecado e transgressão à Lei de Deus. Está nas Escrituras. O pai deles, meu avô, teve um primo que se casou com uma negra. Eles todos de cor branca tiveram uma prima, de cor preta, chamada Eunice.
Os filhos de Eunice, meus primos, são considerados pretos ou pardos. João é considerado preto. Ouço depoimentos de vários pretos na TV e nas redes sociais. São relatos abomináveis sobre eventos em que foram vítimas de crime de racismo. O João não pode se pronunciar porque está doente e esquecido. Então, eu, seu primo de cor branca, vou relatar um fato, vivido por nós dois, em seu lugar.
Tínhamos por volta de 13 anos de idade e morávamos em Brasília. João e sua mãe estavam em nossa casa. Após o almoço, João e eu jogávamos futebol de botão enquanto sua mãe conversava com a minha. Fui solicitado a pagar uma conta de telefone numa agência bancária perto de casa. Convidei João para ir comigo.
Eu entrei no banco sem problemas. João ficou do lado de fora. Eu estava de calção e camiseta. João estava vestindo calça comprida e camisa. A princípio não entendi o que acontecia. Na saída da agência perguntei:
– O que houve João? E ele respondeu:
– Tu não vês que eu sou neguinho. O segurança me barrou.
Quis retornar e tomar satisfação com o guarda. Mas João não deixou. Pediu para que eu esquecesse. Há cinquenta anos atrás era assim mesmo. Ninguém protestava. João anda esquecido. Disso e de outras discriminações pelo qual passou e nunca me disse. João anda mesmo esquecido. De tudo.
Mas eu não esqueci. 



segunda-feira, 15 de junho de 2020

A Mansão dos Belos Quadros



Hiram Lopes

Ao Armando de Menezes, que há 3 anos nos deixou.

