Hiram Lopes
Ao Armando de Menezes, que há 3 anos nos deixou.
Há
no trajeto que faço de volta do meu trabalho um casarão que às sextas-feiras
está iluminado e nele percebo intenso movimento de pessoas entrando e saindo. A
rua fica na parte antiga da cidade e ainda possui muitas casas antigas,
conservadas assim por conta de uma tardia norma municipal. O casarão é uma
dessas casas antigas, eleva-se do plano da rua e uma escada central nos leva a
um pátio frontal descoberto. Do lado direito uma escada de poucos degraus dá
acesso ao seu interior.
O
povo da cidade faz pouquíssima referência a essa casa. Já ouvi chamarem-na de
Mansão dos Belos Quadros porque ali habita um pintor muito requisitado por
europeus em passagem pela cidade, mas o que acontece ali às sextas-feiras é
algo distinto, imagino eu, das atividades do pintor.
Como
sou fascinado pelas coisas esotéricas, logo imaginei, até desejei, que ali uma
seita se reuniria para dar vazão de suas devoções na maneira mais discreta para
não despertar a atenção dos outros citadinos que não estariam preparados para
apreciar o objeto de tal devoção. Esta ideia foi tomando forma e força com o
passar do tempo, principalmente porque pouca informação obtinha a respeito do
que ocorria lá dentro.
Observei
que o casarão fica entre a residência oficial do Bispo e a residência das freiras
que administram um colégio religioso muito conhecido na cidade. Fiquei em
dúvida em interpretar essa informação. A convivência parecia ser pacífica, pois
não se tinha notícias de protestos de nenhuma das partes no noticiário local.
Seria este grupo do casarão uma extensão ou afiliados de seus vizinhos? Talvez
uma célula secreta de um núcleo mais profundo que acompanhava as atividades esotéricas
que eram servidas à comunidade local?
Imaginei
também que poderia ser uma seita contrária às crenças dos vizinhos do casarão,
que se implantara ali num gesto de audácia, coragem e desafio próprios daqueles
que desejam mudar o mundo. Todas as hipóteses me fascinavam.
Na
verdade, já não me interessavam os motivos das reuniões das sextas-feiras, a
vontade de descobrir foi aumentando durante todo o longo período das chuvas.
Quando o verão chegou e com ele os últimos festejos das festas juninas, a
frequência do casarão parecia ter voltado ao normal, tomei coragem e numa
sexta-feira quente e abafada, subi as escadas e abri a porta principal. Estava
em uma pequena antessala e logo um som de campainha anunciou minha presença.
Uma porta se abriu e um homem pequeno apareceu e com um sorriso, que imaginei
mefistofélico, convidou-me a entrar. Entramos em uma sala maior com duas
janelas que formavam a fachada do casarão. Sentei-me ao indicar-me uma cadeira
e expliquei que sempre passava em frente à casa e a curiosidade me despertara a
vontade de participar do movimento que ali se desenrolava. Ele sorriu novamente
aquele sorriso que me pareceu diabólico e mandou-me esperar, retirando-se em
seguida.
Admirei
então os grandes quadros pendurados nas paredes da sala e da sala seguinte. O
cheiro das tintas de pintura dominava o ambiente. Na sala seguinte estava um
cavalete com uma tela ainda em elaboração, ao lado, uma mesinha com bisnagas de
tintas, pincéis e cadinhos diversos. A casa tinha um pé-direito alto nessas
duas salas, como era costume na construção dessas casas antigas. Nesse momento
o homem retornou e me disse que eu deveria passar por testes antes de ser
admitido. Concordei imediatamente sem ao menos refletir sobre que testes seriam
aqueles.
Ele
então me apresentou um grande prato de louça negra com um punhado de arroz, em
grão, distribuído com uma espiral e mais nada disse.
Olhei
o prato e logo me veio a imagem da Via Láctea, o caminho do leite como a
chamavam os gregos. A quantidade estonteante de estrelas que a formam voltou a
me impressionar como sempre me impressionam as coisas da natureza. Olhei em
volta e vi os quadros que retratavam multidões em fila na busca de água. Nos
quadros, as multidões estavam em movimento em busca de uma solução para seu
destino; nos quadros, o presente tinha pouco a oferecer. Outros quadros eram de
mandalas formadas por inúmeros quadrículos multicoloridos e traziam de novo a
imagem da espiral e das quantidades infinitas e sua visão hipnótica de
movimento nos levava novamente à ideia de insatisfação com o presente e da
busca de soluções. Então eu disse:
–
A necessidade de buscarmos novos caminhos para os alimentos do corpo e da alma.
Ele
sorriu, agora um sorriso amistoso, e me convidou a segui-lo.
Fomos
para outra sala comprida, porém com teto rebaixado por forro de madeira de
peças macheadas. Duas janelas laterais davam para a parede e um pátio da
residência das freiras. Uma longa mesa estava colocada na parte mais ao fundo
da sala. Sentei-me em uma cadeira no lado oposto, uma área não ocupada da sala.
Nas paredes, mais quadros, uma velha estante de madeira escura, com livros e
quinquilharia, parecia abandonada. Ao meu lado estava uma velha máquina de
costura, colocada ali como decoração.