Há no trajeto que faço de volta do meu trabalho um casarão que às sextas-feiras está iluminado e nele percebo intenso movimento de pessoas entrando e saindo. A rua fica na parte antiga da cidade e ainda possui muitas casas antigas, conservadas assim por conta de uma tardia norma municipal. O casarão é uma dessas casas antigas, eleva-se do plano da rua e uma escada central nos leva a um pátio frontal descoberto. Do lado direito uma escada de poucos degraus dá acesso ao seu interior.
O povo da cidade faz pouquíssima referência a essa casa. Já ouvi chamarem-na de Mansão dos Belos Quadros porque ali habita um pintor muito requisitado por europeus em passagem pela cidade, mas o que acontece ali às sextas-feiras é algo distinto, imagino eu, das atividades do pintor.
Como sou fascinado pelas coisas esotéricas, logo imaginei, até desejei, que ali uma seita se reuniria para dar vazão de suas devoções na maneira mais discreta para não despertar a atenção dos outros citadinos que não estariam preparados para apreciar o objeto de tal devoção. Esta ideia foi tomando forma e força com o passar do tempo, principalmente porque pouca informação obtinha a respeito do que ocorria lá dentro.
Observei que o casarão fica entre a residência oficial do Bispo e a residência das freiras que administram um colégio religioso muito conhecido na cidade. Fiquei em dúvida em interpretar essa informação. A convivência parecia ser pacífica, pois não se tinha notícias de protestos de nenhuma das partes no noticiário local. Seria este grupo do casarão uma extensão ou afiliados de seus vizinhos? Talvez uma célula secreta de um núcleo mais profundo que acompanhava as atividades esotéricas que eram servidas à comunidade local?
Imaginei também que poderia ser uma seita contrária às crenças dos vizinhos do casarão, que se implantara ali num gesto de audácia, coragem e desafio próprios daqueles que desejam mudar o mundo. Todas as hipóteses me fascinavam.
Na verdade, já não me interessavam os motivos das reuniões das sextas-feiras, a vontade de descobrir foi aumentando durante todo o longo período das chuvas. Quando o verão chegou e com ele os últimos festejos das festas juninas, a frequência do casarão parecia ter voltado ao normal, tomei coragem e numa sexta-feira quente e abafada, subi as escadas e abri a porta principal. Estava em uma pequena antessala e logo um som de campainha anunciou minha presença. Uma porta se abriu e um homem pequeno apareceu e com um sorriso, que imaginei mefistofélico, convidou-me a entrar. Entramos em uma sala maior com duas janelas que formavam a fachada do casarão. Sentei-me ao indicar-me uma cadeira e expliquei que sempre passava em frente à casa e a curiosidade me despertara a vontade de participar do movimento que ali se desenrolava. Ele sorriu novamente aquele sorriso que me pareceu diabólico e mandou-me esperar, retirando-se em seguida.
Admirei então os grandes quadros pendurados nas paredes da sala e da sala seguinte. O cheiro das tintas de pintura dominava o ambiente. Na sala seguinte estava um cavalete com uma tela ainda em elaboração, ao lado, uma mesinha com bisnagas de tintas, pincéis e cadinhos diversos. A casa tinha um pé-direito alto nessas duas salas, como era costume na construção dessas casas antigas. Nesse momento o homem retornou e me disse que eu deveria passar por testes antes de ser admitido. Concordei imediatamente sem ao menos refletir sobre que testes seriam aqueles.
Ele então me apresentou um grande prato de louça negra com um punhado de arroz, em grão, distribuído com uma espiral e mais nada disse.
Olhei o prato e logo me veio a imagem da Via Láctea, o caminho do leite como a chamavam os gregos. A quantidade estonteante de estrelas que a formam voltou a me impressionar como sempre me impressionam as coisas da natureza. Olhei em volta e vi os quadros que retratavam multidões em fila na busca de água. Nos quadros, as multidões estavam em movimento em busca de uma solução para seu destino; nos quadros, o presente tinha pouco a oferecer. Outros quadros eram de mandalas formadas por inúmeros quadrículos multicoloridos e traziam de novo a imagem da espiral e das quantidades infinitas e sua visão hipnótica de movimento nos levava novamente à ideia de insatisfação com o presente e da busca de soluções. Então eu disse:
– A necessidade de buscarmos novos caminhos para os alimentos do corpo e da alma.
Ele sorriu, agora um sorriso amistoso, e me convidou a segui-lo.
Fomos para outra sala comprida, porém com teto rebaixado por forro de madeira de peças macheadas. Duas janelas laterais davam para a parede e um pátio da residência das freiras. Uma longa mesa estava colocada na parte mais ao fundo da sala. Sentei-me em uma cadeira no lado oposto, uma área não ocupada da sala. Nas paredes, mais quadros, uma velha estante de madeira escura, com livros e quinquilharia, parecia abandonada. Ao meu lado estava uma velha máquina de costura, colocada ali como decoração.
À mesa estavam várias pessoas, que antes de entrar estavam em animada conversação, mas que se calaram quando entrei no recinto. Todos olharam para mim e uma vez sentado notei que no lado direito da mesa, próximo à cabeceira estava um homem de idade, com cabelos brancos, usando uma capa escura. Ao seu lado esquerdo, um outro homem de idade, de cabelos e bigodes grisalhos e também usava uma capa escura. Do outro lado da mesa, um homem mais novo também usava uma capa escura.
Sobre a mesa havia variadas bebidas e fartas porções de petiscos regionais.
O homem pequeno, que, agora eu sabia, era o artista autor dos quadros, aproximou-se daquele que usava a capa escura e que era o mais novo. Depois veio até mim e abriu um pedaço de papel onde estava escrito: IRENE RI.
Eu já tinha visto isso. Duas partículas. Um sistema binário. É um movimento lúdico de leitura nos dois sentidos, mas de mesmo significado. Não sei qual a utilidade, mas lembra a Matemática que constrói coisas que não tem utilidade conhecida, mas que são belas e intrigantes. Eu gosto da palavra ARARA, posso até dizer que a leio em um sentido e as vejo voando do sul para o norte pela manhã, à tarde quando volto a lê-la eu as vejo voando de volta do norte para o sul. Lembrei de uma frase famosa, SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS, que também lida ao contrário mantém as mesmas palavras. Uma das traduções dessa frase que aprecio é: o agricultor sábio mantém a rotação das culturas. Essa fusão de movimento e permanência é que me atrai, você busca a mudança mas sem perder o destino de sua jornada e sem perder o equilíbrio entre a razão e a beleza.
– É a ideia do movimento que parece existir entre o lúdico e o belo, respondi.
Notei que o homem de capa escura e que era o mais novo sorriu e balançou a cabeça concordando.
O artista trouxe-me um quadro onde estava retratado o homem de capa preta de cabelos e bigodes grisalhos. Nesse momento, as mulheres que estavam presentes, aproximaram-se do retratado, ladeando-o. O artista perguntou:
– Qual a diferença entre embriagado e inebriado?
Valha-me São Jorge! Recorro a ele, pois é o meu santo da transição. Mas recorreria principalmente a Jorge Luís Borges para buscar o significado destas palavras, no entanto estou só, aqui no casarão. A resposta parece óbvia, mas não deve ser tão fácil assim. As palavras parecem que são sinônimas, talvez nesta comunidade eles façam alguma distinção, já que pergunta pela diferença. Talvez um sentido fique em oposição ao outro, isto é, um visto como bom e outro com ruim. Ou pratica-se um sentido para alcançar o outro sentido, ou seja, os dois são bons. Olhei o quadro e vi que o retratado estava lendo um livro e quatro lindas mulheres ouviam o que lia. À sua frente, copos de bebida. Elas, com os corpos inclinados na direção dele, concentradas no que ouviam. Olhei nesse momento para ele e elas estavam ao seu lado, como que reproduzindo o quadro, só que ele sorria, flutuando, olhando para uma e para outra. Seria um Fauno sedutor que inebriado pela beleza feminina as embriagava para facilitar a conquista? Ou seria um amante inebriado da beleza feminina?
– Estar inebriado é estar embriagado pela beleza feminina, respondi.
O retratado levantou os dois braços sorrindo e confirmou balançando a cabeça.
O artista colocou, a mando do homem de cabelo branco e capa preta, na minha frente uma garrafa de água mineral de origem francesa, uma garrafa de uísque escocês e uma xícara de chá. Disse-me para beber rapidamente cada um deles e expressasse ao final os pensamentos que aflorassem no momento.
Primeiro me servi da água mineral francesa. Todas me parecem iguais, é difícil observar alguma distinção. Mas o fato de ser francesa me veio à mente a possibilidade de experimentar a vida além do nosso provincialismo, de ter visitado outras cidades e países, do alargamento da visão e de ter adquirido, naturalmente, novos hábitos sem afetação.
Depois me servi do uísque, sem gelo, e senti o ardor tomar conta da garganta e contive, parcialmente, uma tosse envergonhada. É uma bebida máscula, com certeza; imagino os celtas briguentos, tomando-a em jarras antes de se envolverem em brigas entre si. A água da vida, como era chamada, quebra os grilhões do politicamente correto e a língua fica solta para colocar as verdades no seu devido lugar.
Por fim me servi do chá. A figura da xícara de porcelana, com delicadas flores desenhadas remetia imediatamente à imagem da família, ao convívio familiar, do antigo hábito de reunir-se em torno da mesa para o lanche da tarde e estreitar-se os laços familiares, reforçando os valores dos mais velhos para os mais novos.
Nesse momento o artista pediu-me para beber logo o chá o que fiz rapidamente e estava fervente e exclamei sem pensar:
– Porra! Caralho, queimei a língua!
O homem de cabelo branco e de capa preta riu largamente e balançou a cabeça positivamente. Fui admitido no Chá do A.