À
mesa estavam várias pessoas, que antes de entrar estavam em animada
conversação, mas que se calaram quando entrei no recinto. Todos olharam para
mim e uma vez sentado notei que no lado direito da mesa, próximo à cabeceira
estava um homem de idade, com cabelos brancos, usando uma capa escura. Ao seu
lado esquerdo, um outro homem de idade, de cabelos e bigodes grisalhos e também
usava uma capa escura. Do outro lado da mesa, um homem mais novo também usava
uma capa escura.
Sobre
a mesa havia variadas bebidas e fartas porções de petiscos regionais.
O
homem pequeno, que, agora eu sabia, era o artista autor dos quadros,
aproximou-se daquele que usava a capa escura e que era o mais novo. Depois veio
até mim e abriu um pedaço de papel onde estava escrito: IRENE RI.
Eu
já tinha visto isso. Duas partículas. Um sistema binário. É um movimento lúdico
de leitura nos dois sentidos, mas de mesmo significado. Não sei qual a
utilidade, mas lembra a Matemática que constrói coisas que não tem utilidade
conhecida, mas que são belas e intrigantes. Eu gosto da palavra ARARA, posso até
dizer que a leio em um sentido e as vejo voando do sul para o norte pela manhã,
à tarde quando volto a lê-la eu as vejo voando de volta do norte para o sul.
Lembrei de uma frase famosa, SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS, que também lida ao
contrário mantém as mesmas palavras. Uma das traduções dessa frase que aprecio
é: o agricultor sábio mantém a rotação das culturas. Essa fusão de movimento e
permanência é que me atrai, você busca a mudança mas sem perder o destino de
sua jornada e sem perder o equilíbrio entre a razão e a beleza.
–
É a ideia do movimento que parece existir entre o lúdico e o belo, respondi.
Notei
que o homem de capa escura e que era o mais novo sorriu e balançou a cabeça
concordando.
O
artista trouxe-me um quadro onde estava retratado o homem de capa preta de
cabelos e bigodes grisalhos. Nesse momento, as mulheres que estavam presentes,
aproximaram-se do retratado, ladeando-o. O artista perguntou:
–
Qual a diferença entre embriagado e inebriado?
Valha-me
São Jorge! Recorro a ele, pois é o meu santo da transição. Mas recorreria
principalmente a Jorge Luís Borges para buscar o significado destas palavras,
no entanto estou só, aqui no casarão. A resposta parece óbvia, mas não deve ser
tão fácil assim. As palavras parecem que são sinônimas, talvez nesta comunidade
eles façam alguma distinção, já que pergunta pela diferença. Talvez um sentido
fique em oposição ao outro, isto é, um visto como bom e outro com ruim. Ou
pratica-se um sentido para alcançar o outro sentido, ou seja, os dois são bons.
Olhei o quadro e vi que o retratado estava lendo um livro e quatro lindas
mulheres ouviam o que lia. À sua frente, copos de bebida. Elas, com os corpos
inclinados na direção dele, concentradas no que ouviam. Olhei nesse momento
para ele e elas estavam ao seu lado, como que reproduzindo o quadro, só que ele
sorria, flutuando, olhando para uma e para outra. Seria um Fauno sedutor que
inebriado pela beleza feminina as embriagava para facilitar a conquista? Ou
seria um amante inebriado da beleza feminina?
–
Estar inebriado é estar embriagado pela beleza feminina, respondi.
O
retratado levantou os dois braços sorrindo e confirmou balançando a cabeça.
O
artista colocou, a mando do homem de cabelo branco e capa preta, na minha
frente uma garrafa de água mineral de origem francesa, uma garrafa de uísque
escocês e uma xícara de chá. Disse-me para beber rapidamente cada um deles e
expressasse ao final os pensamentos que aflorassem no momento.
Primeiro
me servi da água mineral francesa. Todas me parecem iguais, é difícil observar
alguma distinção. Mas o fato de ser francesa me veio à mente a possibilidade de
experimentar a vida além do nosso provincialismo, de ter visitado outras
cidades e países, do alargamento da visão e de ter adquirido, naturalmente,
novos hábitos sem afetação.
Depois
me servi do uísque, sem gelo, e senti o ardor tomar conta da garganta e
contive, parcialmente, uma tosse envergonhada. É uma bebida máscula, com
certeza; imagino os celtas briguentos, tomando-a em jarras antes de se
envolverem em brigas entre si. A água da vida, como era chamada, quebra os
grilhões do politicamente correto e a língua fica solta para colocar as
verdades no seu devido lugar.
Por
fim me servi do chá. A figura da xícara de porcelana, com delicadas flores
desenhadas remetia imediatamente à imagem da família, ao convívio familiar, do
antigo hábito de reunir-se em torno da mesa para o lanche da tarde e
estreitar-se os laços familiares, reforçando os valores dos mais velhos para os
mais novos.
Nesse
momento o artista pediu-me para beber logo o chá o que fiz rapidamente e estava
fervente e exclamei sem pensar:
–
Porra! Caralho, queimei a língua!
O
homem de cabelo branco e de capa preta riu largamente e balançou a cabeça
positivamente. Fui admitido no Chá do A.