domingo, 14 de junho de 2020

sábado, 13 de junho de 2020

Fantasy Art - Galeria


Cris de Lara.

sexta-feira, 12 de junho de 2020

quinta-feira, 11 de junho de 2020

A poesia é necessária?



Meus avós
Carlos de Assumpção


Os meus avós foram fortes
Foram fortes os meus avós

Orgulho-me dos meus avós
Que outrora
Carregaram sobre as costas
A cruz da escravidão

Orgulho-me dos meus avós
Que outrora
Trabalharam sozinhos
Para que este país
Se tornasse tão grande
Tão grande como hoje é

Os meus avós foram fortes
Foram fortes os meus avós

Este país meus irmãos é fruto
Das sementes de sacrifício
Que os meus avós plantaram
No solo do passado

Há muitas histórias
Sobre os meus avós
Que a História não faz
Questão de contar

Os meus avós foram bravos
Foram bravos os meus avós

Embora ainda não conhecessem
A nova terra
A que tinham sido transportados
Acorrentados como se fossem feras
Nos sinistros navios-negreiros
Embora ainda não conhecessem
A nova terra
Os meus avós fugiam das fazendas
Cidades bandeiras e minas
E se embrenhavam nas florestas
Perseguidos por cães e capitães-do-mato

Há muitas histórias
Sobre os meus avós
Que a História não faz
Questão de contar

E a história
Dos que desesperados
Se atiravam dos navios
No abismo do oceano
E eram acalentados
Por Iemanjá

E a história
Dos que enlouquecidos
Gritavam em vão
Chamando a mãe África
Saudosos da África
Ansiosos por estreitar
De novo nos braços
A velha mãe África

E a história
Dos que morriam de banzo
Dos que se suicidavam
Dos que recusavam
Qualquer alimento
E embora ameaçados
Por troncos e chicotes
Não se alimentavam
E acabavam morrendo
Encontrando na morte afinal
A porta da liberdade

E as fugas em massa
Planejadas na noite das senzalas

E os feitores
Mortos nos eitos

E os senhores
Mortos nas casas grandes
E nas tocaias das estradas

Há muitas histórias
Sobre os meus avós
Que a História não faz
Questão de contar

Os meus avós foram bravos
Foram bravos os meus avós

Não me venham dizer
Que os meus avós se submeteram
Facilmente à escravidão

Não me venham dizer
Que os meus avós foram
Escravos submissos
Por favor não me venham dizer
Eu não aceito mentiras

Cortarei com a espada
Dos meus versos
A cabeça de todas as mentiras
Mal intencionadas
Com que pretendem humilhar-me
Destruir o meu orgulho
Falseando também
A história dos meus avós

Os meus avós foram bravos
Foram bravos os meus avós

Apesar dos “castigos
Públicos para exemplo”

Apesar de flagelados
Na carne e na alma

Apesar de divididos
E oprimidos
Pelo regime aviltante

Apesar de todas
As crueldades sofridas

Os meus avós nunca
Nunca se submeteram
À escravidão

Há muitas histórias
Sobre os meus avós
Que a História não faz
Questão de contar

Os meus avós foram fortes
Foram bravos
Foram bravos foram fortes
Os meus avós

A quem ainda duvide
Aponto entre outras epopeias
A epopeia dos Palmares
Cujos quilombolas chefiados
Pelo herói negro Zumbi
Acuados pelos inimigos
Muito mais bem armados
E muito mais numerosos
Esgotadas todas as forças
Apagadas as esperanças
Despenham-se da Serra da Barriga
Preferindo a morte gloriosa
À infame vida de escravos

Aponto as revoltas malês
Quanto os batacotôs
(Tambores guerreiros)
Puseram em pânico
A cidade da Bahia

Aponto o quilombo de Jabaquara
Outro exemplo de bravura
Dos meus avós

Aponto as sociedades negras secretas
Que angariavam fundos
Para comprar alforria
De irmãos escravizados

Há muitas histórias
Sobre os meus avós
Que a História não faz
Questão de contar

Meus avós foram fortes
Foram bravos
Foram bravos foram fortes
Os meus avós